APRENDER A CONTAR #34
QUASE-TISANA N.º RL-24.X
Era uma vez um pé de lápis. Saído de casa de manhã encontrou um sapato. Surpreendido pela estranha forma disse para consigo: que será isto? Estacou diante do sapato e começou a rodeá-lo, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, depois para cima, depois para baixo. Mas para dentro? Aí o lápis quis dobrar a cabeça. Mas não via nada. Recomeçou a rodear o sapato dando voltas sobre voltas. Mas para dentro? Recomeçou da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, subindo aos poucos pelo corpo do sapato. Começou a estar estonteado. Para dentro, dizia, para dentro. E continuava às voltas, às voltas, às voltas. Até que por fim, exausto, caiu no chão. Atordoado ia fechar os olhos quando viu que estava dentro de água. Dentro de água? À sua volta flutuavam inúmeros outros lápis emergindo nos mais variados ângulos. Eram muitos lápis. Como? ― disse para consigo ― então sou tantos? Olhou para cima e viu o sapato. Ao erguer os olhos ergueu também a cabeça, mas todos os outros lápis se ergueram ao mesmo tempo, possuídos de uma flexibilidade amolecida que a tontura colectiva não chegava para explicar. Erguiam-se como ondulantes fitas, mas não ondulantes: coleantes. Era um erguer de rastejar. Começaram subindo pelo sapato. Ascensão sinuosa, achatada. O sapato era enorme, acidentado. Agora todos os lápis gritavam: Para cima! Para dentro! Um exército de ondulações, tacteantes, platelmintes de lábios pintados. Para cima! Para dentro! Os lápis subiam de cores. Para cima! Para dentro! O bordo do sapato. Bastante estreito. Inesperado para os lápis, no seu esforço de subida. O impulso fora em excesso. Agora as cabeças pendiam para dentro mas para baixo. Pendiam exaustamente desordenadas. Era uma dentadura mole da fenda. Para dentro era fora. Um instante de reflexão e todos os lápis escorregam pelo sapato fora. O sapato flutuava coberto de marcas da passagem dos lápis desaparecidos.
Ana Hatherly (1929), 463 Tisanas, Quimera, pp. 173-174, 2006.
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