IVG #44
«O aborto e as experiências destrutivas com embriões levantam questões éticas diferentes porque o desenvolvimento do ser humano é um processo gradual. Se tomarmos um óvulo fertilizado imediatamente após a sua concepção, é difícil ficar perturbado com a sua morte. O óvulo fertilizado é uma única célula. Vários dias depois não passa ainda de um minúsculo aglomerado de células sem nenhuma característica anatómica do ser em que se virá a transformar. As células que virão a formar o embrião propriamente dito são nesta fase indistinguíveis das células que irão formar a placenta e o saco amniótico. Até cerca de 14 dias após a fertilização nãos e pode sequer saber se o embrião irá dar origem a um ou a dois indivíduos, porque a divisão ainda pode ter lugar, levando à formação de gémeos idênticos. Aos 14 dias surge a primeira característica anatómica, a chamada linha primitiva, na posição em que mais tarde se desenvolverá a coluna vertebral. Neste momento, o embrião não pode ter consciência nem sentir dor. No outro extremo situa-se o ser humano adulto. Matar um ser humano é assassínio e, excepto em algumas circunstâncias especiais, (…) é algo condenado sem hesitações em todo o mundo. Contudo, não existe uma linha divisória nítida que separe o ovo fertilizado do adulto. Daí o problema. (…) O argumento central contra o aborto, apresentado de um modo formal, seria mais ou menos este:
Primeira premissa: É um mal matar um ser humano inocente.
Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.
Conclusão: Logo, é um mal matar um feto humano.
(…) Alguns progressistas não contestam a afirmação conservadora de que o feto é um ser humano inocente; mas defendem que o aborto é, apesar disso, admissível. Irei considerar três argumentos em favor desta perspectiva. O primeiro argumento é o de as leis que proíbem o aborto não evitarem que ele se pratique – apenas o tornam clandestino. (…) Assim, o efeito de proibir o aborto não é tanto o de reduzir o número de abortos efectuados, mas o de aumentar as dificuldades e os perigos para as mulheres com gravidezes não desejadas. (…) O segundo argumento é também sobre as leis do aborto, e não sobre a sua ética. Adopta a perspectiva de, como se escreve no relatório da comissão nomeada pelo governo britânico para efectuar um inquérito às leis sobre a homossexualidade e a prostituição, ser «preciso conservar um reduto de moralidade e imoralidade privadas com o qual a lei nada tem, pura e simplesmente, a ver». (…) O último dos três argumentos que procuram justificar o aborto sem negar que o feto seja um ser humano inocente é o de que a mulher tem o direito de escolher o que acontece ao seu próprio corpo. (…) A fraqueza da primeira premissa do argumento conservador reside no facto de assentar na nossa aceitação do estatuto especial da vida humana. Vimos que «humano» é um termo que comporta duas noções distintas: pertencer à espécie Homo sapiens e ser uma pessoa. A partir do momento em que o termo é dissecado desta forma, a fraqueza da primeira premissa conservadora torna-se evidente. Se «ser humano» for usado como equivalente a «pessoa», a segunda premissa do argumento, que afirma que o feto é um ser humano, é claramente falsa – pois não se pode defender de forma plausível que o feto seja racional ou autoconsciente. (…) Como nenhum feto é uma pessoa, nenhum feto tem o mesmo direito à vida que uma pessoa. (…) Uma objecção provável ao argumento que apresentei na secção anterior defende que só considerei as características efectivas do feto, e não as suas características potenciais. (…) Não levantei até agora a questão da potencialidade do feto porque achei melhor incidir no argumento central contra o aborto; ma sé verdade que se pode elaborar um argumento diferente, baseado na potencialidade do feto. Chegou a altura de estudarmos esse argumento. Podemos enunciá-lo da seguinte forma:
Primeira premissa: É um mal matar um ser humano em potência.
Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano em potência.
Conclusão: Logo, é um mal matar um feto humano.
(…) Não há uma regra que determine possuir um X em potência o mesmo valor que X ou ter os mesmos direitos que X. Temos muitos exemplos que mostram justamente o contrário. Arrancar uma bolota de carvalho em germinação não é o mesmo que abater um venerável carvalho. Lançar uma galinha viva numa panela de água a ferver seria muito pior do que fazer o mesmo a um ovo. O príncipe Carlos de Inglaterra é um rei em potência, mas não tem efectivamente os direitos de um rei. Na ausência de qualquer inferência genérica de «A é um X em potência» para «A tem os direitos de X», não devemos aceitar que uma pessoa em potência possa ter os direitos de uma pessoa, a menos que possamos fornecer alguma razão específica para explicar por que motivo deve ser assim neste caso específico.»
