30.9.06

A conspiração dos mentirosos

Comecei a alinhavar umas palavras sobre coerência e convicções. Comecei logo por distinguir um discurso contraditório, mas coerente, de um discurso incoerente, não necessariamente contraditório. Depois lembrei-me de uma entrevista a Peter Singer publicada há anos, salvo erro, numa revista d' O Independente. Fui vasculhar nos arquivos e encontrei a dita. Singer, aí apresentado como filósofo de esquerda a dar aulas com polícia à porta, será um exemplo de coerência: «doa 1\3 do seu rendimento à ajuda aos famintos do mundo. Não como animais. Esta coerência socrática torna-o incómodo. Claro.» Uma das razões para que tão poucos intelectuais incomodem alguém hoje em dia é, quanto a mim, a incoerência que colocam nos gestos e nas palavras e nos raciocínios com que se lançam às questões. Não é uma questão de má-fé. É antes uma questão de incompreensão da mais básica das verdades: a verdade nunca está de um só lado da barricada. Na verdade, não existem barricadas no lugar da verdade. Vem isto a propósito da crónica Mentiras e Consequências, de Miguel Sousa Tavares, publicada hoje no Expresso. O "simpático Aznar" apontado como descarado mentiroso, mentiroso ao triplo. Sobre os quatro das Lajes diz o cronista português: «não se limitaram a mentir: forjaram os fundamentos das próprias mentiras, para vender à opinião pública, como justa e necessária, uma guerra que se revelaria, quer ética quer politicamente, completamente ilegítima e estúpida». Sugere-se mais uma vez a leitura do discurso de Harold Pinter aquando da aceitação do Prémio Nobel da Literatura. Um discurso, de resto, que me motivou variadíssimas dúvidas. E que tem tudo isto que ver com coerência e convicções? Remeto-vos para o Jornada.
Adenda: Acabei de ver uma boa edição do Quadratura do Círculo, onde aos quatro do costume se juntou o ex-PR Sampaio. Lá estava JPP, mais uma vez, em estampada incoerência consigo próprio. Queixa-se da política espectáculo, quando as políticas que defende são as que mais promovem o espectáculo da política. A sociedade de espectáculo é uma consequência directa da sociedade de consumo que, por sua vez, dificilmente poderá ser pensada sem o capitalismo desenfreado do Tio Sam. Aliás, JPP é ele próprio um dos políticos-espectáculo dos nossos tempos. Não é por acaso que já o apanhei pelo menos 3 vezes no Prós & Contras.

An Inconvenient Truth

Fui ao Nimas ver An Inconvenient Truth, o documentário de Davis Guggenheim com o ex-futuro presidente dos EUA – Al Gore. Enquanto comprava o bilhete fui informado da presença na sala de algumas visitas de estudo. Se bem sei, o documentário está em exibição no Nimas, no Amoreiras e no El Corte Inglés. Gostava muito de levar os meus formandos a ver este filme, mas para tal teríamos de conseguir um orçamento que suportasse a deslocação a Lisboa – aluguer do autocarro, gasóleo, portagens, bilhetes. É isto o ensino massificado, o direito à informação, a balela do ensino igual para todos. Uma treta! Os meninos de Lisboa poderão fazer do ensino uma festa, os restantes que aguardem pelo DVD. Desde que me lembro numa sala de aula, na qualidade de professor ou de formador, que abordo as questões ambientais. Geralmente começo pelo visionamento, seguido de debate, de Os Respigadores e a Respigadora, o excelente documentário de Agnès Varda. Fazemos assim a ponte entre os vícios da sociedade de consumo, consumismo desenfreado e desperdício, e as questões ambientais mais prementes, nomeadamente a escassez de recursos e a necessidade de reciclar. Depois partimos para a abordagem directa dos problemas ecológicos mais paradoxais. Os formandos elaboram exposições sobre energias renováveis, sobreaquecimento global, poluição dos solos, escassez de água potável, etc. Estes mesmos temas serão problematizados numa perspectiva de questionamento acerca do que poderá cada um de nós fazer para tornar o ambiente em que vivemos mais aprazível. A parte mais teórica surge então, com a análise de textos de Hans Jonas (conceito de contrato natural) e de Peter Singer (acerca da possibilidade de uma ética ambiental). Se ainda restar algum tempo, amenizamos o ambiente com o visionamento de Erin Brockovich, um filme de Steven Soderbergh que sempre estimula a perseverança e a vontade de mudar alguma coisa. Este Uma Verdade Inconveniente parece-me, então, um excelente documento didáctico para acrescentar à planificação anterior. Quando digo acrescentar, quero dizer também alterar, renovar, aperfeiçoar, na medida do possível. É um documento interessante, com uma linguagem bastante acessível, a tocar no essencial sem grandes pruridos políticos. É certo que a montagem não é das melhores, tornando por vezes descarada a intenção de uma auto-promoção que, do meu ponto de vista, acaba por ser legítima. Mas vale de facto a pena ouvir Al Gore e aprender alguma coisa sobre algo que já não é apenas um problema ambiental, na medida em que é cada vez mais um problema da humanidade enquanto parte interessada de um todo, o ambiente, no qual se inclui. Vou esperar pelo DVD.

Viva o mundo civilizado!

weblogs cuja média de visitas há-de ser sempre um mistério para mim. O Escrita em Dia, do jornalista Carlos Narciso, é um deles. Vale a pena passar os olhos por este post, sobre políticas de cooperação (em minúsculas, se faz favor) e crianças na Somália. Uma micro-história da vida real: «Gestos repetidos, meticulosamente. A bolacha durou uma rodada, outra rodada, ainda vi uma terceira. Era tudo muito lento, como se aquela bolacha tivesse de durar muito tempo. Não vi a bolacha chegar ao fim. Não fui capaz. Políticas...» Viva o mundo civilizado! P.S.: o que se entretém a debater os discursos do Papa, as visitas do PR, as declarações de um Nobel, o caralho que os foda a todos.

Objets Trouvés # 3

Beyoncé é boa é boa é

No Y, uma pequena nota sobre Beyoncé dá conta de que «da mesma forma que o comunismo condenou o rock por ser ‘decadente’, também hoje as autoridades iranianas censuram os vídeos R&B – enquanto a juventude islâmica acompanha as nádegas de Beyoncé». Ora aí está uma forma subtil de educar as massas e de fazer política. Na verdade, o rock começou por ser condenado pelo capitalismo por ser desviante. Foi isso que levou muitos cantautores, com inclinações comunas, a prescindir da folk mais tradicionalista em prol das guitarras eléctricas. O revisionismo histórico está, sem dúvida, na moda. No meio disto, safam-se as nádegas – e não só - de Beyoncé.

BERLOGUES

Do Universos Desfeitos passei ao Insónia. Depois, talvez, ao Da Literatura. Dias Felizes. Seta Despedida (recôndita, entreluz). Ao Ad Loca Infecta, por apreço de escritas. O Escrita Ibérica (já perdi a ordem disto), um escritor como deve ser. Poesia & Lda é pra imprimir e ler de resma. O Estado Civil, olha, faz-se de conta que não é antipático. Lia mas deixei de ler: Abrupto. BdE.

Surpresa mais recente: Acknowledge yourself. É daquelas que melhora (e agora só usa frases curtas quando é mesmo preciso). Uma moça com eles no sítio. Com poucos polícias, embravece-se (!). Apetece mostrar aos que só escrevem lamechices.

A melhor definição de conservador é do pif-paf: “Assim, resta-me a auto-ironia, a baixa auto-estima e a falta de sexo. Assim, sou conservador.”

Professora e sabão: http://palavrasdesabao.blogspot.com/2006/09/os-caminhos-do-ego.html

Um poema “menos que triste” (como alguém disse): http://theresonly1alice.blogspot.com/2006/09/como-pretexto-para-amputar-sonos-que.html

Satã hoje: http://tripnaarcada.blogspot.com/

E agora, vão-se catar.



Rui Costa

29.9.06

Asma

x – já ouviste Ventilan?
y – tens cá um ego.
x – ouviste?
y – ouvi.
A feira popular era linda. Muita animação, muitas luzes mas também muito pó. Algo de cósmico (os meus pais?) esteve contra mim nessa noite: tive o meu primeiro ataque de asma. Aos 4 anos. A partir daí a doença (doença?) instalou-se no meu peitinho desprotegido (falta de mãe?). Claro, não era só nos pulmões. Era no coração (disparava), nas mãos (tremiam), nas pernas (fraquejavam), na cabeça (enevoava-se), nos olhos (vermelhos de água). A asma tomava-me por completo. As situações propícias ao seu ataque aumentavam: se via um borrifo de pó, pimba! (tiraram a alcatifa do meu quarto e as flores de plástico da sala), se inalava produtos de limpeza, desde o Ajax (pobre deus) ao Pronto tira-nódoas, pumba! (o soalho do meu quarto não era encerado e diziam que os ácaros adoravam o meu colchão), se estava muito frio, toma! (e debaixo de quatro casacos, toma!), tudo (gatos? Estaria esta criança louca? Nem pensar. Animais domésticos têm a asma na alma!) mas tudo levava ao valente ataque de asma. Correr? Fica quieto. Brincar? Cuidado, é melhor não. O que é que eu posso fazer? Nada, se não ficas com asma. Terrível. A exclusão na altura da aprendizagem da inclusão, do convívio. Percebi mais tarde que a minha asma vinha directamente da minha cabeça, dos meus medos, da minha infelicidade. A tristeza interior revoltou-se. A revolta saiu em forma de asma (olhem, olhem, não respiro!) mas não teve bons resultados: a minha asma foi acariciada e mantida durante mais alguns anos sob uma paleta gigantesca de medicamentos (droga, droga para o menino ficar bom). Lembro-me de ir para a escola com sete e oito anos completamente pedrado (droga dura mesmo!). Na escola muitas vezes não podia brincar, jogar à bola. Tinha asma. Tens asma? Tenho. Custa muito? Um bocadinho. Quando é que passa? Não sei, tenho que tomar os remédios. Adeus. Adeus.Até que um dia um tal senhor doutor lembrou-se de aconselhar a minha mãe a levar-me à Natação. Abençoado homem. A cura pela água, pelo exercício (pelos vistos o esforço de um nadador era muito diferente de um corredor) e, claro, pelo convívio, aos poucos de igual para igual. Mas a sacana, mesmo assim, fazia as suas aparições. Ressurgia do nada para atormentar os momentos de mais tensão. Pois, sempre me pareceu uma doença nervosamente reactiva (aqui entre nós, pieguinhas). Mas isso, como já disse, aprendi com o tempo. Em tranquilidade não há asma.

