31.1.08

Micros da borderline #1

Saí para a rua com uma saia nova que adquiri nos saldos – já não usava uma saia assim tão curta há uns anos e é rodada, dá gosto andar com ela. Pelo sim pelo não, enquanto acelerei o passo, verifiquei com a mão direita se ela estava bem no traseiro e oiço uma voz feminina a alertar-me nas costas: olhe que eu estou aqui a ver tudo. Viro-me para traz e deparo-me com uma black de sorriso luminoso, gozão e desato a rir à gargalhada, respondendo-lhe: com estas saias tem de se ter cuidado. Paramos as duas, eu continuo a rir e ela despede-se dizendo: a gente tem de se rir de alguma coisa, não é?

Maria João

30.1.08

Três Poemas* de Filinto Elísio

PRAIA, SETEMBRO 2006.

Filinto Elísio, nasceu em 1957 na Cidade da Praia. Ilha de Santiago, Cabo Verde.


I

estranho filósofo
que fazes filosofia
à porta do destino dos outros

diz-me quantas luas
faltam para que cheguemos
aonde estes passos nos levam

diz-me
já que espreitas
da fechadura mágica da tua alma
a diferença entre o sol e o solfejo

diz-me coisas absolutamente absurdas
para que eu sinta a fundo
o poço das minhas inquietações

dar-te-ei todos os dados da noite
a senha de todas as trevas
a chave da porta do destino dos outros


II

a secretária sonega o pouco carinho do burocrata
o palhaço suicida-se sob o autocarro vermelho
duas crianças disputam os despojos do lixo
o velho anima-se no seu último momento
algumas estrelas polvilham os olhares
a Igreja matriz deposita os fiéis na rua
mil e tantos convictos em Congresso
um comunicado e um panfleto
perdoem-me se o poema é apenas
um corte na carne dorida da cidade...
onde fui arranjar esta angústia de ser sozinho?
o que me leva a rodar tabernas nocturnas
tragando os terríveis dramas de cada um?
por que versejo extrapolações
coisas como ilusões tragédias surdas?
e o que é deste querer que amanheça amanhã
o travo amargo de uma claridade?
seja
a cidade é uma realidade sui generis
ruas de um só sentido becos sem saída
áreas restritas excessos de violeta
mercados negros ladrões de casaca
homens de escuta altamente qualificados
prostitutas vamps ditadores vips


III

parece um oásis
só de areia

pegadas tuas
procurei-as em vão
na orla das praias

sonhos meus
ficaram no vértice
dos montes do Sal



* Selecção de Jorge Aguiar Oliveira

A ORGIA

Charles Doudelet, Orgy, 1902.

Há um descaramento patente no modo como lidamos com a amizade quando ela se imiscui nos assuntos profissionais. O ditado manda que: amigos, amigos, negócios à parte. No entanto, o “à parte” é frequente e convenientemente esquecido em prol do que eu apelidaria de gestão das inimizades (outra forma de gestão de conflitos). Sabemos que não está tanto em causa o reforço de uma amizade como, para mau grado das nossas paixões, a táctica segundo a qual evitaremos um inimigo. É que facilmente um amigo se transforma em inimigo quando lhe dizemos não, quando lhe batemos com a porta na cara, quando puxamos da sinceridade e, não enjeitando o nosso lado honesto e autêntico, lhe dizemos com toda a clareza que a amizade deveria pressupor: para isto não serves, não tenho dinheiro para ti, não gosto, é feio, podes fazer melhor. É por estas e por outras que o amigo de seu amigo, geralmente, não passa de um gestor de inimizades. Na verdade, ele apenas evita inimigos distribuindo elogios, preparando a cama, engraxando as botas, pousando a palma da mão sobre o costado daqueles que, não querendo ter por inimigos, promove como amigos. Desenganem-se os leitores de Aristóteles que ainda julguem ser a amizade uma forma de virtude onde se manifeste reciprocidade entre justiça, concórdia, benevolência e nobreza. Como a nobreza há muito deu lugar ao arrivismo burguês, restam-nos a benevolência, a concórdia e a justiça. A justiça, como sabeis, é hoje o preço de um bom advogado. Justos ou injustos não serão os mais poderosos, mas, para efeitos práticos, são sempre os menos preguiçosos na argumentação da sua justeza. Onde o valor é determinado pela qualidade do níquel, a justiça passa a ser apenas uma questão de sustentabilidade, quase sempre remetida para os prazos que prescrevem o grau de injustiça de uma acção. Veja-se como o tempo tudo cura e como o esquecimento tudo aquece. Veja-se como, com o tempo, os injustos se tornam justos, as bestas se tornam bestiais, inimigos acérrimos aparecem de braço dado em negócios frutuosos. Esta maravilhosa conspurcação em que vivemos não pode senão ser explicada por uma benevolência cega que tem na sua origem a apatia e a subserviência. Somos muito apáticos e subservientes para com aqueles que nos agridem todos os dias, para com aqueles que nos mentem, exploram, iludem, roubam, atraiçoam. Somos tão apáticos e subservientes que nos deixamos ser benevolentes quando, na verdade, deveríamos ser implacáveis. Esta mania de perdoar a quem agride, de dar a outra face, desemboca sempre no mesmo: a viciação da amizade. Por isso julgo que, sem falsas modéstias ou idiota gabarolice, nos resta a autenticidade enquanto garante da amizade. Assim como assim, sabemos que ao aguentar a nossa autenticidade um amigo apenas reforça a admiração que lhe devemos. Sem autenticidade não pode haver amizade. Poderá haver apenas uma amizade artificial, mas essa não passa de mero artifício, por certo muito conveniente e lucrativo. Mas nada de falsos pudores. A amizade não premeia ninguém, a amizade autêntica apenas dá trabalho e dores de cabeça. Contra tais dores, sugiro a aspirina de um jogo de anca que vos permita, chamando amigo a qualquer conhecido, ter com todos um tipo de relação que não vos cause o transtorno de serem autênticos. Voltamos ao elogio. Sejam persistentes no elogio, mas não evitem uma certa discrição. Sejam, digamos assim, coerentes no elogio. E não desanimem se o lucro não for imediato. Mais tarde ou mais cedo o elogio ricocheteará, chegar-vos-á às mãos como um bálsamo para a paciência, fará valer o esforço de uma aproximação lenta, desabará sobre a consciência como… Não. Apenas desabaria sobre a consciência se ainda houvesse consciência. Como já não há consciência, o troco para o vosso pagamento assumirá apenas a forma de uma transacção, de uma permuta, de uma espécie de favor retributivo. O imposto a pagar será sempre o mesmo: a admiração de uns, a aversão de outros, o respeito de alguns, o rancor de outros tantos, isto tudo distribuído equitativamente e, a seu tempo, alternadamente. Mas nunca o amor. O amor é para os pobres, para os desamparados, para os mendigos.

