IVG #55
A complexidade do problema do aborto advém do facto de ser um problema sobre o qual várias perspectivas são possíveis e legítimas. Acresce que, às múltiplas perspectivas possíveis, cola-se uma tendência irresistível para misturar no espaço legítimo da discussão abordagens diversas como a religiosa, a filosófica, a política, a científica, a cultural, etc. Deste modo, a perspectiva política mistura-se facilmente com a religiosa, esta com a filosófica, e ainda a científica, mais todas elas juntas numa obscura salada de asseverações, premissas e raciocínios que, inevitavelmente, acabam por esvaziar-se nas convicções de cada um. A minha convicção pode facilmente ser resumida neste raciocínio: ninguém pode obrigar uma mulher a levar avante uma gravidez que não deseja; quando se vê obrigada a tal, essa mulher, se assim for a sua vontade, abortará (com lei ou sem lei); sendo assim, melhor que o faça quanto antes, evitando abortos em fases avançadas da gestação, e em clínicas especializadas para o efeito, protegendo a sua integridade física e psíquica. Compreendo a perspectiva religiosa, segunda a qual o aborto é um mal que deve ser evitado; até aceito que para os católicos o aborto deva ser um crime e as mulheres que o pratiquem devam ser julgadas como criminosas. A defesa intransigente da vida humana leva a essas posições mais extremadas. Compreendo-as, mas não aceito que as mesmas me sejam impostas, sobretudo num Estado que se diz laico e independente e autónomo da Igreja. Como tal, gostava que os católicos que tão fervorosamente assumem essa posição de indiferença às opiniões contrárias, impondo o seu NÃO a todo o custo, investissem algum do seu esforço no combate ao aborto clandestino, na promoção de políticas de planeamento familiar adequadas à realidade, na defesa de uma educação sexual sem preconceitos, na luta contra a pena de morte, contra os abusos sexuais de menores, que fossem implacáveis com os seus padres pedófilos, e que compreendessem, de uma vez por todas, que as leis de um Estado democrático devem ser aplicadas a pensar em todos e não podem privilegiar grupos de interesse, posições morais específicas, posturas de fé. Não tenho dúvidas que tal esforço lhes será possível e até facilitado, com ou sem santinhas a verterem lágrimas de sangue por "fetos assassinados", com ou sem Zezinho – boneco que reproduz um feto de 10 semanas -, com ou sem agências de comunicação a servirem-lhes os interesses de borla, com ou sem o patrocínio de bancos, com ou sem panfletos intimidatórios a cartas aterrorizadoras. Ninguém nega, entenda-se, a existência de uma vida humana em geração a partir do momento da concepção. Mas não é essa vida que está em causa no referendo, tal como não é essa vida que está em causa nas possibilidades de aborto que a lei já prevê. Ficou claro em posts anteriores que o valor de um feto não é equiparável ao valor de um ser humano já feito, por exemplo, a mãe. Não é, nunca foi e nunca será. Não há no mundo ninguém que defenda que entre um feto e uma mãe a vida do feto deva prevalecer. Peter Singer é muito claro quando afirma: «não devemos aceitar que uma pessoa em potência possa ter os direitos de uma pessoa». É tão claro, pelo menos, quanto Francis Fukuyama quando diz que não devemos considerar «os embriões como seres humanos detentores dos mesmos direitos que reconhecemos a um bebé». Não espero que as considerações dos dois eminentes filósofos valham mais que as dos ilustres defensores do NÃO que temem, com uma alteração à lei que permita o aborto, desde que a pedido da mulher e em estabelecimento de saúde autorizado para o efeito, até às 10 semanas, uma banalização do gesto abortivo, uma bandalheira que pode passar, como escutei num programa televisivo, pela transformação do aborto num negócio de matéria fetal. O que penso é que o cenário que temos neste momento é o mais negro de todos: aborta-se indiscriminadamente, em qualquer altura, de qualquer maneira, pelas mais diversas razões, criando-se assim um problema de saúde pública insustentável. Se as opiniões dos dois eminentes filósofos supracitados não chegam, então que cheguem os números: «calcula-se que no último ano tenham sido feitos cerca de 18 mil abortos em Portugal», «o aborto clandestino levou em média três mulheres por dia aos serviços de urgência hospitalar», «27% das mulheres que praticam aborto são internadas para tratar complicações», «só no ano de 2005 terão ido a Espanha abortar cerca de 4000 mil mulheres»… É esta a situação que o voto no NÃO manterá. É esta situação que o voto no SIM pretende mudar. Por isso, como é óbvio, eu votarei SIM.
Na foto: eu e a Matilde, a minha filha mais velha.
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6 Comments:
Como é óbvio eu também votarei SIM
SIM também.
Maria João
Eu voto SIM.
Belo e Terno registo fotografico. Quando subsistem momentos assim, tao particulares, (de pai com filha), tudo o mais, Caro Henrique, é somenos. Tudo o mais me parece somenos.
Meu caro,
Não me vou desdobrar em encómios acerca da tua pessoa, já o fiz e ainda redunda em assédio.
Admiro a tua luta por esta causa nobre e conhecendo a tua prévia condição de pai babado, aquela mais louvável se torna.
Terminas bem, o teu texto, a tua Matilde é linda (quanto ao pai terei de chamar a apreciadora do género cá de casa :))
Um abraço e que o próximo domingo sirva pelo menos para abanar este país de sacristas.
Felicito-o, Henrique, pelos seus 55 posts sobre o IVG. Um exemplo de cidadania na blogosfera.
Abraços.
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