* Este é o meu último texto para o Insónia. Um abraço de coração a coração para o meu amigo Henrique.
Nuno Moura

Lisboa

Ontem, após uma reunião de trabalho, fui a Lisboa. Enquanto procurava lugar para o carro, vi Pedro Mexia ao telemóvel. Depois de ter estacionado o carro, vi Rui Costa, o do Benfica, a passear junto ao Monumental. Vi ainda, por mero acaso, a Rita e o Mula, que já não via há anos. Estavam todos muito bem. Ao regressar a casa, estupidamente triste, ocorreu-me não ter visto quem eu mais queria. Não me vi a mim próprio. Fui a Lisboa e não me reconheci. Na verdade, achei tudo tão estranho que julgo ter perdido ontem qualquer esperança de algum dia voltar a encontrar-me, comigo próprio, na Lisboa que um dia amei.

POST

Se não gostarem
deste post não faz mal,
eu escrevo outro.


Rui Costa

Experiências radicais

Num dos episódios de ontem da série The Twilight Zone, o belo confundia-se com o feio, o normal com o anormal. Defendia-se o conformismo e a fealdade ao poder. As pessoas deformadas eram belas e as outras, normais assim como nós (quem?), deveriam ficar de quarentena em locais restritos que não ameaçassem a ordem social. Acontece que vi este episódio depois de ter adormecido a ver um outro, do House M.D., em que o próprio Dr. Gregory House se encontrava em apuros com perdas de memória, alucinações, incapacidade de distinguir a realidade da ficção. Estava a ver a The Twilight Zone e a pensar se eu não estaria, de alguma maneira, afectado pelas maleitas do Dr. Gregory House. É que pareceu-me tudo tão real que...

É grupo

O largo do karma anda a publicar uma série de fotografias do tempo em que fazer parte de um grupo não envergonhava ninguém nem era crime. Vejam só: The others (1916), Neoconcretos (1959), Grupo Surrealista (1930), "Surreal Lisboeto" (40-50), Internacional Situacionista (1961), Beat Generation, Bloomsbury group (around 1910). Ofereço-lhe uma das minhas preferidas do grupo dadaísta. É de 1921:

Da esquerda para a direita: Jean Crotti, ?, André Breton, Jacques Rigault, Paul Eluard, Ribemont-Dessaignes, Benjamin Péret, Théodore Fraenkel, Louis Aragon, Tristan Tzara, Philippe Soupault.

27.9.06

Peaches & Herms Band

Ontem à noite, durante o concerto de Peaches no Paradise Garage, havia alguém com um cartaz que dizia «PEACHES YOU’RE THE MAN». Já eu, nunca me senti tão homossexual como ontem à noite.

Objets Trouvés # 2

DESPERADO

O índio não percebe o cowboy e o cowboy não percebe a mãe. A mãe do cowboy é católica, fala para dentro, tem dentes de cereja que as visitas engolem com os olhos, como crianças tolas com as mãos todas que merecem. A mãe é católica mas nunca se queixa porque gosta de índios e cowboys, propendendo igualmente a um pequenino gozo com a incomodidade que o progresso recicla. Não lava as mãos, coça a barriga, pensa noutra coisa quando lhe destróis o dia. A mãe do índio grita mais ainda e eis que a lua começa. Do lado do sol, a mãe do cowboy enche-se de esgrimas e reza com grinaldas nas orelhas entre veredas finas. O amor da mãe pelo filho é uma luta entre o sol e a lua, com estepes ao fundo onde esquecemos tudo o que passamos a vida a perder.


Rui Costa

26.9.06

Grávida da
minha mão,
de metros
de unhas,
de pestanas:
o meu ovo
tem duas cascas,
matrioska.

(Esta gema
é a nossa surpresa).


Tradução de Inês Dias.


Elisa Biagini

Elisa Biagini nasceu em Florença, Itália, em 1970. Considerada pela crítica como uma das vozes mais interessantes da poesia italiana actual, começou a publicar com Questi nodi (1993). Seguiram-se Uova (1999) e o sua colectânea mais reconhecida até à data: L’ospite (2004). Tradutora de Dickinson, Plath, Sexton, publicou recentemente pela Einaudi a antologia Nuovi Poeti Americani. Possui poemas seus traduzidos para inglês, espanhol, francês, japonês e português. (ver «Telhados de Vidro», n.º6, Averno, Maio de 2006)

O que é que lhe diz a palavra "blogosfera"?

Luís Carmelo não me perguntou mas eu respondo: treinadores de bancada.

Mais um poeta

Suponho que descobri mais um poeta para juntar a esta lista (de resto, incompleta). Foi por mera coincidência, depois de ter aportado no weblog da editora Frenesi (excelente!). Desconfio que aquele PCD seja Paulo da Costa Domingos, autor, entre outros, deste Asfalto.

Pescadinha de rabo na boca

Vi ontem Daniel Jonas no programa de Bárbara Guimarães. Inspira-me confiança. O poeta, não o programa. Coincidentemente, ou não, deixaram-me um comentário num post que escrevi sobre Os Fantasmas Inquilinos, colectânea de poemas de Daniel Jonas publicada o ano passado pela Cotovia. Não é que dispense conselhos, sugestões, actos de bondade, mas considero o tom do comentário de Pedro Correia (?) injusto – como se houvesse no meu texto uma qualquer vontade de dizer mal por dizer mal. Nunca o fiz, ainda mais tratando-se de um livro de poemas. Acho mesmo que ocorre o inverso, são mais as referências positivas por mim aludidas nesse texto do que as negativas. Mas enfim, cada um lê o que quer onde quer e como quer.

25.9.06

Objets Trouvés # 1

HÁBITOS

Cada vez mais parecidos uns com os outros, os fins-de-semana regem-se pelos hábitos. A chuva que começa a cair, as folhas entretanto espalhadas pelo chão, a música de Tom Waits, a monotonia dos dias. Uma vez escrevi sobre os hábitos: os hábitos são parte essencial da vida, sem eles dificilmente conseguiríamos sobreviver. Um dos hábitos que mais me agrada preservar acontece ao fim-de-semana. Pouco antes da hora de almoço, saio de casa, dirijo-me a uma papelaria, registo o boletim do totoloto e compro alguns jornais. Só muito excepcionalmente compro jornais durante a semana. Depois, atravesso o mercado diário, bem no centro da cidade, e saboreio os aromas da fruta fresca e dos legumes. Desço até à pastelaria Machado ou à cervejaria Camaroeiro, procuro uma mesa num dos cantos do estabelecimento, sento-me e peço, por esta mesma ordem, uma bifana, uma cerveja preta, um café e uma água com gás. Enquanto espero pela bifana, folheio os jornais e leio um ou outro artigo de opinião, conforme o tempo que a dita demore a pousar à minha frente. É raro não preferir a bifana ao que estava a ler, pelo que interrompo quase sempre a leitura quando a bifana chega à mesa. Já a carne se me acomoda no estômago e passo aos suplementos. Leio algumas recensões a livros, notícias de discos recentes, críticas a filmes já vistos - nunca as leio antes de ver os filmes - e um qualquer artigo mais aprofundado que me prenda a atenção. Aí se encerram as minhas leituras da imprensa escrita, porque depois os jornais caem esquecidos num saco de plástico lançado para um canto qualquer lá de casa. Não é raro vir a descobrir alguns artigos de interesse, quando, antes de votar o papel à reciclagem, dou uma última vista de olhos pelas revistas e suplementos. Rasgo esses artigos e guardo-os num caixote. O caixote do esquecimento. O resto é lixo que não me comove. Os hábitos mudaram. Não muito, mas mudaram. Já não como bifanas, já não leio críticas a filmes, desinteressei-me dos discos recentes, raramento frequento certos lugares.

SOBRE UM SISMO DE LISBOA

Caberia saber se a terra treme
ou se é o homem que treme sobre a terra
ou se é o tempo que treme sobre o homem
ou se é o nada que treme sobre o tempo
ou se é deus que treme sobre o nada

Caberia saber se a boca expira
do mesmo ar que as(ins)pira
nasce o dia
se atrás dele a noite principia
um rio cessa
onde outro ou mesmo rio (re)começa

Caberia saber se o tremor
não é apenas o eco do temor
o bafo ou a grafia do terror
ou simplesmente a dor de um tumor
de nascença.

Arnaldo Saraiva

Arnaldo Saraiva nasceu em Casegas, Covilhã, em 1939. Licenciado em Filologia Românica, é um reputado ensaísta português. Como poeta, estreou-se em 1967 com ae poemas. Foi dirigente da Cooperativa Árvore e da Fundação Eugénio de Andrade, colaborou com vária publicações nacionais e estrangeiras, na qualidade de cronista e ensaísta. Arnaldo saraiva fundou e dirigiu ou co-dirigiu as revistas Persona e Cadernos de Serrúbia e os jornais Árvore e O Boavista e faz parte do conselho editorial do Boletim da Universidade do Porto. »

Um decalque quase perfeito

Edward Lear
Havia uma dama lá em Portugal,
Tinha uma excessiva mania naval.
Subia aos pinheiros p’ra ver cada dia
O estado do mar. No entanto dizia
Que nunca iria deixar Portugal.
(Edward Lear)
*
Bom dia!