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #5

GANGUES DE BADALHOCOS



Vai ser executado amanhã
quando baterem onze horas.
A nota à imprensa refere
que serão declamados poemas
por consagrados actores
profissionais, em vários cafés
da praça, antes e depois
da agulha o foder. Em directo,
pela televisão, um royalty show
estilo democrático para bater
o record das audiências
canibalescas. Há patrocinador,
comissária, padre e comentador
na comissão de honra
do pelotão de execução.

Não sendo da geração
qualquer coisa tanto faz,
que trocou a poesia por fórmulas
4x4 raiz quadrada, calhaus,
asteróides ou baratas
de laboratório, trincava
no entanto, pregos
e cachorros em restaurantes
que são vagões de gado
em alumínio. A sua sandes
de engasgue, foi uma violação
muito mediática, senão...

Pisando sombras de varandas,
segui à chuva passando junto
à janela mal iluminada por detrás
do teu peito. Parando, rasguei
a noite para não chegar o dia
e assoprar as cinzas desta
agonia e rasguei o bilhete
para o espectáculo.

Jorge Aguiar Oliveira

MORTE AOS POMBOS NAS CIDADES

(Prima na imagem para ver melhor.)

Jorge Aguiar Oliveira

29.1.08

DIZEM QUE É AMIGO DO SEU AMIGO #3

José Miguel Júdice nasceu em Coimbra em 1949. Licenciou-se pela Universidade de Coimbra em 1972. É advogado desde 1977. Pertenceu ao Conselho Geral da Ordem dos Advogados e ao Conselho Superior da Magistratura. Ajudou a fundar o PSD, acabando por desvincular-se recentemente desse partido e aceitando ser mandatário da candidatura de António Costa (PS) à Câmara de Lisboa. Foi convidado por José Sócrates para coordenar a reabilitação da zona ribeirinha da cidade. José Miguel Júdice é também proprietário do Hotel Quinta das Lágrimas, em Coimbra, e sócio do maior escritório de advogados do País (PLMJ). Foi julgado pelo Conselho Superior da Ordem dos Advogados depois de, numa entrevista ao Jornal de Negócios, em 2005, ter defendido que o Estado devia contactar as três maiores sociedades de advogados do País para serviços de consultadoria, entre as quais a PLMJ da qual é sócio e que conta com 220 advogados. Veio a Público, recentemente, criticar Marinho Pinto por este ter declarado a existência de pessoas com cargos de relevo no Estado português que cometem crimes "impunemente". «De acordo com o antigo bastonário, as declarações de Marinho Pinto correspondem a "estratégias populistas e demagógicas" que são "contraproducentes".» Parabéns Portugal.
#1 #2

