IVG #39
Na segunda carta da correspondência entre Jorge de Sena e Sophia de Melo Breyner, dirigida a Francisco de Sousa Tavares, o insigne poeta português sai-se com esta: «Uma coisa é um debate, e outra um arraial de oportunismo». Lembrei-me muito deste tiro comunicativo enquanto estava a ver o Prós & Contras de ontem. Seria muito bom que, desde logo, os apoiantes do SIM que participam em debates trouxessem sempre em mente esta frase de Jorge de Sena: «Uma coisa é um debate, e outra um arraial de oportunismo». Dificilmente haverá um debate sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez até às 10 semanas, repito INTERRUPÇÃO VOLUNTÀRIA DA GRAVIDEZ ATÉ ÀS 10 SEMANAS, que não seja transformado num «arraial de oportunismo» pelos partidários do NÃO. É fundamental perceber que aquela gente que se apresentou a defender o NÃO, pura e simplesmente, não quer debater. A prova disso, se fosse preciso outra, esteve nas intervenções do mister – momento humorístico da noite – e das pessoas que o ladeavam, um médico de postura aristocrática e indiferente e uma senhora, julgo que psicóloga, que sorriu e apoiou a intervenção do mister quando este disse que sendo pela vida, sendo contra tirar a vida a alguém, assim sem mais nem menos, era contra todo o tipo de abortos à excepção do risco de vida para a mãe. Houve uma senhora, julgo que psicóloga, que, sentada ao lado de um individuo que profere uma enormidade destas, bateu palmas à enormidade. Esta senhora, porque bateu palmas à intervenção do mister, apoia a ideia bárbara de que uma mulher que engravide na sequência de uma violação deve ser obrigada a levar até ao fim essa gravidez, sob pena de, caso a interrompa, ir parar à cadeia. Ir parar à cadeia por interromper uma gravidez que jamais desejou, que só aconteceu porque foi vítima de um crime! Isto é inacreditável e só prova que esta gente não quer debater, esta gente transformará todos os debates num arraial de oportunismo. Na cabeça daquelas pessoas que ali estavam a defender o NÃO só um raciocínio é válido: deixem jogar o feto! Isto é: «Fazer um aborto é matar uma vida humana; Votar sim é liberalizar o aborto; Logo, votar sim é liberalizar a morte de vidas humanas». Na cabeça daquelas pessoas só este raciocínio vale, pelo que será tarefa inglória tentar demonstrar-lhes que despenalizar o aborto até às 10 semanas é ainda puni-lo em muitas circunstâncias, o que, para bom entendedor, deixa logo de parte a ideia insistentementementemente repetida da liberalização. Na cabeça daquelas pessoas só aquele raciocínio vale, pelo que será tarefa inglória tentar demonstrar-lhes que «o feto é "um anexo sem autonomia" da mãe até às 24 semanas», é um esboço «e um esboço é um esboço». Isto, para aquelas pessoas, é demasiado científico. Logo, não interessa. Porque a ciência não interessa para aquelas pessoas. Aquelas pessoas, quando estão doentes, não vão ao médico. Querem lá elas saber do médico para alguma coisa! Não vale a pena, será tarefa inglória, tentar demonstrar-lhes que um feto ainda não é uma vida humana como é uma mãe que morre por complicações abortivas. Não vale sequer a pena lembrar-lhes que nada disso está à discussão, pois a estar em discussão teríamos de proibir, desde já, toda uma série de técnicas de reprodução medicamente assistida que, antes de darem numa gravidez sólida, resultam em múltiplos fetos mortos. São tantos que não há terra suficiente para os enterrar nem tempo para lhes fazer o funeral. Não vale a pena lembrar-lhes que o que estará em causa é uma lei e não as convicções morais de cada um. Eles não querem saber, eles só querem transformar um debate num arraial de oportunismo.