24.9.06

É domingo hoje
mas nós não saímos

é o único dia
que não repetimos

e que dura menos

Mas põe o teu rouge
que eu mudo a camisa
não como quem
de ilusão
precisa

tomaremos chá
leremos um pouco

e iremos à varanda
absortos

António Reis

António Reis nasceu em Valadares no dia 27 de Agosto de 1927. Mais conhecido como cineasta, iniciou-se nessa actividade como assistente em filmes de Manoel de Oliveira. Como poeta, publicou o seu primeiro livro, Poemas quotidianos, em 1957. Seguiram-se Novos poemas quotidianos (1960) e, sete anos depois, a reunião dos dois livros sob o título do primeiro. Colaborou com O Comércio do Porto, o Jornal de Notícias, a Vértice, Notícias do Bloqueio, entre outros. Participou em várias conferências sobre poesia e em recitais em Sociedades de Recreio. Da sua intensa actividade, há ainda a destacar, após estudos de Antropologia no Alentejo e Trás-os-Montes, a recolha de música popular e poesia de tradição oral, por gravação e escrita, no Alentejo. Faleceu no dia 10 de Setembro de 1991. »

Elif Shafak

Uma romancista turca, que desconheço, foi a tribunal sob acusação de insultos ao seu país. Levantou-se para aí uma onda, felizmente algo mansa, sobre o caso. Que as cabeças bem pensantes não se indignavam, que a liberdade de expressão já não importa, que isto, que aquilo. Chega entretanto a notícia de que Elif Shafak, assim se chama a romancista, foi ilibada em poucos minutos num tribunal de Istambul. Parece que as cabeças bem pensantes fizeram bem em esperar pelos factos para que a indignação pudesse fazer sentido, sob pena de, qualquer dia, a cada arroto que se ouça lá dos fundos das arábias ter que ser escrito um post sobre o assunto. Há de facto gente muito interessada em acicatar ânimos, gente para quem tudo tem que ter dois pólos, gente que não logra ver para lá dos emblemas, gente que se confunde com os próprios emblemas. Ninguém nega, ninguém pode negar, que no mundo dito ocidental há uma convivência com a liberdade de expressão que ainda não existe em muitos países de predominância islâmica. Essa liberdade de expressão é garantida, sobretudo, pela separação, mais ou menos evidente, dos poderes político e religioso. Por isso irrita tanto ver um Sócrates benzendo-se ao lado de padres que inauguram escolas do Estado. E era bom que não esquecêssemos, por exemplo, o que um sketch sobre a Última Ceia ou o Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago, provocaram ainda há não muito tempo na nossa sociedade. Gente estúpida, de vistas curtas, há em todo o lado, de todas as raças, cores e feitios. Era bom que não esquecêssemos, igualmente, as centenas de atentados contra clínicas de aborto levados a cabo por católicos fanáticos ou a forma como a Páscoa é celebrada por cristãos mais acérrimos. Era bom que não esquecêssemos muita coisa. Tal como convém sempre lembrar que uma capa como a do Inimigo Público de ontem, anunciando um Papa convertido ao islamismo, dificilmente seria bem aceite em muitos países islâmicos se invertêssemos ali alguns pormenores. Vivemos numa época em que o mais difícil é não ser tolhido pelo absurdo do radicalismo. Talvez daqui a uns anos venhamos a ter não um, não dois, mas muitos Grass arrependidos.

23.9.06

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Guardo um Cartaz de 1999 - o antigo Actual - onde se procedia a um balanço da década que então findava. No que respeita à poesia, Osvaldo Manuel Silvestre raciocinava assim: «De facto, a década de 90 foi, no seu todo, mais pobre que a de 80, a qual fora já menos rica que a de 70, a qual fora por seu turno menos rica do que a de 60, que, essa sim, fora mais fecunda do que algumas das precedentes.» Eu não arriscaria hoje classificar a década de 1990 assim tão pobre, mas não me interessa agora discutir o assunto. Relembro o raciocínio porque me parece ser do mesmo tipo que aquele usado por Sérgio Lavos neste post, onde se vaticina a falta de originalidade que contamina o universo pop nos tempos que correm. Quanto a mim, o que de melhor teve a década de 1990, falando de música pop em sentido lato, foi o espírito de fusão (tantas e tantas vezes se apontava o ecletismo das mais variadíssimas bandas). Deste modo, o grunge, o trip-hop, o drum’ n’ bass, o post-rock, a world music, valeram, essencialmente, pela capacidade de misturar sons de proveniências diversas sob uma identidade própria e consistente. Talvez estejamos hoje num desses momentos de saturação em que o novo apenas germina mas não acontece. A tendência tem sido para a rememoração, para a revisitação, para o retro. Como o Sérgio diz, e bem, «tudo é pós-qualquer coisa e deixa de o ser ao segundo ou, vá lá, terceiro álbum». No entanto, não consigo ser tão assertivo quanto o Sérgio na assunção do fim de uma qualquer coisa que ainda agora começou. Não falarei de géneros, que esses todos os dias são engendrados por uma indústria ávida de modas e, talvez por isso, cada vez mais com a corda ao pescoço. Mas quando qualquer um de nós pode hoje fazer em casa, com a maior das facilidades, a música que mais aprecia, o que esperar do futuro? E se para tal nem é necessário saber tocar um instrumento, que podemos nós esperar? O fim? Julgo que não. O que tende a desaparecer, suponho, é a ideia de género musical, a ideia de «tipo de música», em prol de uma cada vez maior despersonalização das obras. Como as drogas geneticamente manipuladas à medida de cada um, assim será, muito provavelmente, a música do futuro. É para esse cúmulo relativista, em que tudo é criado à medida do indivíduo, que tendem as artes. Em cada um de nós, um artista. Em cada obra, um espelho. Em cada espelho, um reflexo desse vazio que subsume tudo à lei do nada. Se já não existem heróis, o futuro reserva-nos a morte dos ídolos. Seremos todos referências apenas de nós próprios e em nada buscaremos exemplo senão na nossa própria fome. Provavelmente, o nosso futuro será a vida tal como ela era há 3,3 milhões de anos.

A caminho da democracia

O responsável pelo gabinete dos direitos humanos da missão de assistência da ONU no Iraque considerou ontem que a tortura no país pode ser actualmente pior que a praticada durante o regime do ex-Presidente Saddam Hussein.
In Público, sexta-feira, 22 de Setembro de 2006.
Comentário: afinal o pior não era de todo impossível. É também por estas e por outras que abomino todas as ditaduras, incluindo a do bom senso democrático.

Gordon, um furacão de brandos costumes

Não sei porquê fiquei com a sensação de que a carreira do Gordon em terras lusas foi algo frustrante. Serei o único a pensar que muitos já esperavam o pior para, no dia seguinte, fazerem aquele ar de consternação sempre tão consolador?

Oh Dikita You will never know anything about my home

Leio no Diário de Notícias de 6.ª feira a notícia das conclusões à análise de um esqueleto fossilizado, encontrado há 6 anos na Etiópia. Sabe-se que era uma criança, que passava uma boa parte do tempo nas árvores, que não usava ainda a fala humana e que viveu há 3,3 milhões de anos. Os antropólogos baptizaram-na com o nome da localidade onde foi encontrada: Dikita. Sabe-se também que esse local foi outrora uma savana arborizada, com deltas e pequenos rios. Talvez Dikita passasse o seu tempo nas árvores a olhar a paisagem, escondendo-se de eventuais depredadores, à espera de voar ou, pura e simplesmente, a imaginar a vida daí a 3,3 milhões de anos.

Torga

Algumas das entradas do Diário de Miguel Torga são autênticas micronarrativas. Do primeiro volume, deixo as seguintes:
S. Martinho de Anta, 20 de Abril de 1938 - Tirei hoje o leite à cabra. Mas a minha mão já não é a mão justa do lavrador que conhece a medida da sua fome. Tirei tudo. Sequei tudo. Deixei o cabrito sem ração. Meu Pai olhou-me desanimado, e a cabra também.
Coimbra, 28 de Outubro de 1938 - Ia do quarto para o consultório e, nisto, um eléctrico esmaga o pé duma criança. Mas era pouco um pé só. Acudiu por isso um automóvel e acabou por esmagar o resto da criança.
Coimbra, 8 de Dezembro de 1938 - Pavoroso incêndio numa fábrica da Baixa. Ardeu tudo. Muitos mil contos de prejuízo. Mas o seguro paga uma parte e a gente para o resto de qualquer maneira. A quem não se pode valer é àquela pomba branca que, atraída pelo clarão, veio do seu ninho, voou sobre as labaredas, e, aos poucos, asfixiada, foi descendo, descendo, até cair inanimada na fogueira.
Coimbra, 15 de Janeiro de 1939 - Que ninguém (nem eu) saiba nunca o que se passou. Dentro do poço um morto; sobre o poço uma pedra tumular; e, sobre a pedra, um puro e infinito silêncio.
S. Martinho de Anta, 2 de Outubro de 1940 - Fui mostrar-lhe a Vila. Mas fui mostrar-lha como os meus avós a mostraram às mulheres deles - a pé. Foram só seis léguas...
Resta dizer que Miguel Torga é um dos autores portugueses que mais aprecio. Nunca percebi muito bem a desconfiança que merece de certas elites. Já tenho mesmo ouvido dizer que se trata de um «autor menor», como se em Portugal houvesse assim tantos «autores maiores». A este propósito, ou quase, há ainda uma entrada no primeiro volume do Diário (para quem não saiba, a prosa diarística de Miguel Torga prolongou-se por XVI volumes) onde Torga se queixa da falta de universalidade dos génios portugueses: «Qualquer grande escritor estrangeiro, embora nunca desminta a origem, impõe-se em todas as latitudes, porque exprime valores que pertencem ao património comum da humanidade. Basta citar Cervantes, Shakespeare, Molière e Goethe.» Torga tinha toda a razão. Por isso mesmo prefiro A Divina Comédia ou o Fausto a Os Lusíadas. Por isso mesmo prefiro Pessoa a Camões. Por isso mesmo prefiro Torga, Jorge de Sena, Cesariny, O’Neill, Knopfli, Ruy Belo, Fernando Assis Pacheco a outros cujos valores só descortinamos à lupa. E quando os descortinamos, deparamo-nos com pouco mais do que desdobramentos linguísticos sem ponta por onde se lhes pegue. Não quero dizer que, aqui e acolá, não consigamos reconhecer, com a maior das facilidades, grande qualidade poética nesses autores. O problema é meu, que não logro evitar um certo enfado quando os releio. Alguns foram leituras que muito apreciei noutras idades. Porém, com o passar dos anos, parece que vou sentindo cada vez mais dificuldade em manter o mesmo espanto que me causaram aquando de uma primeira leitura. Para que não me acusem de ficar por meias palavras, cá vão alguns nomes consensuais que são cada vez menos cá de casa: Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, Herberto Helder, Pedro Tamen… Isto para ficar apenas por "uma primeira geração" de grandes poetas portugueses do século passado. Pena que não sejam também grandes poetas do mundo. Destes todos, o caso mais terrível, para mim, tem sido o de Herbero Helder. Dizem tratar-se do maior poeta português depois de Pessoa. É, sem dúvida, um grande poeta, daqueles que almejaram uma linguagem inovadora, sem paralelo na história da poesia portuguesa. Alguns dos seus livros serão, sem dúvida, verdadeiras obras-primas. A própria postura do autor, do homem Herberto Helder, favorece o mito em torno do poeta. No texto de Torga a que aludo, afirma-se que: «Como veículos literários duma mensagem para a terra inteira, só estas duas expressões – o teatro e o romance. A poesia é vaga, intraduzível, imponderável, incapaz de corporizar em figuras vivas e actuantes a larga pluralidade da vida». Neste sentido, só neste sentido, talvez a poesia de Herberto Helder tenha a mesma dimensão que certos poemas de Álvaro de Campos, as Odes de Ricardo Reis ou O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro. Mas a questão para mim é outra, provavelmente inexplicável. Eu não trocaria a Hora Absurda e a Chuva Oblíqua de Pessoa pela Poesia Toda de Herberto. E a esta, prefiro as obras completas dos mencionados mais acima.