28.1.08

THE GREEN RAY


Tacita Dean (n. 1965) é uma artista britânica cujo trabalho vem sendo divulgado com alguma frequência em território luso. Especialmente reconhecida pelas suas produções em vídeo, nomeadamente depois da nomeação para o Prémio Turner com Disappearance at Sea (1996), tem no mar um tema recorrente. Na imagem ao alto reproduz-se uma imagem de The Green Ray (2001), onde filmou um pôr-do-sol em tempo real captando esse extraordinário fenómeno natural que foi objecto de uma obra de Júlio Verne. Ao longo dos tempos a forma como os artistas têm abordado o mar é muito diversa. Símbolo de força e de mistério, de movimento e de renovação, o mar é, por excelência, o lugar da incerteza. Quem vai ao mar sabe que pode apenas contar com a sorte, lança-se nas mãos do destino, entrega-se ao que Deus quiser. Olhamos para o mar sempre com justificada admiração, pois no mar vislumbramos tanto a prova da nossa debilidade como o princípio de uma fé alicerçada no temor causado por nos sabermos assim tão frágeis, ínfimos e insignificantes. Ninguém sabe o que encontrará para lá do mar, ninguém sabe o que encontrará no próprio mar, sabe apenas que encontrará uma força indómita e inexorável. Com a maior das facilidades, o mar tudo arrasa e engole. No entanto, paradoxalmente, olhamos também para o mar com algum embevecimento. Também lhe vislumbramos uma beleza inaudita, uma espécie de sublimidade que jamais obra humana alguma poderá partilhar. O mar tem esse lado terrífico e belo que os antigos atribuíam a várias divindades, faz-nos crer na beleza do terror e, por alguma razão, atrai-nos para mistérios que, de outro modo, nos seriam repelentes e indesejáveis. Mas o mar é uma tentação, é um canto irresistível que nos ilude os sentidos, usurpa a razão, leva à loucura. É possível que seja este o último passo do nosso abismo: sentirmo-nos atraídos pelo que tememos ao extremo. Mas em The Green Ray há um outro fenómeno presente, um fenómeno natural que, filmado num horizonte marítimo, chega a anular a presença do próprio mar. Trata-se de um fenómeno luminoso, algo contrastante com o silêncio e a bruma que caracterizam o fundo dos oceanos. Este fenómeno luminoso recolhe sobre si uma densidade metafórica impressionante, na medida em que é o último resquício da luz do dia antes de cairmos na treva da noite. A tal dinâmica que simbolicamente atribuímos ao mar, símbolo da renovação, torna-se presente de uma outra forma, por um outro prisma ou com um outro alcance. O que Tacita Dean faz nesse vídeo é captar um instante fugidio, a presença efémera da luz no momento de supressão do dia, aquele último instante de esperança antes de sobre tudo se abater a escuridão. A artista, ao ir em busca deste instante e logrando, de certo modo, a captura do mesmo, metaforiza a sua própria condição. Duvido que possa ser outra a condição do artista, senão essa de captar instantes que, cada um à sua maneira, nos mostrem um outro lado, nos ofereçam uma alternativa, nos ajudem a respirar melhor. Não se trata de chamar os pobres mortais à sublime luz divina, até porque a gangrena da noite, ao contrário do sopro de Deus, é um dado adquirido e inevitável. Trata-se antes de, antes que seja tarde, fazer surdir da treva um pouco de luz, roubar à treva esse pouco que a desengana, fazer da própria busca a assinatura de uma existência que será sempre, para todos os efeitos, frugal, absurda, mísera e desimportante.

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #4

O HEMICICLO DOS ROEDORES



Se chegares a depois de amanhã
vai até à praça maior e anula-te
numa parede qualquer suja de grafittis
ou num aroma de iogurte dum mupi.
Serve a camuflagem. Observa-os
a andarem para baixo e para cima
com os ponteiros do relógio
no cartão de crédito – vala depositária
dos poucos nadas e vazios emprestados
num bolso roto de frustração
por tanto desnorte – e sonhos curtos.

Não fales, não tussas sequer
nem apontes o dedo rebelde
a nada nem a ninguém. Muito menos
saques do bolso a bandeira preta
para limpares as migalhas da fome.
No momento certo, e o momento
certo não é quando estão distraídos
porque eles estão sempre.
O momento é quando estão
simplesmente mais

e faz-te explodir

de poesia. Haverá feridos
pelos estilhaços dos sentidos
impressos e lembrado serás,
com certeza, num noticiário
como uma louca pulga terrorista
e nada mais. Se entretanto

os nervos e a raiva
banharem de esperança teus olhos,
e estes avistarem o eterno sonho
e te parecer vir lá do sul
D. Sebastião, podes crer:
é a mais bela e eterna
Máscara de Carnaval a andar
para baixo e para cima

para cima e para baixo.

