A crescer
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descer fundo

Antes de entrar na adolescência propriamente dita, as paredes do meu quarto estavam forradas com posters dos Dire Straits e da Madonna. Isto foi antes de ter lido O Papalagui e de ter percebido que uma coisa era a Índia outra coisa eram os índios e outra ainda os cowboys. Quando descobri os The Doors, substituí os posters da Madonna e dos Dire Straits por uma grande bandeira de pano com a Janis Joplin a fumar um charro. Daí à tradicional imagem do Che Guevara foi um palmo. No entanto, a febre comunista passou-me mais rapidamente do que uma gripe dos três dias. Há tempos ri-me com a atitude de um jovem editor, num dos weblogs de reverência, lembrando os crimes horrendos perpetrados pelo revolucionário argentino. A razão da comédia residia no facto do mesmo jovem editor estar prestes a publicar um livro onde se cantava: «a foto do Che e a boina, o olhar, a estrela e volto a acreditar que a revolução impossível é mesmo possível». (A. Pedro Ribeiro) Com o tempo, fui aprendendo a simpatizar com uma seita muito escassa de líderes. Mahatma Gandhi à cabeça e pouco mais. Dispenso ideologias que não sejam pela paz e contra a guerra, que imponham a muitos a vontade de poucos, que obriguem os desarmados a uma vida de servidão e estúpido sacrifício. A ter que aderir a uma causa, aderirei sempre à da liberdade, da autonomia, da independência, da paz. Espanto-me como certas pessoas se chocam com as confissões de Günter Grass pouco tempo depois de, com a maior das ligeirezas, terem advogado o direito à destruição, à invasão, à justiça do olho por olho, etc. Para quem não tem fome, a miséria dos outros há-de ser sempre uma questão abstracta. À esquerda e à direita, todas as extremas são absurdamente suínas. Assim como a extrema ao centro me parece arreia para burros. Em suma, desgostam-me tanto as extremas como o extremismo com que se enxota para as extremas as opiniões adversas. Quando o rosto do Che Guevara estava pendurado numa das paredes do meu quarto, sempre que não tinha argumentos para contradizer quem comigo discutia o que quer que fosse lá vinha a acusação do costume: isso é o que pensavam os nazis. Recentemente, estas puerilidades retóricas foram adaptadas à idade adulta em conceitos como os de «anti-semita» e de «anti-americano». Fiquei a saber que sempre fui coisas que jamais imaginaria poder vir a ser. Da «extrema-esquerda» e «infanticida» já sabia que era, por razão de outras acaloradas discussões. Entretanto fiquei a saber outras coisas acerca de mim mesmo pela tecla de quem não me conhece de lado algum. No fundo por uma razão tão simples: recuso-me a pensar pela cabeça das ideologias, prefiro pensar pela minha.
Não há remédio. Um tipo chega das férias, feliz e renovado, dá uma volta pelo mundo e logo esmorece. A Carla diz que a política estraga as pessoas, um amigo confessa-me que para onde quer que se volte só vê «facadas nas costas com um riso nos dentes», o “tom” dos weblogs de reverência cheira a sangue derramado. O Nuno, em nova toada melancómica, diz que tudo é ressentimento. O ressentimento, segundo informam as páginas amarelas da idade, dorme na mesma cama com a inveja em promíscua "ménage à trois" com a puta da vaidade. Vêm-me à memória versos de Nick Cave: «people just ain’t no good». Não sei se das pessoas, se do mundo, se dos outros, se de nós mesmos, se das más sementes, a verdade é que muitas vezes a culpa com que olhamos a vida parece querer virá-la do avesso. Fico-me pelos livros, pelas canções, pelos filmes, pela bola jogada em campos pelados, pelas praias onde os pescadores não vistam fatos de mergulho. Estou farto de gente que só tem certezas, a quem nada espanta e tudo contorna com a sabedoria da frase feita, do remate perfeito, da citação de pacotilha. Estou farto de gente para quem tudo é guerrilha, polémica, escaramuça. Na vacuidade dos debates, estrangeirismo-aqui-silabada-acolá, somos todos génios da palavra. Tudo será apenas isso se nada fizermos para que seja outra coisa. O primeiro álbum de Nick Cave & The Bad Seeds que adquiri tinha umas meninas angélicas, vestidas de branco, em torno de um piano de cauda. Abria com uma canção intitulada «Foi na Cruz». Por essa altura adquiri também um romance de Nick Cave, publicado em Portugal pela Editorial Estampa, com um título estranho: «E o Burro viu o Anjo…» Seremos nós burros à procura de um anjo que se veja? Fecho os olhos. Vejo mil burros cavalgando sobre o dentro da minha cabeça. Não vejo um único anjo. «You can see it everywhere you look / People just ain’t no good». Fecho os olhos. Vêm-me à memória palavras do romance de Nick Cave: «A clientela de Deus é pequena e seleccionada. O Diabo é que tem a pá.» Alguém que me explique uma coisa: qual o preço a pagar pelas coisas boas que não vemos? Quando foi a última vez que vimos um anjo, que o vimos de olhos fechados, com olhos de ver? Num verso de Rilke, talvez. Pouco mais. Às vezes é preciso arrumar a casa, limpar o pó das estantes, mudar de acento, espanejar as paredes, sacudir as almofadas. Às vezes é preciso desinfestar nos cantos mais insuspeitos a possibilidade de uma invasão. Talvez uma canção ajude.
MJLF, Um coração desassossegado, técnica mista s/papel, 21x35cm, 1995O gato Plácido continua a tentar conquistar a Lua com o seu canto grave à janela; a Lua com o nariz no vidro fica sempre com um ar de contentamento descontente, não confia em gatos vadios, nem vai naquelas cantigas facilmente; ela sabe o que é ser uma siamesa de luxo, uma gata burguesa. Aquilo é uma serenata das antigas e o Plácido anda um bocado esfarrapado por causa da vida que leva, anda nas gatas e fica de gatas à janela. Ser gato vadio é difícil, a sobrevivência é lixada. O Plácido é um predador que caça pássaros e ratos e luta pelo seu território com unhas e dentes.
Maria João