A Virgem a parir

Ao ouvir Alberto Pimenta no Câmara Clara, comecei a imaginar a Virgem Maria a parir. Entre as palavras do poeta e o olhar derretido da apresentadora, formou-se na minha imaginação a imagem de uma virgem, de pernas abertas, sôfrega, a dar à luz um menino manchado de sangue e de toda aquela porcaria que sai cá para fora com a placenta. Só mesmo um grande poeta consegue estimular-me a imaginação desta maneira. E depois supus que se pensássemos um Jesus Cristo com cordão umbilical tudo poderia ser diferente.

22.9.06

Fomos postos na Terra para andarmos por aí aos peidos.
(Kurt Vonnegut)

REQUIEM

A Terra crucificada,
se pudesse encontrar uma voz,
e um sentido da ironia,
bem poderia agora dizer
sobre a maneira como abusámos dela:
«Perdoa-lhes, Pai,
Eles não sabem o que fazem.»

A ironia estaria
no facto de sabermos
o que fazemos.

Quando a última coisa viva
tiver morrido por nossa culpa,
como seria poético
se a Terra pudesse dizer,
numa voz que flutuasse até aos nossos ouvidos,
talvez
vinda do fundo
do Grande Canyon:
«Está feito.»
As pessoas não gostavam disto aqui.

Tradução de Susana Serras Pereira.

Kurt Vonnegut
Kurt Vonnegut, americano de ascendência germânica, nasceu em Indianapolis a 11 de Novembro de 1922. Concluída a formação em Química, alistou-se no exército e combateu na II Guerra Mundial – onde, feito prisioneiro, assistiu ao bombardeamento de Dresden. Após a Guerra formou-se em Antropologia. É autor de vários ensaios, peças de teatro e romances, entre os quais se destacam Player Piano (1952), Cat’s Craddle (1963), Galápagos (1985). Recentemente, a editora Tinta da China publicou entre nós Um Homem Sem Pátira.

Sem remédio

Não é só o excesso de velocidade e a incúria. Não é só o álcool a mais no sangue. Os portugueses - que, para o caso, são quem mais me importa - conduzem mesmo muito mal. Não abrem pisca nas rotundas, ultrapassam pela direita nas auto-estradas, colam-se à via do centro como se ali fossem mais seguros, buzinam por tudo e por nada, mudam de faixa de rodagem como quem finta adversários. Uma desgraça. Isto só tem uma explicação: uma profunda e irremediável falta de respeito pelo próximo. Não se trata de falta de escola, pois conheço muita gente sem ela que respeita o próximo como a si próprio. Isto é mesmo absoluta falta de civismo. Para não falar dos piões.

O baptismo

O baptismo marca-nos a alma, estigmatiza-nos, empobrece-nos, pois inicia-nos, por vontade alheia, num mundo ao qual não fomos nós a chegar. O baptismo compromete-nos com a servidão, é uma estratégia que consubstancia a delimitação do espírito humano, corrompendo a natureza criativa do homem na exacta medida em que lhe penetra as forças do desejo e da vontade para o subjugar à tirania de axiomas farpados. O baptismo é uma forma de mecanização do pensamento, dos sentimentos, do ser, da própria fé. Ele recolhe dos homens o que haja neles por reciclar, traça os contornos do mundo ao mesmo tempo que traça os contornos do lugar do homem no mundo. Mas ninguém poderá saber verdadeiramente qual é esse lugar. Ele promove assim a comunhão e o servilismo, a obediência e a sujeição, activando posturas, maneiras de ser determinadas, monografando universos humanos, cartografando deveres, vícios e virtudes, separando-nos uns dos outros. Jamais se unirão os homens sob o tecto do medo, da angústia e do sacrifício, da perpetração das condenações, das danações e das excomunhões. Pois o baptismo obscurece a verdadeira dimensão humana que há em cada indivíduo: a contradição, reduzindo ao absurdo aquilo que é a essência de todos nós, fazendo da nossa essência um alvo a abater. O baptismo, em todas as suas formas, entorpece-nos.

A blogolândia é um país de poetas ricos...

A pouco e pouco, os poetas vão chegando à blogolândia. Já tínhamos, desde "o início", Pedro Mexia, José Mário Silva e Francisco José Viegas. Há quase dois anos chegaram Eduardo Pitta, Jorge Melícias e valter hugo mãe (este já por cá andava há mais tempo). João Luís Barreto Guimarães, que tinha (tem) um sítio - como, de resto, outros ilustres poetas da nossa praça -, aderiu ao formato weblog. Vieram Helder Moura Pereira & Comp.ª, Luís Quintais, José Miguel Silva, Inês Lourenço, Nuno Júdice, Yvette Centeno, etc, etc, etc… Também não podemos esquecer César Figueiredo, Frederico Mira George, João Camilo e, mais recentemente, Graça Pires. Ricos ou não, Portugal é um país de poetas. A blogolândia também.

21.9.06

A casa no tempo #10

Fragmento #8 - Casa

Maria João

3K050g

20.9.06

Vem aí a Beatriz.

19.9.06

Devia ser proíbido

Dois posts contagiantes de João Morgado Fernandes. No primeiro, intitulado É estúpido. E contagia. E depois?, "acha-se" «que a maior parte - e, sim, meço as palavras - do que passa nas televisões generalistas portuguesas, incluindo a pública, é lixo. E é contagiante.» Daí que se "ache" também «que o George W. Bush prossegue uma política anti-terrorismo genericamente estúpida. E contagiante (vidé os seus seguidores em todo o mundo).» Mas o melhor surge no segundo post, onde o documentário de Al Gore é motivo para mais "achamentos": «Eu acho que aquele documentário, além de estúpido (pudera, foi produzido por estação de tv estatal, a BBC...), é anti-americano (pudera, foi feito pela BBC e, como se sabe, a BBC ainda não perdoou o Bush aquela coisa do Iraque e coisa e tal...), e contagiante. Já viram a quantidade de palermas que andam para aí a falar do aquecimento global?» A isto JPP chamará a síndrome dos engraçadinhos. Sem dúvida, contagiante.

HOMENAGEM A ALLEN GINSBERG

«Vi os melhores espíritos da minha geração destruídos pela
loucura, morrendo à fome histéricos nus»
uiva Allen Ginsberg, poeta americano de S. Francisco,
com os cabelos em desalinho
Eu vi a mesma coisa por cá, Allen,
e penso que acontece assim em toda a parte
Era um grupo, não propriamente um grupo, mas
um grupo que se sentava
sempre de costas, ou de lado, sob a chuva
torrencial que algumas palavras provocavam ao abrir-se
Bebia-se muito bagaço, cafés uma vez por outra,
o sangue podia beber-se à vontade:
bastava cortar as veias às mulheres que se aproximavam
Uns escreviam livros que rasgavam
devia ser numa praia para a maré levar as folhas
e de noite, sem lua, bem no alto do rochedo
Outros publicavam nos jornais, raramente
Havia, claro, o papa, os papas, já os escritores
com oficina montada para as bandas da Sé Velha
E os que não morreram, não enlouqueceram ou não se suicidaram
e os que não traíram
esses vão vivendo como podem
e são agora papas cardeais arcebispos
Alguns forçados a voto de pobreza
arrastando-se pela Europa como o meu amigo
Manuel de Castro
Um dos melhores espíritos da minha geração, Allen Ginsberg,
que embora não acredites, ainda resiste,
árabe na linha do seu destino infalível
acendedor de palavras
visionário de técnicas amorosas, combativas, mágicas
Mas como ia dizendo, Allen, era um grupo, não propriamente
mas um grupo
cujos elementos talvez se odiassem
ou então era amor, sobretudo raiva
contra a cidade senil
Ninguém
trabalhava
e os poucos que trabalhavam despedidos no dia seguinte
ameaçavam (murmurava-se) as famílias, as instituições…
Eles
uma família azul que fumava cigarros baratos
que se embebedava com muitas prostitutas
e da qual, desregradamente, certos membros
praticavam a homossexualidade por esteticismo
Era um grupo, não propriamente, mas
um grupo, Allen Ginsberg,
de anjos caídos, trémulos, atrás duma nota de vinte
para jantar

António Barahona da Fonseca

António Barahona da Fonseca nasceu em Lisboa, a 7 de Janeiro de 1939, tendo vivido alguns anos em Moçambique. Pertenceu ao «grupo do Café Gelo», tertúlia da qual fizeram parte alguns escritores conotados com o surrealismo português, tais como Mário Cesariny, Manuel de Castro e António José Forte. Em 1961 publicou Insónias e estátuas, ao qual se seguiram Poemas e pedras (1962), Capelas imperfeitas (1965), Impressões digitais (1968), entre outros. Colaborou no 1.º e 2.º cadernos de Poesia Experimental (1964-66), participou em Visopoemas (exposição colectiva experimental, 1965), na Grifo e na Antologia do Conto Fantástico português. Em 1975 converteu-se ao islamismo, adoptando alternativamente o nome de Muhammed Rashid.