Jorge Aguiar Oliveira

27.1.08

«AS SIMPLE AS THAT»



Ligações no Adufe e no Ma-Schamba – não detectadas pelo Technorati ou pelo Site Meter -, às quais cheguei por via de um comentário do Rui MCB deixado neste post, obrigam-me a alguns esclarecimentos relativos a um desabafo que deixei no renovado Ma-Schamba. No dito desabafo pretendi apenas manifestar um certo incómodo enquanto leitor do weblog em causa, referindo o que a seguir reproduzo: «Detesto publicidade nos weblogs. E quando chego ao Ma-schamba continua a haver aquela coisa irritante de uma janela pop-up a querer intrometer-se no caminho.» A segunda questão está resolvida: a famigerada janela desapareceu. Quanto à primeira questão, anteriormente aflorada noutros posts, com desenvolvimentos interessantes no weblog Desmancha-Prazeres (vide Poluição Visual), impõem-se umas tantas notas explicativas:

1. Não sou de todo contra a publicidade. Bem sei que posso parecer palerma, mas não me tenham em tão baixa conta. Disse apenas que detesto publicidade nos weblogs, não disse que detesto publicidade. Portanto, fique claro que nenhum preconceito me move contra a publicidade. Isto não me impede de considerar que a publicidade, anteriormente tomada como um discurso de sedução, tenha vindo a transformar-se, por razões diversas que não cabe aqui aprofundar, numa presença agressiva, sufocante e, por isso mesmo, num discurso de violação. Ele é publicidade na caixa postal, no e-mail, nos telemóveis, no telefone, nas ruas, antes da sessão de cinema, etc, etc, etc. E agora também nos weblogs.

2. A razão por que detesto publicidade nos weblogs pode explicar-se, muito simplesmente, por dois factores:
a) é tão inestética quão poluente (olhem bem para a imagem que ilustra este post e digam-me, por favor, se não concordam comigo);
b) abre caminho para a transformação dos weblogs num negócio como outro qualquer, com todas as consequências que daí advenham.
Penso que a primeira alinha, de tão óbvia, explica-se por si própria, pelo que não a aprofundarei. Vamos à segunda alinha.

3. Quando cheguei aos weblogs, em 2003, encontrei um espaço privilegiado de partilha de ideias, um espaço comunicacional propício ao debate, à discussão, a encontros e a desencontros, no fundo um laboratório de escrita e um saudável exercício de cidadania democrática. Confesso alguma saudade dos tempos em que a discussão ficava pelas virtudes e pelos vícios do anonimato. Seguiram-se a discussão dos weblogs transformados em livros, as transferências da blogosfera para os jornais e dos jornais para a blogosfera, a chegada ao meio de algumas vedetas nacionais, etc. A blogosfera, pelas mãos de algumas criaturas que se aperceberam das potencialidades do isco, passou a ser vista como um negócio em ascensão. Há quem não consiga olhar para o mundo sem ver potencialidades comerciais em tudo o que mexa e atraia público. É a vida. Com o fenómeno dos weblogs passa-se exactamente o mesmo. Não que isso seja necessariamente mau, é apenas o rio a seguir o curso da sua inevitável tragédia. A publicidade está aí, estará cada vez mais presente e em circunstâncias que, mais tarde ou mais cedo, poderão não deixar alternativa àqueles que, como eu, a evitam como sabem e podem. O problema é só um, e não é, como alguns adiantam, o facto de se fazer ou não dinheiro com isso. Aliás, essa questão até me parece algo pacóvia. Antes ganhassem muito dinheiro com a publicidade que têm nos weblogs. Sempre seria uma justificação plausível para sujarem as paredes com os cartazes. Não sendo esse o caso, então para quê terem a tal publicidade? Se ela não for necessária, se nem sequer vale o $, então não será preferível evitá-la? Porquê ceder a mais esse poder? Fica bonito? Qual é, então, o problema? O problema é que onde há negócio haverá, mais tarde ou mais cedo, regulação. Fecha-se a porta à anarquia (saudável) em que temos vivido, escancarando as pernas aos legisladores, aos cobradores, aos administradores, aos gestores, a toda uma série de gente que nunca saberá viver sem impor aos outros as suas formas de vida, as suas regras e os seus limites. É por estas (e por outras) razões que detesto a publicidade nos weblogs. No fundo, sem ela respira-se muito melhor.


P.S.: Saudações leoninas ao JPT e ao Rui MCB.

Labirinto #5

MJLF, Em viagem, 17,5x12,5cm, pasta de madeira in Big Ode #2, Julho 2007.

Maria João

26.1.08

DENÚNCIA


Antero de Quental
Do Suicídio a 11 de Setembro de 1891,
à incúria da Câmara Municipal de Lisboa.
Jardim da Estrela, 13 de Janeiro de 2008.

REDENÇÃO


I

Vozes do mar, das árvores, do vento!
Quando às vezes, num sonho doloroso,
Me embala o vosso canto poderoso,
Eu julgo igual ao meu vosso tormento...

