APRENDER A CONTAR #50
APÓS A MORTE
Sem o mínimo terror, o suicidado, depois de se ter agarrado por um instante às colgaduras da varanda (esperava-se a vinda de um rei) estatelou-se no meio da rua. Aqui principia a estranha história; o morto põe-se de pé, vai bater à porta do seu melhor amigo: a campainha não faz o mínimo barulho, e contudo ele introduz-se em casa. Fala. Alguém o terá ouvido? Ninguém responde. Vai a casa de uma senhora. Um outro assunto. A senhora, que estava a ler um poema do suicidado, entra em discussão com o poema, mas não com o suicidado. «Terei eu morrido a sério? ― pergunta ele a si próprio. ― Ainda é tempo de me arrepender dos meus erros. Dirigiu-se o suicidado para a igreja: «Pois com certeza! Cá está o meu enterro: reconheço-o pela presença do meu porteiro e da minha criada. Os meus amigos evidentemente que estão a festejar.»
Max Jacob (1876-1944), in A História do Diabo Enamorado de Cazotte, seguida de O Recibo do Diabo de Musset e O Diabo Engarrafado de Stevenson, org. Manuel João Gomes, trad. Luiza Neto Jorge, Arcádia, Outubro de 1977.
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