Georg-Christoph Lichtenberg

No Ad Loca Infecta, José Miguel Silva recupera alguns aforismos de Georg-Christoph Lichtenberg. Nascido em 1742 na Alemanha, Lichtenberg era ateu militante. No entanto, possuía as suas contradições. Considerava o cristianismo «o sistema mais perfeito para favorecer a paz» e rezava fervorosamente nas horas de desespero. «Homem das «luzes», adversário determinado do movimento de Sturm und Drang (de assalto e tumulto) que então domina a literatura alemã, é também, surpreendentemente, o mais entusiasta admirador de Jean-Paul» - assim o apresenta Breton na Antologia do Humor Negro (Edições Afrodite). Os seus aforismos fizeram escola, a ponto de terem sido considerados por Nietzsche um «tesouro da prosa alemã». Deixo alguns, em versão portuguesa de Ernesto Sampaio:

O que levou aquele homem até onde está não foi a força do seu espírito: foi a do vento.

O homem gosta da sociedade, quanto mais não seja a de uma candeia acesa.

Aquele homem era tão inteligente que já não servia para nada.

Vivam as pessoas que têm os nervos grossos como cabos!

Maravilhava-se de ver que os gatos tinham a pele furada em dois sítios, precisamente no lugar dos olhos.

Se mandarem pintar um alvo na porta do vosso jardim podem ter a certeza que lhe hão-de atirar.

Tinha posto nomes às suas duas pantufas.

Lembro-me de ter pensado isto há muito tempo: a filosofia acabará por se devorar a si própria. A metafísica já o fez em parte.

Ele era daqueles que querem sempre fazer mais e melhor, mesmo quando não lho pedem. Essa qualidade, num criado, é abominável.

O grau mais elevado a que pode guindar-se um espírito medíocre, mas experiente, é até ao talento de descobrir as fraquezas dos homens que valem mais do que ele.

Hoje, quando toda a gente escreve para crianças, seria boa ideia fazer, ao menos uma vez, um livro escrito por crianças para as pessoas crescidas. Mas a querer tomá-la à letra a coisa é difícil.
Adenda: Já agora, num outro cumprimento de onda, revejam também alguns aforismos do nosso Albino Forjaz de Sampaio.

A casa no tempo # 9

Fragmento # 4 – Janela aberta
Maria João

18.9.06

subject: RE:

( imagem respigada aqui)

subject: RE:

acredita, tita, estás
nos meus favoritos. gravei-te
a cena que pediste, fixe que
gostaste. a tua cena também

é demais, até disse aos meus
pais. curtiram e perguntaram
quem eras mas sabes que a
minha cena é discreta e tal,

não sou muito de andar praí
a falar das minhas cenas, ou
das tuas, e se não te disse

digo agora curtia juntar a
tua cena à minha e fazíamos
uma cena só com nós os dois,

ok?

Rui Costa

[Deus com todos]

Crítias dizia que os deuses eram espantalhos introduzidos no mundo pelos políticos que se queriam fazer respeitar e mais às suas leis. Não acredito em deus. Deus é o bordão da ignorância, uma espada da covardia. Deus é um escarro do medo. Dentro de mim, o conceito que mais se aproxima de uma ideia do sagrado é o conceito de Natureza. Todavia, compreendo na ideia do sagrado uma ilusão, uma lacuna, a grandeza da nossa inocência, talvez, a verborreia dos ociosos, uma referência, um objectivo inatingível, um oriente, mormente uma resposta às nossas limitações e debilidades. Ou, como nos versos de Ruy Belo, «deus é só um nome e só pode criar / se é que o pode um só campo semântico / que deixa dar o nome de divinas / a coisas tão terrestres como o mar». Só a Natureza possui algo que não me custa adjectivar de divino. Amo os seus mistérios, espanto-me com a sua força, admiro a sua infinita beleza. Não preciso de Deus para nada, não preciso de uma ideia de causa primeira, é-me completamente indiferente que a natureza tenha ou não tenha uma causa e estou-me nas tintas para argumentos ontológicos da existência de Deus. Basta-me a Natureza. Se algum Deus existir, então que seja ele a julgar-me - jamais os homens que se arrogam mensageiros da palavra divina, seja lá isso o que for. São mensageiros da morte, do conflito, da guerra, da opressão, do esclavagismo, da renúncia à humanidade. Guerras santas, até os pacíficos hindus as têm. Não direi, como Jean Meslier, que «gostaria de ver todos os grandes da Terra e todos os nobres enforcados e estrangulados com as tripas dos padres». Mas tal como o padre de Etrépigny sinto-me na obrigação de denunciar a calamidade que tem sido privar os homens dos prazeres da terra sob pretexto de os conduzir ao céu. Se há coisa que odeio é o fanatismo religioso, a manipulação que faz da fé. A fé é um “sentimento” profundo sem o qual nada faz sentido. Tenho fé na natureza, nos seus processos selectivos, nas suas escolhas, no seu curso. Tenho fé na arte, na poesia. De alguma maneira, tenho fé na ciência. O homem quis sempre dominar a Natureza, submetendo-se a Deus como se Deus fosse uma solução para as fraquezas com que a Natureza nos dotou. É tempo de submeter-se à Natureza e de procurar dominar os seus ímpetos divinos. Parece-me cada vez mais evidente e necessário este princípio. O desrespeito pela Natureza e o fundamentalismo, a forma de um respeito absoluto por Deus, estão a matar-nos… lenta e masoquistamente.

A casa no tempo # 8

Fragmento # 35 - Pátio

Maria João

CIGARRA

Esta não é filha do sol
com pernas e pés de marinheiros
subindo às árvores das herdades.
Esta é preciso ouvi-la dias inteiros
aquém das grades.

Esta
não chama para os campos doirados
onde o canto é livre e aquece, morno.
Mas para silêncios hirtos e cerrados
com fardas e armas em torno.

Desde o sinal das auroras
até à noite que plange
amortalhando as horas,
seu canto não canta, range…

Ó cigarra das torvas claridades!

Seus cantos só pode cantá-los
a boca de pedra e dentes ralos
do ferro nas grades.

Luís Veiga Leitão

Luís Veiga Leitão nasceu em Moimenta da Beira no dia 27 de Maio de 1912. Viveu grande parte da sua vida no Porto, tendo falecido em Niterói, Brasil, a 9 de Outubro de 1987. O seu livro de estreia foi Latitude (1950), mas só adquiriu algum reconhecimento após a publicação de Noite de Pedra (1955). Enquadrado na segunda vaga do neo-realismo, Luis Veiga Leitão aparece, no entanto, na antologia Surrealismo/Abjeccionismo, organizada por Mário Cesariny de Vasconcelos. A Poesia Completa de Luís Veiga Leitão foi publicada pelas Edições Asa.

DIAS ÚTEIS


Ontem fiz adeus aos inimigos, cantei duas canções tristes e deixei incompleta uma natureza morta pintada a óleo. Desde que as lágrimas se me secaram num qualquer lugar do sangue, minha mãe diz que sou o culpado de toda a fragilidade dos dias. Partem-se-me ossos se passo a mão pelo cabelo, queimam-se-me pestanas antes do sono. Tenho para mim que andar sobre a fragilidade dos dias não me há-de trazer qualquer felicidade. Mas continuo, permaneço. Sento-me na sala, ligo a TV, estrelo o tecto do quarto das filhas. Conto sempre um conto à hora de dormir e isso sabe-me bem. Respiro fundo, sonho um mergulho para bem fundo dos dias. Não posso voltar a escrever coisas que outrora escrevi. Por exemplo, não posso voltar a escrever que «por pouco tempo fecham-se os olhos / na luz de uma vela». Ou que procurarei a paz «nos desvios airosos / da maturidade». Não posso voltar a escrever que «entre nós / no inverno / as pessoas andam de ombros encolhidos». Já só os mortos encolhem os ombros no Inverno, caminham entre nós na cidade, pedem esmola, cospem para o chão, coçam as feridas, lambem o sarro. A tristeza que nos invade não é apenas um ramo de amor vendido num embrulho de plástico, daqueles que se esquecem nas mesas dos cafés à hora de partir. «Por motivos talvez claros / o prazer é o que nos torna / os dias raros». Por que são tão raros os dias raros? Havia um programa na televisão e tu lembras-te. Havia aquela canção do Sérgio Godinho, aquela que depois saiu num disco sobre o dia de descanso do mundo. Um álbum positivo até nos vírus, nos vícios. Não te faz sentido? Que sentido te faz o sentido? Que sentido te faz a vida? Alguém dizia num livro de Beckett que «é impossível parar, impossível continuar, mas tenho de continuar, portanto vou continuar, sem ninguém, sem nada, só eu, só a minha voz». Ainda te tenho. Mas e quando deixar de te ter? O prazer já não manda aqui, já a nada disto podemos chamar prazer. Trata-se apenas de uma forma, só mais uma, como ligar a televisão e ver um filme, deixar a natureza morta inacabada, só mais uma forma, dizia, para enganar a dor. Como uma droga, um panfleto de heroína, um chuto. Para a veia com a palavra, no sangue. A correr como se fosse o medo que nos contamina e rouba o sono, a correr como se fosse um homem parado no meio da sua própria solidão. Dias úteis? Horas fúteis.