Verbo crepuscular e íntimo alento
Das coisas mudas; salmo misterioso;
Não serás tu, queixume vaporoso,
O suspiro do Mundo e o seu lamento?

Um espírito habita a imensidade:
Uma ânsia cruel de liberdade
Agita e abala as formas fugitivas.

E eu compreendo a vossa língua estranha,
Vozes do mar, da selva, da montanha...
Almas irmãs da minha, almas cativas!


II

Não choreis, ventos, árvores e mares,
Coro antigo de vozes rumorosas,
Das vozes primitivas, dolorosas
Como um pranto de larvas tumulares...

Da sombra das visões crepusculares
Rompendo, um dia, surgireis radiosas
Desse sonho e essas ânsias afrontosas,
Que exprimem vossas queixas singulares...

Almas no limbo ainda da existência,
Acordareis um dia na Consciência,
E pairando, já puro pensamento,

Vereis as Formas, filhas da Ilusão,
Cair desfeitas, como um sonho vão...
E acabará por fim vosso tormento.
Antero de Quental

Jorge Aguiar Oliveira

UM POEMA DA ALMA SEGUIDO DE UM POEMA DO CORPO

(1)

UM PRATO DE PEIXE OUTRO DE CARNE


É de tarde e você comeu frugalmente. Sardinhas assadas
Do dia anterior. Para escorregar melhor, uma caneca
De “Castillo de Salobreña”, sem álcool, “base de mosto de uvas
De vino y manzana”. Lavou as mãos? Não lavou. Não tem
Problema – a higiene é como as manhãs de Junho (fica bem quando
Está e bem quando não
Está – uma frase
Que não é nem carne nem peixe). Mas dizia
Eu que é preciso juntar, pois é disso
Que se trata: um salmão fresquíssimo, dois
Ovos de avestruz, um cheirinho de louro e outro
De aguardente, um molho de hortelã e duas
Codornizes. Abra o peixe, frite a carne, urine
Entrementes um pouco de lado se acaso pensar
No tal poeta que também é médico: aproveite para
Se vingar dando um ou outro
Violentíssimo traque como vírgulas, no interior da panela
Da escrita. Considere, sorrindo, que a alimentação
Tende para o sujo, para o torpe, para o inefável
Se a sua voz é cheia como o Verão
Que findou há doze anos: esse verão de 94
Que nunca lhe sairá da memória.
Coza a carne, corte o peixe, polvilhe com pimenta
Deixe alourar tudo misturado. Grite. Grite mais. Ria desabaladamente.
Cague nas suas desilusões. Jure que vai desmaiar. Faça de conta que vê um rio
Que viu um rio
Que esteve em cidades quotidianas mas que o assustaram mortalmente.

Assim eu cozinhava. Assim eu vi –
Mas vi mesmo, vi convictamente
Papoilas na noitinha nascente ao pé de um muro derrubado –
E assim eu comia, tal como dobava linho
Aquela mulher velha da fotografia
Ou o outro entre móveis simples de pinho
Ou de castanho
Olhados, perdidos, olhados.

Hoje devoro torradas
Não muito a fundo. Debicando um pouco
Pois tremem as chamas das velas e quando se adormece

Respira-se como se não mais houvesse presságios nem minutos.


(2)

ANUNCIAÇÃO

As mulheres do vento parado como um planeta extinto
as mulheres doentes as mulheres que cantam com surpresa
o seu vestido estranho como uma renda como uma absurda mancha
as mulheres do meu dia como um peso de cores distintas

entre mim e o céu

Entram pela minha boca e censuram-me docemente

Aqui, diz uma, puseste o horror de um velho instante
ali, diz outra, não deixaste repousar os devaneios
Há uma que paira, como se me fitasse a direito, com as mãos
junto da testa, perto dos olhos, os lábios palpitando
estremecendo como uma pétala sobre a água
Mulheres de negro, afagando pastas de couro em lojas improváveis
escrevendo em papéis antigos fórmulas de gentileza
Mulheres que a diabetes assolou como praga medieval
mulheres de pernas como lírios rosados
andando ao longo duma estrada francesa
as árvores coloridas formando uma cortina imprecisa

Job de rosto erguido amargo senhor das angústias
a sua face trémula tão igual à do Senhor na noite de suor e remorsos
a sua mulher por detrás, arrepanhando as vestes

Dizei-me mulheres onde com que luz a vossa fotografia se encarquilhou
na madeira queimada das velhas casas onde medrava a guerra
Vós sois o sustento dos pontos cardeais

Lembro-me de ti, Marion, o rosto rodando como um guindaste
e o fumo que soltavas com um meneio elegante da mão esquerda
o fumo espalhado no parque abandonado
os olhos tranquilos frios
A rua solitariamente sob a noite de Junho
e o cão o velho cão dos bosques que trotava muito devagar

A vossa figura palpitante, mulheres, irisada obscura
à lux frouxa da manhã e o frio subindo até às portas como um animal a morrer.