7 Comments:
era psiquiatra, henrique. para mim ainda mais grave porque teve uma formação de seis anos de medicina e sabe ainda melhor que tu o que é um embrião com dez semanas.
Sem dúvida um brilhante resumo da discussão:
"Eles não querem debater (...) Eles não querem saber".
Temo que o seja também das duas semanas que aí vêm.
Temos tanta fé na racionalidade, que acreditamos, poder convencer outras pessoas, pela força e pela coerência dos nosso argumentos. O que o programa em questão me mostrou, é que a maior parte dos defensores do não, decidem emocionalmente e depois agregam argumentos à volta de uma decisão já tomada, nem que esses argumentos sejam incoerentes. O melhor exemplo é o do video do Marcelo. Como é que uma pessoa inteligente pode sequer se colocar numa posição daquelas ? ... É constrangedor.
eu votei 'não' há oito anos, não via outra coisa à frente que não fosse o embrião/feto, fiz o meu percurso, hoje sei que a minha decisão era puramente emocional e isenta de 'participação social'.
isso mesmo, rg: "a maior parte dos defensores do não, decidem emocionalmente e depois agregam argumentos à volta de uma decisão já tomada, nem que esses argumentos sejam incoerentes"
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Independentemente de se considerar a IVG uma má solução, o trabalho de acompanhamento e apoio, e mesmo de dissuasão, só pode ser desenvolvido honestamente num clima de responsabilidade e de abertura, que considere tanto a importância da vida humana no seu grau um, como do alimento que a faz crescer e da sua total dependência dos progenitores.
Atrevo-me a considerar que a vida começa muito antes da concepção. Começa na primeira fantasia da mãe, na primeira fantasia do pai. O grau zero da vida humana está aí nesse encontro. Sem essa fantasia, sem essa criação, que antecede a fertilização, não há vida humana.
Portanto, sem grau zero não pode haver grau um, mesmo havendo fertilização, mesmo havendo embrião, mesmo havendo feto. As fantasias da mãe e do pai e a sua paulatina assimilação ao real é que vão preparar o campo de acolhimento de uma criança e, desse modo, gerar uma vida humana. Sem esse campo, sem essa qualidade, a vivência é pouco mais que desumana, da ordem da sobrevivência biológica mas não humana.
Não se pode estranhar que às dez semanas um feto não seja entendido como uma nova vida. Julgo que este limite temporal considera mais o efeito devastador ao nível emocional que a IVG pode representar para a mulher do que as características próprias do feto.
Tenho para mim que quem dá a cara pelo SIM deveria contar com as manobras de diversão demagógica com que o NÃO pretende engolir os seus argumentos, desenvolvendo uma estratégia focalizada em aspectos que é impossível não levar em conta:
1. Qual é a percentagem média de gravidezes completas em circunstâncias normais? 20%. Ou seja, há 80% de casos em que os embriões não se implantam ou em que há aborto espontâneo por deficiência até aos 3 meses. Valores que não consideram a IVG.
2. Quantas mulheres são acompanhadas nos serviços de saúde por complicações associadas ao aborto clandestino? E quantas morreram?
3. Quantas mulheres são acompanhadas nos serviços de saúde por complicações associadas ao aborto autorizado pelas excepções previstas na lei? E quantas morreram?
4. Quantas crianças recém-nascidas são mortas, abandonadas em caixotes de lixo ou sem condições de sobrevivência, abandonadas em hospitais e maternidades, entregues para adopção, entregues a instituições?
5. Qual a percentagem de crianças que, sobrevivendo a um abandono a seguir ao nascimento, retomam o seu desenvolvimento entregues a uma família de acolhimento ou adoptante? E com que idade?
6. Quantas mulheres, deparando-se com uma gravidez não desejada, recorreram aos serviços de apoio para aconselhamento? Qual é a percentagem de satisfação com esses serviços?
7. Quantas crianças têm uma vida plena, são felizes, fruto de uma gravidez não desejada, do abandono, da institucionalização? E as mães dessas crianças?
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