17.9.06

Perguntar não ofende # 2

Por que será que o 19 de Abril de 1995, em Oklahoma, nunca mereceu a mesma memória que o 11 de Setembro de 2001, em Nova Iorque?

Perguntar não ofende

Por que será que o terrorismo cometido por católicos é sempre político e o terrorismo cometido por maometanos é sempre islâmico?
Adenda: sobre este tema, ler um post de Fevereiro, de Ana Gomes, no Aba da Causa.

16.9.06

UtenteFolle said...

Moana died in 1994, and it's true. after 2005, the world discover that she have a segret sons, simone.
She's not only a pornostar, she represent, in the italy of the 80's a sort a prophet, a maddalena, a rebel against, the church, the rules of this time.
she was picked, refined elegant, and in a position to speaking well also in politics contest.
now she's a myth, a myth of rebellion, of liberty and indipendence
sorry for my terrible english

Os pactos deixam-me pato

No Diário de Notícias de ontem, Ana Sá Lopes sugere «um pacto para o aborto» e Jacinto Lucas Pires aconselha «um pacto para a cultura». Antes que fiquemos patos com tantos pactos, o melhor é mesmo começar por um pacto para os pactos.

O último parágrafo

Os weblogs ditos de direita, que gostam tanto de citar Vasco Pulido Valente, parecem ter-se esquecido do artigo que o reputado articulista publicou no Público de ontem. Deixo o último parágrafo: «A ideia de que o Ocidente deve promover a democracia ou a justiça é uma ideia colonial. Quando fala na “defesa da civilização” Bush repete às sua maneira os sermões da esquerda sobre o desespero e a pobreza das massas muçulmanas. Parece que “o homem branco” voltou a carregar o seu “fardo” e se prepara outra vez para reformar a terra. Felizmente, o “homem branco” já não quer reformar a terra, quer petróleo. Interessa ao Islão (ou parte dele) vender petróleo e comprar tecnologia, interessa ao Ocidente comprar petróleo e vender tecnologia: e é bom que as coisas fiquem por aqui. Isto implica evidentemente inverter a política de Bush e Blair: da ingerência para a não-ingerência e de uma total tolerância interna (como em Inglaterra) para duras regras de cidadania. A confusão alimenta o terrorismo, a clareza contribui para o isolar e conter.»

15.9.06

O Papa Bento XVI é estúpido.

Se alguém na caixa de comentários disser que eu não devia dizer uma coisa destas porque o Papa tem idade para ser meu pai, então ainda é mais estúpido do que o Papa.
Sublinho: «Se foi premeditado, é um irresponsável. Se foi sem intenção, é um incompetente.» (Daniel Oliveira); «Definir uma essência não bélica na mensagem dos profetas é um desafio a que as palavras do Papa se devem dedicar construtivamente ao invés de forjar oportunisticamente um instrumento ideológico para demarcar, à partida, os bons dos maus.» (Bruno Sena Martins); ver também este post de Filipe Guerra.
Adenda: «Ratzinger é um teólogo de ideias firmes e esclarecidas. Mas nem tudo o que pensa Ratzinger pode ser dito por Bento XVI. É também por isso que um cardeal muda de nome quando chega a Papa. Nos dias de hoje, a infeliz citação é gasolina numa fogueira. E aquilo de que o mundo menos precisa é de um Papa incendiário.» (Fernando Madrinha, no Expresso)

Declaração de amor

Anda para aí um tsunami à volta de Bob Dylan. Prefiro Neil Young. Lembrei-me disto enquanto via o Biography Channel.

com a morte às costas
partimos à bolina
tropeçando em cada esquina
avolumando nosso fardo

de memória em memória
como de mar em mar
iremos construir o mundo

e as fronteiras acabam
onde a morte começa

Paulo Moreiras

Paulo Moreiras nasceu em 1969, em Lourenço Marques, actual Maputo, Moçambique. Veio para Portugal em 1974, tendo arribado nas encostas do Douro, entre Resende e Cinfães. Seguiu-se uma prolongada estada no Laranjeiro, Almada, onde viveu até 1998. Vive actualmente na freguesia de Meirinhas, no concelho de Pombal. Além de vários livros artesanais, sobretudo de poemas, destacam-se na sua obra os livros Elogio da Ginja (ensaio), A Demanda de D. Fuas Bragatela (romance) e Do Obscuro Ofício (poesia). »

A casa no tempo # 6

Fragmento # 6 - Porta

Maria João

14.9.06

Deitamo-nos cozidos nas pedras
enchemo-nos de lama, as mãos

em cordão como mulheres,
a terra a descobrir o laivo à carne

somos coveiros de amigos
prendemos cavilhas aos irmãos
para os encontrar no leito

abertos pelas minas
abocanhamos rostos nos carrascos
por uma boca num cigarro,

putas como a morte que nos faz.

Alexandre Nave
Alexandre Nave nasceu em Lisboa no ano de 1969. Estudou artes plásticas, área na qual frequentou cursos de pintura e desenho, escultura, vídeo, teatro e banda desenhada. Em 2004 foi distinguido com o Prémio Primeira Obra, atribuído pelo P.E.N. Clube Português ao livro Columbários & Sangradouros (2003). O mesmo livro, publicado pela Quasi, havia ganho o 1.º Prémio Internacional de Poesia “León Felipe”.

A casa no tempo # 6

Fragmento #10 - Paredes
Maria João

13.9.06

IN MEMORIAM OU A MORTE DO OUTRO

Abraçámo-nos como dois animais
indefesos à mercê do destino
com a alma partida de dor. E chorámos
sobre os nossos ombros esta pobre aventura
da vida à qual alguém, num mau sonho,
nos condena. Sentimos,
quando só saíam lágrimas da tua boca
e da minha, o fracasso de ser homens
e esse inútil consolo de partilhar
toda a nossa desgraça.
Estava a sala escura, tal qual o mundo,
árido o ar e sem alento como o nosso coração,
junto de nós não havia ninguém,
apenas o corpo de um homem face
à dura solidão da morte, e ao fundo vozes
de homens vivos que desprezavam viver.

Ao longo das horas e ao longo dos seres
a noite foi vertendo entre nós a sua cinza,
o seu demónio e o seu nada entre os que velávamos
aquele corpo defunto. Num canto uma mulher
gritava em vão a um deus que não existia.
E era a dor quem falava
ao estar abandonada diante da solidão,
ao sentir em seu redor o mundo desolado,
ao ver como o tempo arrebatava tudo e o homem
nada é neste cruel castigo da vida.
Como é absurdo amar diante da morte.

E queimaram-nos ainda mais os olhos
durante toda a noite aquelas súplicas
de desespero, sabermos
que nenhum tempo nem nenhum mundo
acolheria aquele corpo,
que depois da morte não há mais além
a não ser a hostil razão da matéria.

O pó nesse homem voltava ao pó
e ao nada o tempo, tal como a consciência
que até há pouco existiu.
E gelou-se-nos o sangue ao contemplar
que essas mãos sem vida tantas vezes
pegaram nas nossas, e essa boca que te beijou
e a mim falava de amizade
agora está parada e muda respirando o silêncio,
e esses olhos fechado, porque só na escuridão
se vê o vazio.

E pensámos, com as mãos tapando-nos
o rosto de terror, que esse pó,
esse nada, essa falta de consciência
era o futuro do nosso ser e o homem
um extravio da natureza
que a natureza ao fim negava.

E que esse dia que pouco a pouco se anunciava
limpo de ouro e de azul sobre a cal
do pátio, que fortalecia de luz o limoeiro,
podia ser o dia da nossa morte.

Tradução de Joaquim Manuel Magalhães.

Diego Doncel

Diego Doncel nasceu em Malpartida, Cáceres, no ano de 1964. Em 1990 venceu o Prémio Adonais, um dos mais importantes prémios de poesia em Espanha, com o livro El único umbral, publicado no ano seguinte. Seguiram-se Una sombra que pasa, em 1996, uma novela intitulada El ángulo de los secretos femeninos e, já em 2005, En ningún paraíso. Autor ainda de vários ensaios, Diego Doncel defende que «toda a poesia é intimista e autobiográfica».

A casa no tempo # 5

Fragmento #3 - Janela
Maria João

12.9.06

Olé!

Desde que Eduardo Pitta regressou de férias, é o terceiro link que faço para o Da Literatura. Que me perdoem pela ausência de espírito, mas a verdade é que "parti o caco a rir" ao ler este comentário a um post sobre O Bairro Alto. Pedro Schacht Pereira, Mellon Post-Doctoral Fellow no Department of Romance Languages da Universidade de Chicago (vejam, se não acreditam), não se lembra «de nenhuma cidade do mundo onde tenha estado que apresente um tal nível de sujidade». Terá Pedro Schacht Pereira, Mellon Post-Doctoral Fellow no Department of Romance Languages da Universidade de Chicago, alguma vez descido a Rabat? Já terá posto os pés em Bombaim? Eu, para não ir mais longe, achei Atenas infinitamente mais suja que Lisboa. Mas eu também nunca fui muito longe. E o Cairo? Bem, nem me quero lembrar. Onde terá estado Pedro Schacht Pereira, Mellon Post-Doctoral Fellow no Department of Romance Languages da Universidade de Chicago, para fazer uma afirmação destas? Esteve em Sevilha e, vejam bem, concluiu que as pessoas em Sevilha «são bem mais porcas que os portugueses». Quais portugueses? Os portugueses de Évora, de Bragança, de São Miguel ou do Faial? Pois claro. Portugal é o Bairro Alto e o resto é paisagem. Os portugueses do Bairro Alto que se cuidem, em matéria de porcalhice ainda vão ter que deitar muita coisa para o chão, «desde cascas de camarão a guardanapos usados», se quiserem bater os sevilhanos. Mas o mais incrível são as dúvidas que assaltam Pedro Schacht Pereira, Mellon Post-Doctoral Fellow no Department of Romance Languages da Universidade de Chicago, no final do comentário. Olhem só: «E depois, falando de movida... o que é que fazem tantas pessoas na rua até tão tarde? Apenas vejo gente a disparatar, a emborcar bebidas inclassificáveis através de garrafas de litro e meio, a enrolar charros de haxixe de qualidade duvidosa, uns atrás dos outros até à insaciedade total. E depois, o que é feito do olhar das pessoas?» Não quero parecer mal-educado, mas este Pedro Schacht Pereira, Mellon Post-Doctoral Fellow no Department of Romance Languages da Universidade de Chicago, anda a ver coisas a mais com olhos a menos. Deve ser dos estudos, já que aparenta saber o quão duvidosa é a qualidade dos charros que por ali se fumam. P.S.: Não é difícil encontrar fotografias do Bairro Alto na Internet.

