ÁTILA, O REI DOS HUNOS
O A Terceira Noite, de Rui Bebiano, é um dos meus weblogs preferidos. Visito-o todos os dias, leio-o com a atenção que me é possível. Por isso mesmo, não posso impedir-me de considerar muito infeliz este tipo de considerandos: «O programa de rádio Antena Aberta, de Eduarda Maia (Antena 1), resolveu esta manhã colocar em debate as recentes declarações públicas de Saramago propósito da utopia, ciclicamente retomada por uns quantos quixotes, de uma Ibéria una e plural. Para que não existam dúvidas, declaro que, nas suas linhas mais gerais, a ideia do escritor colhe a minha simpatia. E a de um ou outro ouvinte também. Todavia, a larga maioria dos participantes interveio, de uma forma excessiva e exaltada, em sentido contrário. A culpa do tom, claro, é deste tipo de programas, que dá voz a qualquer huno e nem sempre introduz na conversa alguma pedagogia da tolerância. Por isso, não estranhei ouvir um cozinheiro do Porto bradar que «não podemos ofender a gesta dos nossos maiores», nem «afrontar os mártires que permitiram dignificar o solo pátrio». Estou a ver o senhor – na aparência um homem de leituras – de panela inox na cabeça e com o garfo dos fritos em riste, «dando a vida, se preciso for», rua a rua, copa a copa, sob a inspiração da padeira Brites, na guerra de guerrilhas contra os malditos castelhanos». Os sublinhados são, obviamente, da minha autoria. A mim parece-me antes que este discurso que o Rui Bebiano adopta, bastas vezes repetido e remexido noutros litorais, é também ele do pior que a nossa desgraçada democracia alimenta. Rui Bebiano, a falar desta maneira, até parece os hunos que critica. Obviamente um huno iniciado na pedagogia da tolerância, sobretudo porque mau de tachos e panelas, mas bom de leituras. Rui Bebiano lê bons livros, houve boa música, mas jamais se deixaria inspirar pela padeira Brites. A gente consegue antes vê-lo sentado numa secretária repleta de livros, a escrever posts, a ler Francisco da Cunha Leão, com uma garrafa de bom vinho de um lado e uma caixa de charutos do outro. Ele é um intelectual. E aos intelectuais pouco mais se pode exigir do que... serem intelectuais. Eles ficam mesmo bem é arrumados no conforto dos seus escritórios, entre livros e CDs, que entremeiam com programas de rádio onde a voz dos «cozinheiros do Porto» (ó raça!) se faz ouvir.
6 Comments:
A Internet tem, destas coisas, permitindo uma pequena «resposta» quase em tempo real. Faço-o porque o Henrique Fialho me merece consideração, independentemente de discordar de mim ou de não gostar do tom irónico que uso muitas vezes (riscos que se correm, afinal, pois quem anda à chuva molha-se).
Já agora: o humor é uma forma de comunicação como qualquer outra. É necessário aceitá-lo quando é esse o registo escolhido. Mesmo quando não se concorda ou não se está «na onda».
Sobre a questão da condição intelectual não falo, pois ela não precisa ser justificada. Claro que é a minha, não sendo nem mais nem menos honrosa que qualquer outra.
Agora o essencial: aquilo que critico é a existência de programas populistas, onde absolutamente qualquer pessoa diz o que lhe vem à cabeça, incita ao ódio, berra aos ouvidos dos ouvintes - como foi o caso - e os responsáveis do programa não moderam minimamente. O meu conceito de democracia é muito amplo - e nem imagina aquilo que me custou (e às vezes ainda custa) - mas não contempla a aceitação da cultura da intolerância. Nestes programas da rádio como no seu equivalente televisivo, que são essencialmente os múltiplos talk-shows.
Por acaso raramente oiço rádio, preferindo os tais cêdês. Mas hoje aconteceu uma viagem de automóvel com o dito ligado. Lá calha.
Cumprimentos cordiais.