Nicolau Saião

in “O armário de Midas”

25.1.08

Labirinto #4


MJLF, projecto de Joana Fernandes in Artstrike II, Esbal, inverno/primavera 1992.
Maria João

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #3

CONTENTOR CRIOL



Trazia um fogo lá atrás e ele
à frente trazia outro. Aquecemos
a emoção e um café na boca
do gás à cabeceira do divã, onde
um saco cama com pó de cimento
esperava os nossos gestos usados.

Pregámos o tempo da obra
dos nossos segredos na parede
do contentor – a que disse a partir
dali ser também casa minha
– junto à foto do Grace Evora,
colada ao lado do caco do espelho
salpicado de creme de barbear
e cagadelas varejas.

E tud vez kno incontra
el ta torna nasce cantou o outro
enquanto ele foi-me fodendo
os ouvidos com as suas histórias
crioulas de ter quatro mulheres
e sete filhos numa ilha coalheira
onde a fome seca a água pouca.

À nossa frente a Cruz de Pau.
Ao longe, muito ao longe,
Santo Antão, antecipando
a sombra da saudade. Dela
ficou até hoje a herança

o doce voo do pássaro
que avistámos
de mãos dadas, num fim
de tarde a separar-nos
até outro dia

um dia que nunca chegou.

Jorge Aguiar Oliveira

24.1.08

Labirinto #3


MJLF, Da cidade, aguarela s/papel, 21x30cm, 2008.

Maria João

DON'T WORRY


DEIXEM-ME TER UMA MORTE DE JOVEM

Deixem-me ter uma morte de jovem
não uma morte limpa & entre
os lençóis com água benta
não uma morte com últimas-palavras-famosas
ofegante e suave

Quando tiver 73
& de constante bom humor
que eu seja ceifado ao amanhecer
por um belo carro desportivo vermelho
a caminho de casa
de um bródio que durou toda a noite

Ou quando tiver 91
com cabelo de prata
& sentado no barbeiro
que gângsters rivais
entrem com metralhadoras
& me cravejem costas & barriga

Ou quando tiver 104
& proibido de entrar no bar
que a minha amante
me apanhe na cama com a filha
& receando pelo filho
me corte aos bocadinhos
& deite fora todos menos um

Deixem-me ter uma morte de jovem
não uma morte sem pecado, em bicos de pés
velas & declínio
não uma morte de cortinas corridas por anjos
não uma morte ‘que bela maneira de partir’


Tradução de Manuel de Seabra.

Photobucket

Roger McGough nasceu em Liverpool a 9 de Novembro de 1937. Estudou na Universidade do Hull, na mesma altura em que Philip Larkin era aí presidente da biblioteca. Reconhecido poeta e performer, foi membro do grupo de música humorística The Scaffold – autores de uma famosíssima versão de Lily The Pink - e apresentou, na BBC Rádio 4, o programa Poetry Please. Tornou-se popular depois de ter escrito alguns diálogos para o filme O Submarino Amarelo, dos Beatles. Como poeta, estreou-se no volume The Mersey Sound (1967). No mesmo ano publicou a sequência-poema Summer With Monika. Entretanto foram-lhe atribuídos vários prémios e condecorações.

