27.10.08

APRENDER A CONTAR #33

TRÊS COMO TANTAS

O homem caminhava três passos à frente da mulher. Parava, voltava-se. Ela parava também. O homem punha o dedo no ar, invectivava-a. A mulher, com os olhos nele, esperava, pacientemente, que o homem acabasse. Mas o homem não se mostrava disposto a acabar. Continuava a ralhar-lhe como se não tivesse fim o ressentimento que contra ela acumulara ao longo dos anos, de toda uma vida, afinal, de desencontros. Teria sido alguma vez digno da sua afeição aquele homem, ali, de dedo no ar, a ralhar, a ralhar?, pensava a mulher. Ou nem tanto pensava. Sobre que ralhava o homem, afinal? Difícil perceber. Era uma mistura de roupa por engomar com infidelidades antigas.

*

Mariana pregava o botão na camisa e podia ver-se que o fazia com aquela ponta de que as mães põem, por exemplo, no pentear dos filhos. Adivinhavam-se-lhe nos ademanes um propósito: quero que o que é meu pareça bem ou, pelo menos, não faça má figura diante dos outros. Donde é que vinha essa impressão? De gestos indefinidos, mal esboçados, que eram como carícias arrependidas a meio do caminho, como gestos de ternura que, por vontade dela, não chegassem ao destinatário. Vítor compreendia-o e sentia-se triste de morrer. Não gostava de Mariana a ponto de se juntar com ela. Antecipadamente, a camisa ficava-lhe apertada no pescoço.

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No dia do seu casamento Virgínia foi feliz. Via realizado o seu desejo de deixar de viver com os pais, ia passar a lua-de-mel ao Algarve, região de que tanto gostava, podia comer um quilo de sorvete de morango, que ninguém ralharia com ela.
Trinta anos depois, da luta de mel a lembrança mais forte e sempre evocada era o desarranjo intestinal que não digo um quilo de sorvete de morango, mas quase um quilo, lhe provocara.

Alexandre O’Neill (1924-1986), Uma Coisa em Forma de Assim, Presença, p. 190, 1985.

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