Esqueci-me de dizer. Para evitar qualquer confusão: entre a sua leitura do meu post e a minha leitura do seu, tinha feito já pequenas alterações no texto original.
Caro Rui Bebiano,
Não foi o seu humor o que me motivou o post. Com o humor, com a ironia e o sarcasmo, posso eu bem. Sou crente e, tanto quanto possível, praticante. De resto, é mesmo a única religião que professo. O que me desagradou no tom foi o sublinhado, foi «um cozinheiro do porto (…) na aparência homem de leituras», que é praticamente o mesmo que se referir a um qualquer interveniente, nesse mesmo ou noutro programa, num tom classificativo que me incomoda (sobretudo quando vem de pessoas inteligentes). Repare referir-se a um dos intervenientes como «um cozinheiro do porto (…) na aparência homem de leituras» não é muito diferente de alguém se referir a uma vítima de agressão como «um transexual, toxicodependente, prostituto, sem abrigo, brasileiro…». É esse tom classificativo, discriminatório que julgo escusado. Por que não só: «Não estranhei ouvir um interveniente…» Não querendo ser politicamente correcto, coisa que detesto, julgo escusada a referência à profissão do senhor, que até pode, de facto, ser ao mesmo tempo cozinheiro e homem de cultura, dividir-se entre as panelas e os livros. Ser cozinheiro também não é condição nem mais nem menos honrosa que qualquer outra. E isto remete-me para a discussão sobre “este tipo de programas”, com os quais podemos simpatizar mais ou menos. Como não sou frequentador assíduo, limito-me a confessar que tenho apanhado alguns momentos de Antena Aberta ou Opinião Pública – quando havia TVCavo cá em casa – bem mais eloquentes que muitos Prós & Contras, com convidados devidamente seleccionados e maquilhados à conveniência. Espero que aqui não seja visto um qualquer preconceito da minha parte, pelo menos como eu vi na parte que é a sua. É que estes programas, se outros méritos não têm, têm pelo menos o de serem possíveis. A democracia também é isso, também é o poder dar voz aos hunos e a quem os queira ouvir. Há bem pouco tempo vi um deles, em plena RTP, debitando contra homossexuais e emigrantes, entre onze candidatos à Câmara à qual se candidatava. É um huno com partido, intolerante, mas não deixa de ser um huno. Dar-lhe voz, sem temor, é sinal de que a nossa democracia vai num sentido menos mau. E no caso destes programas, como é óbvio, tudo se mistura, os filtros são poucos, à semelhança (!) do que se passa na nossa querida blogolândia.
Também visito regularmente A Terceira Noite, e esse artigo também me incomodou um pouco, pela posição do Rui em relação à diatribe de Saramago. Porque não é preciso ser um "popular" (aspas irónicas), como os jornalistas gostam de eufemisticamente chamar aos "hunos" (aspas de citação), para achar que a existência de um estado quase milenar, face a outro que é 4 vezes maior (e que é feito de uma soma de identidades mais ou menos homogeneizadas por processos que foram mais ou menos dolorosos) pode ser justificada, ainda que por razões que para alguns não sejam completamente aparentes, à pequena escala geracional em que nos movemos. Porquê embarcar acriticamente nas boutades de um homem que já mostrou amiúde não desgostar de uma certa exposição mediática e de um certo estatuto de profeta, quando se sabe que a excelência do senhor apenas ficou demonstrada no domínio literário?
Essa é a questão essencial do post de Rui Bebiano. Fico mais confortável com o comentário do DL, que agradeço muito. É óbvio que a discordância em nada mancha a estima que tenho pelo blogger em causa. Mas, desta feita, a divergência é total.
Não acho mal que um programa dê voz a quem tenha menos dom de palavra, ânimos mais exaltados ou opiniões menos esclarecidas. Acho bem.
Alguém se lembra de um programa de rádio semelhante com o Joaquim Letria? Eu lembro-me e por isso, quando de vez em quando o ouço, agradeço que a Eduarda Maio não interfira respeitando quem fala e quem ouve.
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