1.11.08

APRENDER A CONTAR #36

O MENINO QUE TINHA DEZ ESTRELAS

Agora é noite e já vou longe. Agora é a cidade que me diz: ― Marca as tuas mãos nas janelas!
Olho. Uma luz desaparece pela máscara trágica de uma fonte. E a água? A água salta de repente da bocarra:
― Olha o teu calor! ― Parei.
― Olha o teu calor!
Espreito pela esquina e venero-me porque ainda posso desejar. Eu não posso perder-me nem achar-me.
O comboio rompe com lamentos de criança e um menino embriagado que não suporta as dores de cabeça, deita-se suavemente sobre a linha.
A esta hora, na cidade, as pessoas comem e bebem. Talvez seja aqui mesmo ao lado mas não ouço. Ouvi o comboio... Passou...
O rosto lívido do menino olha-me sem tristeza nem alegria e diz-me:
― É tão tarde! Tão frio! ― E vai-se embora.
Levanto os olhos e conto eternidades: dez estrelas, rosto branco, comboio assassino, menino morto... perco o conto.
Vejo as sombras dos postes telefónicos sobre as linhas e para me entreter dou vida à minha sombra. Mas a minha sombra desola-se.
Por isso estou com uma grande tristeza. A tristeza do único homem que está sempre triste num jantar de anos. Como o viajante que passa alguns anos nos melhores sofás a minha tristeza é como se não sobrasse uma última pedra para fazer um deus.
E a minha sombra desola-se murmurando uma confissão onde há os desígnios do comboio. Parece um anel de morte que reveste o dia de uma angústia humedecida de espuma negra. Olho o sol (gesto desesperado) enquanto baloiço um fantasma no peito.
Foi então que o menino agarrou a sombra e disse-me: ― Gasta a tua imagem nos espelhos.

Fernando Alves dos Santos (1928- 1992), Diário Flagrante, Assírio & Alvim, pp. 43-44, Março de 2005.

#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10 / #11 / #12 / #13 / #14 / #15 / #16 / #17 / #18 / #19 / #20 / #21 / #22 / #23 / #24 / #25 / #26 / #27 / #28 / #29 / #30 / #31 / #32 / #33 / #34 / #35