23.1.08

Fragmento #58 – O Vinho

Morreu no passado domingo o Eng. Colaço do Rosário, após prolongada doença. Foi alguém com quem tive o privilégio de conviver, desde sempre, devido à amizade com a sua filha Teresa, minha colega na escola primária e amiga desde a infância. O Eng. Colaço do Rosário para mim sempre foi sinónimo de vinho, com ele e com a filha provei, aprendi a apreciar e conheci excelentes vinhos, partilhei experiências estéticas difíceis de descrever. Agora já não vou provar os seus novos vinhos, mas ele deixou escola, foi um dos responsáveis pela implementação de novas tecnologias na produção dos vinhos no Alentejo, de que é exemplo o trabalho pioneiro que realizou ao lado de Joaquim Bandeira (que também já não se encontra entre nós) até finais dos Anos 80 no antigo Esporão, foi também o enólogo responsável pelos vinhos da Fundação Eugénio de Almeida, produzindo verdadeiras obras de arte como o Cartuxa, Peramanca ou vinhos mais correntes e acessíveis de excelente qualidade como Foral de Évora ou os EA; deixou obra e escola, foi professor de Enologia na Universidade de Évora, mas os seus vinhos eram especiais e únicos. Lembro-me de uma prova informal que realizámos em sua casa, eu cheguei com alguns exemplares produzidos pelos meus tios em Vila Chã de Ourique (Quinta da Amoreira) e aprendi como se fazia uma prova a rigor: abrimos as garrafas, sentámo-nos à mesa, cada elemento tinha à sua frente um guia escrito com as regras. Começámos por discutir a cor do primeiro vinho, descrevendo-a e classificando-a, depois o aroma, depois tocávamos com os lábios no vinho suavemente e aspirávamos sem engolir – fiquei a saber que assim sentíamos o seu aroma no nosso interior – de seguida colocávamos um pouco de vinho na boca, sentindo o seu gosto, mas cuspíamos para uma taça e só no fim se podia provar engolindo. Em todos os passos do ritual atribuíamos notas, discutíamos, dávamos as nossas opiniões, o Tio Colaço dizia-me que tinha uma boa intuição para os tintos e de facto eu gosto muito mais de beber vinho tinto. Mas eu adorava os seus vinhos brancos, não me esqueço daqueles primeiros Cartuxa estagiados de madeira de carvalho, ou daqueles brancos do Esporão. Habitualmente, não bebo vinho branco, nem rosé. Mas com os rosés aconteceu-me algo ainda mais engraçado: há cerca de quatro ou cinco anos, combinei um jantar na minha casa com alguns amigos. Era uma tarde de verão muito quente, diria abrasadora e insuportável, chegou a Teresa com uma caixa de vinhos, com a boa disposição que a caracteriza e disse-me: trago aqui uns rosés do meu pai que são espectaculares. Eu feita tonta desconfiei, como sou adepta de tintos e alguns brancos, mandei uma boca do estilo isso deve ser refresco. A Teresa que é danada para a brincadeira colocou as garrafas no congelador e fomos preparando as coisas para a festa. Passado mais ou menos meia hora começaram a chegar os convidados e servimos o rosé fresquinho como aperitivo naquele fim de tarde ainda muito quente. A boa disposição a pouco e pouco tornou-se geral, as janelas na casa estavam abertas para o começo da noite um pouco mais fresca, o ar já circulava. Eu bebia o rosé como se fosse um refresco, era suave e muito agradável no primeiro impacto, mas de repente começo a ficar tonta de riso e lenta nos gestos, a frescura tinha chegado ao meu interior. Viro-me para a Teresa e digo-lhe: olha lá, este rosé não é tão suave como parece, acho que necessitamos todos de começar já a jantar. A Teresa ria-se à gargalhada e respondeu: então tu achas que o meu pai alguma vez iria fazer um rosé tipo refresco? Este vinho tem 13º!
OBRIGADA PELOS TEUS VINHOS, SERÃO SEMPRE UMA REFERÊNCIA NO MEU INTERIOR, GUARDO-OS NA ALMA!

Maria João

OS PINÓQUIOS


Afinal parece que é verdade: o presidente George W. Bush é mentiroso. Sei que havia uma réstia de esperança a alimentar a vossa fé, sei também que, para nosso desengano, 1000 estudos poderão ser realizados que haverá sempre alguém descrente dos resultados, sei ainda que o homem é um animal estranho. Quando digo o homem não me refiro necessariamente ao animal Bush, refiro-me à humanidade em geral. Afinal, é a humanidade em geral que acredita em mentiras. Tenho uma teoria segundo a qual as pessoas gostam de ser aldrabadas. Ou isso ou o masoquismo. Desconfio que se trate de um estranho prazer. As pessoas adoram ser enganadas, preferem acreditar nos mentirosos e vilipendiar quem lhes diz a verdade. Não há-de ter sido por acaso que Jesus Cristo acabou pregado na cruz e a Igreja Católica Apostólica Romana transformou-se um imenso império. Nada disto foi por acaso. Os mais radicais dir-me-ão que esse império foi alimentado à custa das mentiras do desgraçado que morreu na cruz. No entanto, contextualizada a questão, facilmente concluiremos que Jesus nunca mentiu, disse sempre a verdade. Por isso mesmo nunca terá dito que era Deus, limitando-se apenas a fazer-se passar por filho do dito. Somos todos. Até o tal Bush. Só por ser filho de Deus é que lhe perdoamos, só por esse motivo não será julgado como deveriam ser julgados todos os facínoras, só por essa razão nunca se sentará em Haia. Por essa e porque para cada mentiroso há sempre, pelo menos, 10 oportunistas. Já fiz as contas e sei bem que é assim. Bolas, todos nós já mentimos. É verdade que mentir centenas de vezes não é para qualquer um. Só os mentirosos cimeiros (assim tipo os poetas cimeiros) possuem esse dote de mentirem com quantos dentes têm e mais uma placa dentífrica em cada mão, levando o mundo inteiro – ou parte dele -a acreditar piamente nas suas mentiras. Em Portugal houve, e haverá sempre, umas tantas almas piedosas empenhadas na defesa do indefensável. Por mais estudos que apareçam, as 935 afirmações falsas merecerão sempre o tal “mas” que, noutras circunstâncias, jamais merecerá a mesma atenção. Ou, como agora se diz, jámé, jámé. 935 mentiras em dois anos é muita mentira. Só Bush terá sido autor de 259 dessas mentiras, 231 sobre armas de destruição massiva que nunca foram encontradas e 28 sobre vínculos do Iraque com a Al-Qaeda que nunca foram provados. Não são tantas mentiras quantos os intrujados que acreditaram nelas, é certo. Uma mentira, boa ou má, merecerá sempre a consideração de muita gente incauta, muita gente que, apegada ao mote dos seus preconceitos, homens cândidos e indefesos, não quer ver para lá das viseiras com que foram amestrados. De rabinho entre as pernas, vão alguns, às mijinhas, levantando o véu da vergonha. Mas agora é um pouco tarde, não acham? É que as mentiras já provocaram imensos mortos, muita vida destruída, uma série de Carnavais vergonhos, a desacreditação do único organismo mundial capaz de, na medida do possível, aplicar-se na ordem do mundo. Foram mentiras catastróficas, facturadas em coro, com direito a fotografia e a orquestra. Os mentirosos continuam por aí, ocupando altos cargos com o nosso beneplácito (o meu não, mas cada um que fale por si), vivendo das suas mentiras, engordando com o sangue das embustices. Chouriços dum cabrão. George W. Bush, Dick Cheney, Condoleezza Rice, Donald Rumsfeld, Colin Powell, são apenas alguns nomes. Têm as bocas sujas de falsidade. Não esqueçamos os restantes, entre os quais, tão ingénuo que ele foi, tão ingénuo que ele era, o actual Presidente da Comissão Europeia. Nóbeis, então, para essa escória toda. De preferência entregues em Haia.

