APRENDER A CONTAR #39
ROSA SINTÉTICO
Às vezes vejo-o. Sentado ali. Satisfeito. A partir o pão. A olhar pela montra do restaurante. A mexer o seu café, um ar de quem sonha. Não posso dizer em que é que ele está a pensar, mas não há perturbação nenhuma. É um rosto calmo. Nenhuma preocupação. O jornal está dobrado ao lado dele, dobrado com todo o cuidado; vincado com precisão. Os óculos descansam sobre a toalha de mesa. Tudo está tranquilo à volta dele. Rodeado de ordem. Sorve a sua sopa à maneira europeia, inclinando o prato, manobrando a colher tão longe quanto possível. Limpa o lábio superior meticulosamente com o guardanapo de linho. Depois, com mãos delicadas, limpa o queixo de algum resto que tenha ficado. Devolve o guardanapo ao mesmo joelho e desdobra-o suavemente, amansando todas as rugas. Vejo o anel no seu dedo mindinho, brilhando. Um anel azul-líquido que cintila ao sabor do sol que dá na montra. Um pássaro esvoaça na rua e os olhos dele erguem-se para o seguir, depois regressam ao prato da sopa vazio. Pega no prato com as duas mãos e afasta-o para o lado. Depois, lentamente, pega no copo de água. Bebe e só pára de beber quando o copo está vazio. Posso ver a garganta dele pulsando enquanto a água gelada desce rápida. Os olhos dele fecham-se como se estivesse num êxtase e a sonhar com alguma coisa muito longe dali.
Eu estava lá quando lhe abriram a boca e lhe retiraram a dentadura. Puseram os dentes numa mesa de aço inoxidável e ataram-lhes uma etiqueta amarela com arame. A etiqueta tinha números, escritos a preto. Os números eram a data e a hora da sua morte. Ataram outra etiqueta, com os mesmos números, ao dedo grande do pé esquerdo. Depois, levaram o corpo na mesa de rodas. A etiqueta amarela do dedo grande tremulava uma coisa de nada, como uma bandeira minúscula, depois desapareceu por duas portas de vaivém. As portas ficaram a bater por um bocado, depois pararam. Os dentes dele tinham ficado esquecidos, desamparados, na mesa de aço inoxidável. As gengivas eram rosa sintético, e ainda tinham um bocado de alface pegado, entre os molares. Virei a etiqueta amarela e do outro lado havia mais números pretos: a data de nascimento dele.
12/4/93
(NEW YORK CITY)
Sam Shepard (1943), Atravessando o Paraíso, trad. José Vieira de Lima, Difel, pp. 173-174, Fevereiro de 1997.
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