APRENDER A CONTAR #51
A OBSESSÃO
Datava aquela máquina de 1998.
Era portanto de um modelo bastante antigo mas havia dez anos que ela prestava óptimos serviços à firma que a tinha concebido.
Era ela quem praticamente governava a casa. Comprava, seleccionava, previa, vendia, facturava; também pensava, mas não muito. Para dirigir uma empresa, aliás, não é indispensável pensar. Bastava que a máquina fosse eficiente.
Certo dia avariou-se-lhe qualquer peça. A máquina, em vez de transmitir o balanço do fim do ano, esperado por toda a gente, deu-lhe para enviar uma delirante missiva de amor, aliás muito picante, a uma dactilógrafa dos serviços de fabricação.
Isto causou muito má impressão, até porque a máquina nesse dia não fez mais nada. Lá foi uma equipa de electrónicos examinar as entranhas da máquina, armados até aos dentes com o mais variado instrumental. Não descobriram nada, nem sequer um circuito defeituoso. E no dia seguinte, após a planificação, quando a máquina devia começar a redigir duzentas facturas, expeliu e enviou duzentas cartas pornográficas, endereçadas aos mais bem-pensantes de todos os clientes da empresa.
Foi um escândalo e julgou-se ser o momento asado para se retirar à máquina parte das suas faculdades. Foi fácil depois negociá-la, ficando apenas com as meras funções de máquina de calcular aperfeiçoada. A solução foi perfilhada pelo próprio psicanalista da empresa. Mas os números que ela debitou, a cadência assaz satisfatória, mostravam-se falsos, completamente fantasista. Computava, sim, mas como se fosse um pobre de espírito.
O médico da empresa propôs um repouso prolongado. Lá foi a máquina para um barracão desocupado.
Passados meses, houve um empregado que por acaso penetrou no barracão. Ficou pasmado ao ver que a máquina continuava em actividade. Continuava a fazer contas. Alinhava números atrás de números, números que nunca mais acabavam. O empregado pegou no rolo de papel que a máquina expelia a um ritmo implacável.
Leu. Mal queria crer no que via:
6969696969696969696969696969696969696969
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Mais nada. Só estes dois algarismos. Tinha já quilómetros e quilómetros de papel em que só se viam estes dois algarismos.
Jacques Sternberg (1923-2006), 270 Contos de Arrepiar, trad. Paulo da Costa Domingos e Manuel João Gomes, Arcádia, Fevereiro de 1977.
2 Comments:
Que bela história com 69 no fim !
Maria João
Estou para aqui a pensar por que raio a máquina se fartou de escrever tantas vezes seiscentos e noventa e seis mil, novecentos e sessenta e nove... e não percebo a razão.
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