APRENDER A CONTAR #53
A LONGÍNQUA CANÇÃO
A missão era enorme e em cada instante maior como os abismos que estremam as galáxias. Tanto percorrera já e nem um indício do que o dedo cibernético solene lhe apontara: DEUS NÃO ESTAVA MORTO. Era algures dentro e fora das dimensões, talvez mais longe ainda do que a imaginação pudesse supor ― ou tão perto que a sua grandeza não deixava reconhecê-lo, de uma tão intensa luz que vencia o mais poderoso dos buracos negros. Para o astronauta quanta vigília a perscrutar o nada. Quanta renúncia ao tempo para buscar um sinal do tempo. Atrás ficara um planeta azul sem regresso possível pois se regresso houvesse só encontraria os umbrais de um passado sepultado em cinza e silêncio. mas na Terra um veneno subtil minava os restos da raça dos semi-deuses que apenas sacrificavam nas aras do tédio. É que desejar e possuir haviam-se confundido num só acto. Fora então que a sibila programada da letal insónia, propiciadora de todas as panaceias, havia murmurado na sua voz mecânica e distante que a Centelha tinha de ser encontrada, a mesma que havia incendiado Krishna, Buda, Jesus e Maomé e tão fundo sepultada na memória da raça. O homem fora abandonado, havia que descobrir porquê. Tal era o instante comando dos circuitos impressos na ténue fronteira entre morrer e estar vivo. Havia que obter a resposta antes que perguntar não fosse mais preciso. Mas, todas as bestas do espaço exterior e todas as vozes das rotas sem fim respondiam como o eco de um mar negro a fugir no vazio: HÁ MUITO NÃO É VISTO! E o cosmonauta, silencioso como uma lágrima, de olhos sonâmbulos fitos nos abismos, retomava o voo do seu pássaro de prata no ventre da estrénua caminhada. E o tempo passava. Na sua escotilha sucediam-se os universos em debandada repletos de pulsares, de novas, de planetas e no éter o fio da sua busca era um invisível e sinuoso rasto. Até que um dia, lá nos confins onde raia a loucura, alguém lhe disse que O havia reconhecido num planeta qualquer, num qualquer rosto de um ser qualquer. E o cosmonauta redobrou a procura no seu pássaro de prata julgando não estar longe. Assim chegou a hora. No horizonte de trevas que o cercava, viu um ponto de diamante a perfurar a distância. E num instante mística e ciência num só mergulho se tornaram. Einstein pregara sem saber. Deus era também a infinita velocidade. Aquela que reduz toda a sabedoria, toda a bondade, toda a dimensão a um vivíssimo ponto de luz a espalhar, por todo o sempre, o seu branco e luminoso canto. O ponto parou. E mil vulcões e estrelas lhe explodiram na cabeça. Os sóis e os cometas se apagaram. Ficou cego, ficou surdo, ficou mudo. E foi então que a pergunta, a que de tão longe resguardava no seu peito aflito, deixou de ter sentido.
ALGURES, NO ESPAÇO IMENSO, ENTRE TER SIDO OU NÃO, NO SONHO DAS ESFERAS, UMA CRIANÇA DORMIA.
Dezembro de 1979
Adalberto Alves (1939), in O gume e o tempo, Arcádia, pp. 79-80, Dezembro de 1982.
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