Teorias da Conspiração

A tese, a antítese e a síntese: «Surpreende-me ver gente tão proclamadamente independente, tão habitualmente interrogativa, tão intransigentemente crítica, a despachar por entre dois esgares sardónicos a chamada "teoria da conspiração" quanto ao atentado do 11 de Setembro. Claro que dói remexer em verdades cómodas. Durante a década de 80, havia uns "lunáticos" que asseveravam que Sá Carneiro tinha sido vítima de um atentado. Mais de vinte anos passados, não se sabe ainda exactamente o que aconteceu, mas já ninguém é lunático, nem anti-comunista primário, por ter essa opinião.» PC, de Pedro Caeiro.
Adenda (um comentário de jorro): É preciso não confundir as coisas. Não embarcar em "teorias da conspiração" com a facilidade com que alguns embarcam em "versões oficiais", não nega a possibilidade dessas teorias terem algum grau de verdade. A questão é outra: Quem? A quem podia interessar um esquema desses que facilmente se estendeu pelo mundo? (Madrid, Londres, etc) Também não podemos esquecer os atentados e as tentativas de atentados anteriores ao 11 de Setembro. Há muita questão por explicar, é certo. Há muitas mentiras, desfeitas a pouco e pouco, na "versão oficial". Mas daí a insinuar que tudo aconteceu devido aos gases da Administração Bush... Mário Soares colocou ontem, no Prós & Contras, algumas questões essenciais. A que me parece mais importante, para lá do 11 de Setembro, é esta: quem patrocina os terroristas do fundamentalismo islâmico? Quem lhes vende armas, de onde vem o dinheiro? Acabar com isto implica acabar com os paraísos de muitos senhores do mundo, por isso dificilmente algum dia se acabará com isto. É também importante, mais do que lembrar o 11 de Setembro, pensar nos vivos e esclarecer, de uma vez por todas, que nada disto tem que ver com a causa palestiniana. E aí sim, temos causa.

MEMPHIS, TN

memphis 7:11 comboio expresso procedente
de kansas entrada na via dois vem atrasado
pedimos desculpa pelo incómodo

7:12 via dois mulher branca trinta trinta e cinco

7:13 covington sem paragens via quatro 7:15
detroit paragens nashville dayton via cinco
7:20 oklahoma ligação com dallas via nove

7:20 mulher branca trinta anos metro e setenta
esmagamento na zona cervical fracturas múltiplas
morte instantânea

7:20 comboio expresso procedente de kansas
vai dar entrada na via dois


Tradução de Joaquim Manuel Magalhães.

Pablo García Casado

Pablo García Casado
nasceu em Córdoba no dia 13 de Maio de 1972. Licenciado em Direito, publicou o seu primeiro livro de poemas em 1997: Las Afueras. Com esse livro foi finalista do Prémio Nacional de Poesia e venceu o I Prémio “El Ojo Crítico”, atribuído pela Rádio Nacional de Espanha. Além da inclusão em diversas antologias de poesia espanhola, publicou ainda, em 2001, El mapa de América.

11.9.06

I will remember. Have pity on me.
"Prayer of a Warrior" (Assiniboine - A tribe of the upper Missouri), translated by Edwin T. Denig, Indian Tribes of the Upper Missouri, Ca. 1854.

EXIT


Há canções que nos desnudam. Não no sentido psicanalítico de nos desmascararem, mas antes no sentido humano de nos mostrarem do avesso. No sentido de porem a claro e a limpo, com pouco mais que meia dúzia de palavras entoadas à altura dos anjos, o que há de essencial no mundo que é cada um de nós. Exit Music (For a Film) é uma dessas canções às quais devemos um ensinamento sobre a arte de viver. Pena que para aprendermos a viver seja quase sempre necessário aprendermos a lidar com o sofrimento, sobretudo o alheio. Não foi por acaso que Santo Agostinho iniciou o seu processo de conversão após a morte de um amigo. A vivência do sofrimento, daí o sacrifício, aproxima-nos de um saber que consola aquele a quem mais não restam dúvidas sobre a sua precariedade. É este o nosso filme: respirar, continuar a respirar. Uns sob a voz do Senhor, outros sob a voz de Thom Yorke. Sing us a song, a song to keep us warm. Eu, como já tenho dito, não preciso de muito mais para me converter à vida. E em dias de lembrar a morte, os mortos, os símbolos do até onde da maldade humana, não há como escutar, mais uma vez, aquilo que nos converte à vida. O mundo só terá concerto quando todos os fanáticos escutarem rock music e desejarem partir guitarras ao invés de vidas, quando todos os fanáticos forem potenciais suicidas, não por causas alheias, mas apenas em causa própria.

VIVA GENERAL!

Foto respigada aqui.

- O General Loureiro dos Santos não é um santo, é vários.

- O General Loureiro dos Santos só pilota porta-aviões sensíveis e meigos.

- O General Loureiro dos Santos só pilota em pelota, para estar de igual para igual com o animal.

- O General Loureiro dos Santos tem a voz de um trovão e a ternura do orvalho.

- Se o General Loureiro dos Santos fosse atum, chegaria à nossa travessa pelo seu próprio pé.

- O pé do General Loureiro dos Santos é mais belo que a Vénus em Chamas.

- O General Loureiro dos Santos não encerra aos domingos.

- Queremos um General Loureiro dos Santos em cada rotunda de Portugal!


Rui Costa

10.9.06

Caíram as torres, e o deserto
é agora do tamanho da alma:
as torres que levantei, o deserto
que eu quis manter afastado da alma.
Os inimigos que inventei morreram,
se há outros não quero imaginá-los:
portanto não virão os inimigos.
E os amigos não virão também,
como não irei eu a parte alguma:
ficaram apanhados nos seus reinos,
perplexos como eu, sem esperança,
e olham as torres desmoronadas
que foram sua paixão e defesa,
dono de suas almas o deserto.


Tradução de Joaquim Manuel Magalhães.
Julio Martínez Mesanza

Julio Martínez Mesanza nasceu em Madrid em 1955. Estudou Filosofia, acabando por licenciar-se em Filologia Italiana. Foi considerado pela crítica como o mais fiel representante da tendência épica na nova poesia espanhola. Tradutor de Dante, Montale, Moravia, entre outros, publicou os primeiros poemas em 1983 num volume que intitulou Europa. O mesmo livro foi sendo republicado com vários acrescentos. Em 1996 publicou Las Trincheras e, dois anos mais tarde, Fragmentos de Europa 1977-1997. Joaquim Manuel Magalhães inclui poemas seus no primeiro volume dos Trípticos Espanhóis (Relógio D’Água).

9.9.06

Carlos Pinto Coelho, 62 anos, jornalista, ao Miniscente:

«Hoje a blogosfera é território exclusivo de adolescente (os “queridos diários” de antigamente), feirantes de vaidades, autores frustrados que só ali conseguem publicar-se, almas solitárias à procura de um qualquer eco, e também – certamente – de espíritos generosos…»
Links meus, todos na letra A (para não ir mais longe).

Pela leve ondulação, a consciência ouve o coração

Pela leve ondulação, os peixes apressam-se
Como dedos, centrífugos, como desejos
Gratuitos. E o prazer intensifica-se
À medida que os olhos se deixam cair
Através da água transparente. O seixo pequeno,
O nítido leito de barro, a concha branca,
São evidências, embora pertença da superfície.
Que mais se poderia pedir à tarde de Agosto?
Quem abriria túneis, seguiria sombras?
- Eu, talvez. - responde o entediado coração. - Levanta-te, ocioso!
(Lábio inferior tremendo, rosto empalidecido por ira feroz)
- O erro habitual, na ideia de estares sentado em sossego,
Embriagando os sentidos, à margem do rio no Verão,
Sobre o relvado bem tratado, sob o trânsito,
Como se o tempo pudesse parar
E a tarde permanecer.
Não, a noite não se faz esperar,
Nem os seus frios relevos, a desolação,
A não ser que o amor venha e construa a sua povoação.
Tradução de Alexandra Barreto.

Delmore Schwartz

Delmore Schwartz nasceu no dia 8 de Dezembro de 1913 em Brooklyn. Filho de emigrantes romenos, Delmore Schwartz não teve uma vida fácil. Alcóolico, viciado em barbitúricos, cedo se confrontou com vários problemas mentais. Foi estudante de Filosofia, tendo vencido, em 1936, o Bowdoin Prize in the Humanities pelo ensaio Poetry as Imitation. O seu primeiro livro, uma colecção de poemas e pequenas histórias, foi publicado em 1938: In Dreams Begin Responsibilities. Ao longo da vida publicou muitas pequenas histórias, poemas, ficções, ensaios, dramas, que lhe valeram elogios de T. S. Eliot, William Carlos Williams, Ezra Pound, Robert Lowell, Vladimir Nabokov. Faleceu no dia 11 de Julho de 1966, consumido pelas drogas e pelo álcool, só.

