APRENDER A CONTAR #31
VIDA E MILAGRES DE PÁPÁRIKÁSS,
BASTARDO DO IMPERADOR
BASTARDO DO IMPERADOR
Era uma vez uma grande boa vontade que se pôs a correr mundo e que no gastar dos sapatos daqueles dias se fez tão pequenina que cabia em qualquer bolso. O crescimento definitivo foi numa quarta-feira de Primavera, dia em que a meteram na parte de dentro de umas calças e a embarcaram para o México. No México só há polícias sinaleiros baixinhos e adolescentes de olhos encarnados, sempre a bocejar, e a dizer de hora a hora a palavra: cabana, de forma que a boa vontade não sabia o que havia de fazer.
Para ir ganhando tempo, resolveu montar uma indústria chapeleira, com a qual inundou o mercado. Como é natural, as cabeças andavam todas contentes, de trás para diante e de diante para trás, o que as fazia produzir um som comprido, em forma de enseada, que os músicos iam recolhendo para as suas óperas. Dado o bom êxito inicial, a boa vontade não só se deixou cumprimentar, num estrado vindo da América, como estabeleceu ligações com Pápárikáss, homem muito odiado e sempre pelos casinos ―: aderiu à guerra que estalou naquele tempo, lançando de repente os célebres chapéus marca PERA, para abrigar generais. Estes, porém, dissolveram a empresa, sob a alegação seguinte: não está a acompanhar.
Solteiros de profissão e naturais de Sevilha, os criados revoltaram-se, mexendo muito uns nos outros e recusando-se a andar. O distúrbio custou duzentas mortes, um casino, a esposa de Pápárikáss (pendurada de uma janela a arder), onze bois do abastecimento, e a Sagrada Relíquia, que o inimigo apanhou comendo-a logo ali com um apetite enorme.
Então, como hoje, as ruas estavam cheias de desonestos, e uma canção acanalhada, francesa, La Petite Enorme, correu todos os bares, pondo em perigo fastios e governação. O sinal de acabar aqueles insucessos foi um ovo estrelado milagreiro, que não só deitava petróleo e carvão, quando ofendido, como sabia processos divinatórios de encontrar os ladrões naqueles sítios certos em que eles é raro estarem. Isso acabou de vez com a ameaça de distúrbio civil, coisa sempre de temer quando as guerras grandes acabam e os generais voltam para casa.
Comemorando a vitória, mandou o governo um grande Parque onde as crianças se arejavam imenso e cuspiam à vontade à vista de todos os peixes. Ao sábado, tocava a música, e apareciam mãos por todos os lados, o que originou um desporto bastante original: o sape-gato-codorniz-galinha. Era assim: uma enorme correnteza de mãos, formando meta. Com o sinal da partida iam todas por ali fora às trabuzanadas umas nas outras e a que chegava primeiro era separada do respectivo pulso, e enviada para França. Nunca mais se sabia dela e os prémios eram distribuídos por todos os assistentes que, em sinal de regozijo, comiam bacalhaus e prometiam novos formatos de mãos, para as competições seguintes.
Assim começa a história da boa vontade que embarcou para os brasis e lá montou indústria.
Mário Cesariny (1923-2006), Manual de Prestidigitação, Assírio & Alvim, pp. 151-152, Janeiro de 1981.
#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10 / #11 / #12 / #13 / #14 / #15 / #16 / #17 / #18 / #19 / #20 / #21 / #22 / #23 / #24 / #25 / #26 / #27 / #28 / #29 / #30
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home