1.1.09

APRENDER A CONTAR #58

ORFEU LAVRADO

Orfeu o bardo era um homem que não sabia esperar. Depois de perder a mulher, porque a possuiu cedo de mais a seguir ao parto ou porque olhou quando não devia ao tirá-la do mundo dos mortos depois de a libertar da morte pelo seu canto, fazendo-a regressar ao pó antes de ela novamente se fazer carne, Orfeu inventou a pederastia, que evita o parto e está mais perto da morte do que o amor pelas mulheres. As rejeitadas perseguiram-no: com as armas dos seus corpos troncos pedras. Mas a canção poupa o bardo: o que ele tinha cantado não lhe chega à pele. Camponeses, assustados com o barulho da perseguição, fugiram e largaram os arados, que não tinham encontrado lugar na canção dele. E assim ele encontrou o seu lugar entre os arados.

Heiner Müller (1929-1997), O Anjo do Desespero, trad. João Barrento, p. 29, Relógio D’Água, Janeiro de 1997.

#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10 / #11 / #12 / #13 / #14 / #15 / #16 / #17 / #18 / #19 / #20 / #21 / #22 / #23 / #24 / #25 / #26 / #27 / #28 / #29 / #30 / #31 / #32 / #33 / #34 / #35 / #36 / #37 / #38 / #39 / #40 / #41 / #42 / #43 / #44 / #45 / #46 / #47 / #48 / #49 / #50 / #51 / #52 / #53 / #54 / #55 / #56 / #57