Loose Change

Loose Change
Acabei há pouco de ver na RTP 2 um “documentário conspiratório” (digam lá se não é uma boa expressão) chamado Loose Change. É sobre os atentados levados a cabo nos EUA nesse fatídico 11 de Setembro de 2001. Segundo o autor do documentário, Dylan Avery, tudo não passou de uma trafulhice montada ao mais alto nível para manipular o povo norte-americano. Objectivo: ganhar milhões e milhões de dólares. Chamadas de telemóveis em pleno voo nunca terão existido, o Pentágono jamais poderá ter sido atingido por um avião, as Torres Gémeas desmoronaram devido a um excelente esquema de explosões arquitectado previamente, os terroristas que supostamente iriam nos aviões estão todos vivos e de saúde, a confissão de Osama bin Laden é falsa, etc. Em suma, a Al-Qaeda não teve culpa nenhuma no assunto, o Estado norte-americano está nas mãos de uns al capones sem lei, nem rei, nem fé. É a sina da América. No final, em que ficamos? O 11 de Setembro aconteceu. O que aconteceu, não sabemos. Sabemos apenas que aconteceu. Se calhar Bin Laden nem existe, é um heterónimo de Bush, as armas de destruição em massa iraquianas foram todas aplicadas nas Torres Gémeas e no Pentágono, o Jim Morrison está vivo e até habita na Benedita. Mais: se Bush não espirrasse, o Katrina nunca teria acontecido.
Adenda (às 12:00): O artigo de Vítor Dias, no Público de ontem, afina-se pelo mesmo diapasão. Na senda de uma justiça que a memória nunca fará às vítimas da fome, Vítor Dias lembra ao lado dos «cerca de três mil mortos» no 11 de Setembro de 2001 o «meio milhão de comunistas e outros democratas assassinados na Indonésia em 1961», os «milhares cidadãos de esquerda mortos e torturados (…) na sequência do golpe de Pinochet», mais «duas centenas de milhares de mortos entre a população civil como consequência das duas invasões norte-americanas do Iraque». Enfim, mortos com mortos se pagam. Sobre o 11 de Setembro propriamente dito, apesar de revelar prudência e pouco entusiasmo «em relação às chamadas “teorias da conspiração”», Vítor Dias lá vai conspirando na base de «muitas perguntas que continuam sem resposta». São duas:

1. - «nem mesmo o maior adversário das “teorias da conspiração” pode achar normal que, a seguir a 11 de Setembro, quando o céu americano estava totalmente interdito a voos e quando 200 mil aviões privados estavam proibidos de voar, tenha sido permitido que 140 sauditas, ligados à família real e incluindo numerosos familiares de Osama bin Laden, primeiro através de voos internos e depois internacionais, abandonassem rapidamente os EUA»;

2. - «as seiscentas páginas do relatório da comissão de inquérito “independente e bipartidária” sobre o 11 de Setembro “não menciona uma única vez as especulações financeiras que precederam o 11 de Setembro» que levam a crer «que alguém sabia que alguma coisa se ia passar».

É certo que o documentário de Dylan Avery é bem mais maquiavélico e pode ser considerado injusto colocar no mesmo patamar de reflexão o artigo de Vítor Dias, mas ambos denotam uma desconfiança profunda sobre a ocorrência. As dúvidas hão-de sempre persistir, até porque a “Administração Bush” nunca se esforçou minimamente para dissipá-las, tantas que têm sido as mentiras atiradas aos olhos do mundo. O que eu sei é que quem quer que tenha ganho alguma coisa com o 11 de Setembro de 2001, deve neste momento estar-se nas tintas para estas “teorias da conspiração”. Até porque depois do 11 de Setembro de 2001 já houve o 11 de Março de 2004, em Madrid, e o 7 de Julho de 2005, em Londres.

Dúvida metódica

Deito-me no chão a ler o Diário de Notícias. A Matilde olha uma fotografia de George W. Bush, logo nas primeiras páginas, e pergunta-me quem é. Respondo-lhe que é um homem mau. Ela quer saber porquê. Explico-lhe que é mentiroso e que todos os mentirosos são maus. Mais à frente detenho-me numa página sobre algumas alterações a levar a cabo na débil justiça portuguesa. Num dos cantos da página, uma fotografia de Souto Moura. A Matilde volta a interrogar-me sobre a identidade do misterioso senhor. Respondo-lhe que é alguém que não sei se é mentiroso ou apenas palerma. Não fosse ela pensar que se tratava de mais um homem mau como o que anteriormente lhe tinha sido apresentado, disse-lhe logo que se tratava de alguém assim-assim. Papá, de quem tu gostas? A Matilde quer saber de quem eu gosto. Gosto de ti. Não papá, aí no jornal. Viro as páginas lentamente, uma a seguir à outra, uma e mais outra, sinto-me atrapalhado, o papá não gosta de ninguém, o papá é chato, terrivelmente chato, um macambúzio insuportável, um pessimista, uma desgraça, um triste misantropo. Até que vejo um rosto amável, de uma tal Maria de Jesus, nascida em 1893, apresentada como a mulher mais velha da Europa. Gosto desta, gosto desta aqui. Sinto um enorme alívio, a minha filha sorri. Finalmente alguém de quem gosto aparece no jornal que leio. Mas a Matilde, com um faro genético para a complicação do mundo, não é de ficar pela facilidade dos sorrisos simpáticos: Por que gostas dessa, papá? Não é mentirosa?

8.9.06

Pinto de Verde

Gostei do texto que Eduardo Pitta escreveu sobre a edição recente, pela Relógio D’Água, da obra completa do grande Cesário Verde. É um bom texto, com muita informação útil ao leitor comum e algumas questões pertinentes. Li-o no Mil Folhas e voltei a encontrá-lo no da literatura. Estando aqui tão à mão, não posso deixar passar em claro uma parte desse texto: «A poesia moderna portuguesa começou aqui. As cartas são trinta e duas, metade das quais dirigidas a Silva Pinto — que já em 1901 publicara onze no volume Pela Vida Fora —, e surpreendem sobretudo pelo vocabulário. Com efeito, salvo em situações de natureza muito particular, não é frequente um homem dirigir-se a outro chamando-lhe «tigre amoroso». Discurso directo: «O que eu hoje recebi de ti justificou-me, sem necessidade e mais uma vez, a grande lealdade da tua alma diferente de todas que tenho observado. És um tigre amoroso.» Nas notas, Teresa Sobral Cunha justifica o eufemismo com práticas «então muito em voga no jornalismo aguerrido», explicação contrariada pelo próprio Cesário, quando, no post scriptum de outra carta para Silva Pinto, escreve o seguinte: «O alto das cartas escrevo-o sempre depois da carta feita. Faço-as na loja e pode alguém ver ao passar o tratamento que nos damos.» E assina: «Teu amigo exclusivo, único e excepcional». Ficamos conversados em matéria de correspondência “aguerrida”.» Qual a ideia? Insinuar uma relação amorosa entre Cesário e Silva Pinto? Apontar o dedo à eventual pudicícia de Teresa Sobral Cunha? O que ganha a obra de Cesário em ficarmos na dúvida se este terá ou não sido homossexual? O que é que uma hipotética homossexualidade de Cesário pode acrescentar à obra? Interessará tal assunto ao leitor comum?

18 de janeiro


Fernando Dinis – Voz e Piano
«cogito em coisas que me recordam conversas distantes com amigos. não sei bem o quê, chegam à memória rostos e sons. vozes. não compreendo o que dizem, estou cansado. é-me difícil saber se sou eu ou o meu corpo que está cansado. talvez estejamos os dois, raramente nos separamos. aturamo-nos os maus humores e os momentos de insuspeita felicidade. dormimos e amamos juntos.
por vezes apetece-me deixá-lo, voar e estender-me por cima dele, esfregar-lhe o sexo na boca, nos cabelos, beijá-lo, fazer-lhe inesquecíveis cenas de ciúme, para depois ter o prazer da reconciliação comigo mesmo.
mas há momentos muito tristes, aqueles em que as plantas crescem subitamente para dentro da sombra, e tu não estás aqui. é obsessão minha amar quem passa. se abrisse os lhos ter-te-ia, só para mim. até à linha inexistente do horizonte do mar.
anoitece devagar. anoitece sobre os ombros. anoitece onde não estou e em redor do meu corpo, anoitece por dentro dos objectos que evocam a tua presença. a penumbra invade a casa, corrói tudo o que é sólido.
dantes, a solidão vergava-me, mas com o passar dos anos povoei-a com sorrisos, corpos, pequenos gestos que aderem à memória e me dizem que existo, que continuo vivo onde pressinto o coração a arder. é o ouro que se ganha quando se aprendeu a estar sozinho, tem-se tudo e não se possui nada. o que restava da memória foi partilhado ou foi abandonado para sempre. tudo está constantemente presente e vibra sob a luminosidade imperceptível de ser eterno na fracção de segundo.
se morresse agora mesmo não deixava nada, porque bebi toda a minha sede, esvaziei-me, devorei noites a fio esse amargo que têm as coisas antes de nos pertencerem. teu corpo, por exemplo, custou-me tanto inventar-lhe formas consistentes, um reflexo, uma sombra que se lhe adaptasse e o acompanhasse. teu corpo vive hoje dentro do espelho onde se perdeu o meu.
não escrever, não falar, não gesticular. imobilizar-me como a pedra que freme à passagem do vento. uma lágrima irrigará o cristal, um veio de água sobre as pálpebras, sobre os lábios que adivinham a transumância das constelações. a respiração rouca da árvore sob o peso da geada. a flor que sinaliza o caminho dos insectos. a terra, a pouco e pouco, perceptível ao tacto. grito, finjo que grito.
sentado à varanda do mundo morro como todas as coisas que morrem, sobrevivo com todas as coisas que vivem.
permaneço sentado, não faço absolutamente nada, nem mesmo pensar. descobri o lugar onde o corpo e a mente pernoitam fora do tempo.»
Al Berto, O Medo, Livro Décimo, 1985.
Fernando Dinis