MICROBIOLOGIA #27
o homem que eu matei
ou o elogio das salas-de-chuto
Nesses dias o bem e o mal existiam como mera contemplação, e deus nunca foi para ali chamado. Havia o ritual, essa maneira de morrer que nos era ensinada, e o tempo ia à frente, montado na bolha de fogo que escorria pela prata. Havia um sentimento de pertença e o remorso (se o havia) era um de nós. Mas um dia acordei com a certeza de num só homem ter matado duas vezes. Numa casa-de-banho pública num jardim em Peniche. Revejo o homem dobrado sobre a ressaca e um miudo de dezassete anos que lhe quer comprar doces. Agora de novo a casa de banho e dezenas de seringas espalhadas por todo o lado. O homem que ainda tem que ir para o mar, mas que quer dormir um pouco, e as dores já vêm vindo e as veias nem por isso. E a proposta: dás-me o caldo, faço-te uma cena fixe. Um quadro quase campestre: o limão colhido ali ao lado e a colher a arder no centro da casa-de-banho pública. E então a pergunta: dás-me a seringa? E um homem como que quase não, atirando os olhos para dentro do corpo e rodando, rodando até: trás-me aquela!, a que está ao lado da que está ao lado da morte. Assim matei o homem que trouxe o bem e o mal para o meio dos meus dias, que obrigou a que deus fosse pela primeira vez para ali chamado.
(Jorge Melícias, in Ideias Fixas num 03)
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3 Comments:
Isto é do Melicias?
:)
Maria João
quantos e quantos da minha aldeia foram colhidos do chão com limões no bolso. em miúdos roubávamos laranjas, depois alguns passaram a preferir limões.
Etanol, é.
L, também sempre preferi os limões.
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