29.10.08

APRENDER A CONTAR #35

HISTÓRIA DE AMOR
(I)

Era uma vez uma Ela e um Ele e sabe Deus quantas mais personagens secundárias, que, consideradas sob outra perspectiva, podiam bem ter sido protagonistas; nesta história, porém, são personagens secundárias, o que nos faz muita pena, e pelo facto apresentamos as nossas desculpas. Voltando aos nossos dois heróis e à nossa história de amor, que é uma história muito simples, teríamos a dizer que ele gostava muito dela, por assim dizer, de todo o coração, e que por sua vontade se casaria de imediato com ela, com o profundo desejo de a fazer feliz, bem como a si próprio, que é um desejo que tem sido desejado desde que há homens no mundo. Só que havia um obstáculo, e o obstáculo era este: aquela que ele amava e que desejava tomar como esposa era sobremaneira irascível, tendendo infelizmente a zangar-se por tudo e por nada com grande precipitação, o que não lhe agradava nada, e a ela porventura também não. Parecia ser uma fraqueza dela, que ela provavelmente teria preferido que passasse a ser uma força; infelizmente, porém, a sua fraqueza revelou-se forte, ao passo que a sua força se mostrava bastante fraca, um facto que tanto ela como ele, que em tudo mais a prezava, estavam em posição de lamentar, dito de outro modo, tinham bons motivos para deplorar. Ela tinha um rosto e um porte magníficos, de um esplendor esbelto, para nos servirmos desta expressão enquanto não nos ocorrer nenhuma melhor. A inspiração é rara, e os autores têm de contentar-se com o pouco de espírito que o destino clementemente lhes concede. Se ela era grande e imponente, oh decerto, mas assim que se zangava, a sua beleza quebrava-se e perdia-se, e isso mesmo intuía com consternação aquele que em tudo o mais a admirava, e foi armado com esta intuição que, certo dia,
assim por volta das cinco da tarde, ele lhe disse, em tom confidente e explicativo: «Ouve, meu amor, caso-me contigo e sirvo-te o resto da vida, desde que consigas refrear por um ano inteiro esse teu mau génio, que tanto te diminui quando te domina.» Foi a sorrir que disse estas palavras, como um homem satisfeito com a sua coragem, e com efeito uma declaração tão sincera requer bravura. Isso qualquer um percebe. E ela, acatou o que ele disse? Sim, foi isso mesmo que ela fez, e resta-nos apenas supor que tenha dado provas de grande brandura e paciência, que tenha florido como uma flor na Primavera, e que, findo o período de prova, se tenha mostrado tão amável, revelando tão grande sossego por dentro e saúde por fora, que desse gosto olhar para ela, ocupação a que se terá dedicado com grande atenção aquele que, supomos nós, agora se alegrava com o resultado e se decidia a cumprir a sua palavra. Ao certo, ao certo, não sabemos nada; temos apenas a esperança de que tudo tenha corrido pelo melhor, o que nem sempre é o caso, mas uma vez por outra também pode suceder, e é com esta esperança que pomos a história dentro do cofre onde ela pertence, fechamos a porta e nos regozijamos com o seu valor que, se não é grande, será ao menos modesto.

Robert Walser (1878- 1956), Histórias de Amor, trad. Isabel Castro Silva, Relógio D’Água, pp. 179-180, Abril de 2008.

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2 Comments:

At 6:51 da tarde, Blogger Maria said...

...este insónia é mesmo, mesmo bom!

 
At 7:04 da tarde, Blogger hmbf said...

Obrigado. É mesmo, mesmo bom sabê-lo.

 

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