Peter Singer, in Ética Prática, tradução de Álvaro Augusto Fernandes, Gradiva, 2.ª edição, Setembro de 2002.
Primeira premissa: É um mal matar um ser humano inocente.
Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano inocente.
Conclusão: Logo, é um mal matar um feto humano.
(…) Alguns progressistas não contestam a afirmação conservadora de que o feto é um ser humano inocente; mas defendem que o aborto é, apesar disso, admissível. Irei considerar três argumentos em favor desta perspectiva. O primeiro argumento é o de as leis que proíbem o aborto não evitarem que ele se pratique – apenas o tornam clandestino. (…) Assim, o efeito de proibir o aborto não é tanto o de reduzir o número de abortos efectuados, mas o de aumentar as dificuldades e os perigos para as mulheres com gravidezes não desejadas. (…) O segundo argumento é também sobre as leis do aborto, e não sobre a sua ética. Adopta a perspectiva de, como se escreve no relatório da comissão nomeada pelo governo britânico para efectuar um inquérito às leis sobre a homossexualidade e a prostituição, ser «preciso conservar um reduto de moralidade e imoralidade privadas com o qual a lei nada tem, pura e simplesmente, a ver». (…) O último dos três argumentos que procuram justificar o aborto sem negar que o feto seja um ser humano inocente é o de que a mulher tem o direito de escolher o que acontece ao seu próprio corpo. (…) A fraqueza da primeira premissa do argumento conservador reside no facto de assentar na nossa aceitação do estatuto especial da vida humana. Vimos que «humano» é um termo que comporta duas noções distintas: pertencer à espécie Homo sapiens e ser uma pessoa. A partir do momento em que o termo é dissecado desta forma, a fraqueza da primeira premissa conservadora torna-se evidente. Se «ser humano» for usado como equivalente a «pessoa», a segunda premissa do argumento, que afirma que o feto é um ser humano, é claramente falsa – pois não se pode defender de forma plausível que o feto seja racional ou autoconsciente. (…) Como nenhum feto é uma pessoa, nenhum feto tem o mesmo direito à vida que uma pessoa. (…) Uma objecção provável ao argumento que apresentei na secção anterior defende que só considerei as características efectivas do feto, e não as suas características potenciais. (…) Não levantei até agora a questão da potencialidade do feto porque achei melhor incidir no argumento central contra o aborto; ma sé verdade que se pode elaborar um argumento diferente, baseado na potencialidade do feto. Chegou a altura de estudarmos esse argumento. Podemos enunciá-lo da seguinte forma:
Primeira premissa: É um mal matar um ser humano em potência.
Segunda premissa: Um feto humano é um ser humano em potência.
Conclusão: Logo, é um mal matar um feto humano.
(…) Não há uma regra que determine possuir um X em potência o mesmo valor que X ou ter os mesmos direitos que X. Temos muitos exemplos que mostram justamente o contrário. Arrancar uma bolota de carvalho em germinação não é o mesmo que abater um venerável carvalho. Lançar uma galinha viva numa panela de água a ferver seria muito pior do que fazer o mesmo a um ovo. O príncipe Carlos de Inglaterra é um rei em potência, mas não tem efectivamente os direitos de um rei. Na ausência de qualquer inferência genérica de «A é um X em potência» para «A tem os direitos de X», não devemos aceitar que uma pessoa em potência possa ter os direitos de uma pessoa, a menos que possamos fornecer alguma razão específica para explicar por que motivo deve ser assim neste caso específico.»
Peter Singer, in Ética Prática, tradução de Álvaro Augusto Fernandes, Gradiva, 2.ª edição, Setembro de 2002.
1 Comments:
Peter Singer foi a descoberta que devo à campanha deste referendo. Não o conhecia. Falaram-me dele como um perigoso radical inumano, mas o que lhe li até agora - por enquanto só na net - apresenta-me um humanista com pensamento desassombrado, com coragem e honestidade intelectual, figura muito diferente da pintada pela calúnia dos defensores do irracionalismo.
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