1.7.05

O destino do homem está nas suas mãos

Gostava de me ter lembrado do centenário do nascimento de Jean-Paul Sartre (nasceu em Paris no dia 21 de Junho de 1905). Porém, não me lembrei. Dou por ele agora. Durante algum tempo julguei ser sartriano (até começar a ler Camus), embora nunca tenha sabido muito bem o que isso queria dizer. Supus que significasse um ódio incondicional à burguesia, não ter sentido de posse, assumir nas mãos o próprio destino, ser ateu e existencialista. Nunca fui à bola com a história do escritor engagée, mas houve livros de Sartre que me convenceram. Dar-vos-ei conta de três: A Transcendência do Ego, A Náusea e As Moscas. O primeiro deles tive de o ler e de o estudar no contexto de uma cadeira de Ontologia. Trata-se do primeiro ensaio filosófico de Sartre, escrito em 1934 e publicado em 1936. Foi traduzido para português por Pedro M. S. Alves e publicado, pelas Edições Colibri, em 1994. Esta edição é seguida de um interessante debate, em torno do cogito cartesiano, intitulado Consciência de Si e Conhecimento de Si. O ensaio principal resulta de uma análise sobre a fenomenologia de Husserl. O filósofo francês parte deste princípio: «o Ego não está na consciência nem formal nem materialmente: ele está fora, no mundo; é um ser do mundo, tal como o Ego de outrem.» (p. 43) Este princípio, que é já a conclusão de uma tese sobre a natureza do Ego, servirá a Sartre para estabelecer os limites de um conhecimento intuitivo e refutar o solipsismo cartesiano absolutizando a consciência: «O Mundo não criou o Eu [Moi], o Eu [Moi] não criou o Mundo, eles são dois objectos para a consciência absoluta, impessoal, e é por ela que eles estão ligados. Esta consciência absoluta, quando é purificada do Eu, nada mais tem que seja característico de um sujeito, nem é também uma colecção de representações: ela é muito simplesmente uma condição primeira e uma fonte absoluta de existência.» No fundo, encontramos nesta tese os alicerces filosóficos do primeiro romance do filósofo francês: A Náusea (1938). Li-o na tradução de António Coimbra Martins para as Publicações Europa-América. Escrito em forma de diário, abre com uma epígrafe de Céline: «É um rapaz sem importância colectiva; um indivíduo, nada mais.» Encontraremos precisamente isso em A Náusea: um rapaz a tomar consciência de si, dos seus temores e das suas angústias, numa vertiginosa e espontânea eclosão da intimidade através da palavra. Tudo gira em torno de Antoine, das suas reflexões, dos seus sentimentos, dos seus estados de consciência. Tive um professor que me dizia que para se compreender o Sartre filósofo, o melhor seria ler os seus romances. Apesar da afirmação não ter as melhores intenções, faz um certo sentido: «Eu julgava que o ódio, o amor ou a morte desciam sobre nós como as línguas de fogo da Sexta-Feira Santa. Julgava que se podia resplandecer de ódio ou de morte. Que engano! É verdade, sim, pensava que isso existia – ‘o Ódio’ -, que vinha pousar nas pessoas e elevá-las acima de si próprias. Afinal, sou eu apenas, eu a odiar, eu a amar. E essa coisa – eu – é sempre a mesma coisa, uma pasta a estirar-se, a estirar-se… sempre tão semelhante a si mesma que admira como é que as pessoas tiveram a ideia de inventar nomes, de fazer distinções.» (p. 188) Já marcada pelas posições de cariz mais fortemente existencialista, aparece, em 1943, a peça As Moscas. Está traduzida para português por Nuno Valadas e foi publicada pela Editorial Presença. Possuo a 7.ª edição, que data de 1986. As personagens e o argumento de As Moscas são reconstruções inteligentes da tragédia grega. As moscas funcionam aqui como uma espécie de símbolo da angústia que Sartre já havia enunciado nos títulos precedentes. Essa angústia aparece na forma de temor e remorso, desespero e medo. No entanto, um novo elemento entra em cena: a liberdade. A liberdade como condição essencial do homem, incondicionada ou, quando muito, apenas condicionada pela afirmação mais ou menos corajosa do que se é: «estou condenado a não ter outra lei além da minha» - diz Orestes a Júpiter. (p. 167) Talvez seja este o maior legado da obra sartriana. Se nos abstrairmos das polémicas e dos arcaísmos, teremos de aceitar que poucos foram os filósofos cujas ideias, para o bem e para o mal, se transformaram em lugares-comuns. Sartre foi/é um deles. Passados cem anos sobre o seu nascimento, Sartre permanece um autor polémico. Tem sido menosprezado e malquerido por algumas almas instaladas nos sofás da cátedra. Devo esclarecer que é possível fazer-se um curso em Filosofia no nosso país sem se estudar Sartre. No entanto, ele anda na boca do povo, mesmo não sabendo o povo o que traz na boca. Pouco mais se pode pedir a um filósofo.

4 Comments:

At 10:59 da tarde, Blogger Dinamene said...

Bela post!

 
At 11:00 da tarde, Blogger Dinamene said...

Belo, queria eu dizer, bom ponto de partida.

 
At 2:00 da manhã, Blogger blimunda said...

tu és do carfaças. mas do caraças do top. não passo sem TI. TOTAL ADDICTION.

 
At 1:21 da manhã, Anonymous Anónimo said...

Que bom recordar o Sartre, grande melómano e grande amante (das mulheres) e "La nausée", que foi um livro tão fundamental para certa geração.
Mas não posso separá-lo nem o seu "ser em circunstância", da Simone de Beauvoir, que nas suas teorias feministas se inspirou bastante neste "ser em circunstância". Ela escreveu "O Segundo Sexo", reflexão fundadora sobre a discriminação de género; para além de outros importantes títulos.
Quando fui a Paris fui visitar comovidamente "Les deux magots",um dos cafés da "rive gauche" onde eles lanchavam o seu "croque monsieur" ou o seu "croque madame".
Habitavam apaetamentos distintos, no mesmo andar. Isto, no Portugal da Concordata salazarenta/cerejenta fazia sonhar os jovens com um mundo diferente e sem algemas.
Obrigada pela lembrança.

Artémis

 

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