APRENDER A CONTAR #67
ARPEJOS
1
Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho examinei o local. Não surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais tem significado a mais. Passei pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam igualmente meus projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim poderia reavivar a irritação. Em vez decidi me dedicar à leitura.
2
Ontem na recepção virei inadvertidamente a cabeça contra o beijo de saudação de Antônia. Senti na nuca o bafo seco do susto. Não havia como desfazer o engano. Sorrimos o resto da noite. Falo o tempo todo em mim. Não deixo Antônia abrir sua boca de lagarta beijando para sempre o ar. Na saída nos beijamos de acordo, dos dois lados. Aguardo crise aguda de remorsos.
3
A crise parece controlada. Passo o dia a recordar o gesto involuntário. Represento a cena ao espelho. Viro o rosto à minha própria imagem sequiosa. Depois me volto, procuro nos olhos dela signos de decepção. Mas Antônia continuaria inexorável. Saio depois de tantos ensaios. O movimento das rodas me desanuvia os tendões duros. Os navios me iluminam. Pedalo de maneira insensata.
Ana Cristina Cesar (1952-1983) , in Um Beijo que Tivesse um Blue – Antologia Poética, Quasi Edições, p. 52, Novembro 2005.
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6 Comments:
Henrique,
Desculpa a pergunta, mas é mesmo curiosidade de amador de blogs. Como consegues ter tempo para estas inumeras postagens diárias neste blog? Fico surpreendidíssimo pela positiva sempre que aqui venho... Aquilo que consegues descobrir é incrível...
Arpejos arrepiantes. Será, possivelmente, isto, as 2overdoses de beleza" com que queremos morrer.
Anónimo, digamos que sou muito organizado (cof, cof…). Por exemplo, hoje saí do serviço às 23. Mais 15 minutos para fechar a caixa e outros 15 para despejar o lixo, eis-me em casa às 23:35. Vesti o pijama, abri uma mini e um pacote de Cheetos e aqui estou eu a responder-lhe e a ver a Maria Elisa em directo. Agora tenho, pelo menos, três horas pela frente para fazer o que bem entender. As insónias são a única matéria de facto neste weblog.
BSV, isto é bom e é vivo.
Cohecia a poesia de Ana Cristina Cesar. Não sabia que sua prosa é tão boa.
Janaiana, é tudo o mesmo. E é bom.
Me orgulho em ver Ana C. por aqui
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