APRENDER A CONTAR #46
O NOVO CHEFE
Quando teve a certeza que o seu pai tinha conseguido o contrato dos fornos, que o fumo que cobria a cidade, as nuvens cálidas como a sua pele eram obra de seu pai, sentiu-se livre do amor vazio que sentia ficou legalizado.
Higiénico como um chicote, o seu coração despojou-se dos álibis da devoção, livre como uma ponte derrubada por uma tempestade, inútil e puro como um despertador afogado, inspirou profundamente cheio de gratidão na atmosfera poluída e exclamou: O meu pai conseguiu o contracto dos fornos, ele amava a minha mãe e construía-lhe vivendas no campo.
Quando teve a certeza que o seu pai tinha conseguido o contrato dos fornos, subiu a um monte de monóculos, sentou-se na corrente de ar de um cabelo, odiou com enorme naturalidade a chusma de inválidos, as suas mães, os maridos e as esposas, o sonho familiar das obrigações dignas.
Depois de descer St. Catherine Street a dançar realizou uma intervenção cirúrgica numa hospedaria. As janelas gotejavam como um congelador estragado. Do seu ódio desprendia-se uma brancura de sal sobre as calçadas. Não se salvou ninguém e sentiu-se feliz por ter possuído à luz da lua, no seu passado que pertencia já à história, cento e cinquenta mulheres.
Embriagou-se por fim. Após ter passado anos a pisar o colar de margaridas da história, feito de beleza atrás de beleza. O seu pai tinha levantado nuvens em forma de coxa, que cheiravam a caixeiros-viajantes, ciganos e violinistas. Com a segurança e o prazer genital que lhe proporcionava aquela revelação, não pôde duvidar que fora o seu pai que conseguira o contrato dos fornos.
Bêbado por fim, abraçou-se a si mesmo. Bêbado, gelado e de estômago vazio. O céu claro, mas só para ele. Sentia-se livre para tremer, livre para odiar, livre para começar de novo.
Leonard Cohen (1934), Filhos da Neve, versões de Jorge Sousa Braga e Carlos Tê, Assírio & Alvim, pp. 93-95, 2.ª Edição, 1997.
1 Comments:
Tenho o prazer de vos convidar para a apresentação do livro "O peso da Nuvem" de Ana Marta Fortuna da editora Alma Azul no dia 03 de Dezembro 2008 pelas 21 horas no espaço de intervenção cultural - Maus Hábitos (Rua Passos Manuel 178, 4º andar
4000-382).
A apresentação está a cargo do escritor e fotógrafo Pedro Ferreira.
Conta com as leituras de Pedro Saavedra e dos alunos da ESMAE Inês Neves, Sara Reis e Teresa Vieira.
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