CORPO NOVO, LITERATURA NOVA (a propósito do comentário de J. Urbano)
…celebração litúrgica, mas pretensamente sem sacerdote dirigente. fingir que são as moléculas que escrevem, como se o autor se tivesse transformado numa parte mais pequena de uma coisa maior, num órgão de um corpo (ou do corpo sem órgãos). creio que tem a ver com um estádio da evolução antropológica: o ser humano preparando-se para a verdadeira ligação à rede, o que exige o corpo perversamente poliforme de que donna haraway gosta: sem fronteiras, sem sexo (ou com vários), e também sem verdade. A verdade tem raízes, impede a circulação. O que se faz então é dividir, para diminuir o peso: as componentes gravitam melhor e o personagem ressente-se. O personagem passa a ser um ponto de vista, uma posição do objecto, a inclinação da luz. Isto parece o futuro mas já é também passado. Quando Galileu descobriu o telescópio lançou a dúvida quanto à capacidade de os sentidos perceberem a realidade. O universo passou a ser algo de cujas qualidades conhecemos apenas o modo como afectam os nossos instrumentos de medição. Mas do sistema heliocêntrico então inaugurado passou-se depois a um sistema sem centro fixo, ou desprovido de centro. Se a paternidade do “moderno” relativismo se deve a Galileu, Einstein aproveitou-o e achou-se suficientemente confortável para negar que, num instante definido, toda a matéria seja simultaneamente real (Heisenberg também). Ainda não parámos de ficar mais pequenos, como se fosse esse o preço natural de descobrirmos sempre estrelas que estão mais atrás das últimas. Mas se calhar o pensamento é como o corpo de cristo encolhido na hóstia: por mais que se parta, no bocado mais pequeno ele está inteiro (dizem-me alguns de olhos doces). Faz isso o escritor: finge que habita o seu próximo corpo. É que este pensa muito e quer tomar conta do mundo. Mas depois volta sempre ao mesmo erro, o escritor: quer acabar com o pensamento, e põe a janela a pensar, quer acabar com a ficção e inventa personagens feitos só de imaginação. Não é fácil.
Rui Costa
Rui Costa
1 Comments:
Caro Rui
Com o seu texto entramos num território que para ser levado mais adiante quase exigiria um pequeno ensaio (de ambos), pelo que me fico por um ou dois pontos.
1) A plena ligação do “corpo políforme à rede” seria a sua total imersão e consequente desintegração na rede e arrastaria a própria desintegração da rede, caso ela não se venha a tornar numa criatura auto-poiética e auto-subsistente, como anunciam os profetas tecnognósticos da Noosfera. Os corpos resistem à rede e só assim a alimentam. É claro, esses corpos são eles mesmos carne, são eles mesmos ou sem mesmo, redes moleculares, redes neuronais, etc. Serão máquinas causais, de uma causalidade complexa, mas então nossos pensamentos, nossa liberdade fará parte dessa causalidade e desse determinismo causal ou será uma espécie de salto indeterminístico para a consciência, as imagens, etc, para o nosso mundo virtual. Como vê entramos num território tramado.
2) Quando diz que “não paramos de ficar mais pequenos, como se fosse esse o preço natural de descobrirmos sempre estrelas que estão mais atrás das últimas” o inverso também acontece, não paramos de ficar maiores graças a descobrirmos partículas/onda cada vez mais minúsculas e especula-se à cerca das cordas que vibram (Super-cordas; Teoria M). Uma coisa parece-me certa, o nosso impoder corresponde a uma escala de poder/saber incomparável a qualquer outro período da humanidade. Mais precários que nunca e mais poderosos que nunca.
Como vê, assuntos intermináveis.
3) Relativamente ao romance ou à escrita ficcional preferia deixá-lo com um excerto de um conto que provavelmente sai no próximo número da revista NADA:
Pontal não estava preparado para as tarefas e essa impreparação para as tarefas do pensamento com o mínimo de rigor científico e lógico-dedutivo ou sequer com algum método tornavam-no uma espécie de pensador patético. Um pensamento sem um plano de consistência, nem plano nem consistência. Segue-se que não se percebia se aquilo era pensar, sem plano e inconsistente aquilo não era pensar como os pensadores pensam. Ele não pensava, tropeçava. Ele, que não parava de pensar, não pensava da forma como os pensadores pensam, pensava de uma forma inconsistente, desconexa e sem plano, não que se pudesse falar em acaso, antes de um indeterminismo deveras peculiar que não se ajustava nem à filosofia nem à ciência nem à literatura, que desarticulava tanto a linguagem poética como a conceptual. O seu pensamento como que se não se distinguia da nuvem de partículas elementares, de seus fluxos e refluxos, da matéria fluida do tempo, do devir que escapa a qualquer tipo de sinal. Por isso o seu pensamento não se detinha, distanciava ou separava de um objecto, não se punha em relação a algo, não existia objecto. Era o próprio fluxo do pensamento sem mediação, sua nuvem de partículas o que importava, e claro esse fluxo desfazia a paisagem, tornava-se uma paisagem desfigurada, eram partículas paisagem, fluxos de partículas, ondas paisagem, sem se fixarem numa imagem de paisagem. E isto era uma alegria para Pontal. Uma alegria quase neutra. O pensamento impróprio. Aí não florescem as figuras ou penetram as categorias, aí nada se detém.
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