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #2

SOBREVIVÊNCIA A BRANCO E PRETO



Encosta e desliza a lâmina
de ponta-e-mola ao pescoço
da gaja sem banda gástrica
nos cartões de crédito
mijando gritos com biqueira
e arranca-lhe os brilhos de oiro.
As orelhas sangrando e pernas
para que te quero em fuga.

Desempregado, assalta casas
rouba roupas dos estendais
e saca cimento, tijolos, clandestinos
na sacola do compadre no fim
da jorna, na obra, para construir
a pouco e pouco um abrigo
para os filhos vivendo
como cães na berma da fome.

Caricas abandonadas no asfalto.

Pontapeio uma carica e atravesso
o ranger da dobradiça da porta
da barraca, encosto o meu peito
ao seu, e o seu suor tinge
a minha pele de preto

e pretas nascemos de novo
eu e a manhã.

Jorge Aguiar Oliveira

21.1.08

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA

A 26 de Março publiquei aqui o seguinte aviso: “A dezassete do último mês de Janeiro, escrevi ao Henrique Fialho pedindo-lhe guarida para os meus poemas inéditos no Insónia. A sua resposta foi generosa como se constata. Desde então, três poemas por semana têm vindo a partilhar a sua própria luz, num caudal de desejo, onde a foz é um livro.
A partir de hoje, os poemas já editados bem como os próximos, serão arrumados de acordo com a construção momentânea do livro. O mesmo sustenta um título de gratidão: Insónia em Segunda Mão.
Até ao final (?) tudo estará em aberto. Tanto para introduzir alterações na escrita, no aniquilamento público de poemas, ou até mesmo, na tomada de decisão pela não edição do livro. Logo se verá.
Aproveito para agradecer a todos os que têm expressado opinião sobre os meus escritos e dizer-lhes que não me salvando desta malfadada tristeza que carrego, são no entanto suaves festas no rosto de minha alma.”.
O poema publicado hoje “DE COTOVELOS NO PARAPEITO” é o último. Algo me diz para ficar por aqui.
Informo os navegantes que só voltei a ler (de corrida) alguns dos meus poemas aqui editados uma única vez. Chegou o tempo de partir, refugiando-me algures com os escritos e rever tudo. Logo se verá o resultado. Se um livro, ou regressar a este blogue (se o Henrique continuar a dar-me abrigo) e continuá-los se entender ser cedo para a impressão tipográfica. No próximo dia 1 de Setembro voltarei a dar notícias. Até lá, continuação de boa saúde ao Insónia!

Jorge Aguiar Oliveira
Lisboa, 22 de Junho de 2008. Portugal.

TÍTULO
Insónia em Segunda Mão



PRIMEIRA PARTE
UM RESTO A CONTA-GOTAS

SEGUNDA PARTE
TIROS EM PELE DE GALINHA

TEMOS FOME, MERDA!
SOBREVIVÊNCIA A BRANCO E PRETO
O HEMICICLO DOS ROEDORES
GANGUES DE BADALHOCOS
ESFÉRICO ARMILAR
DE TRELA PARA A CELA
RATAZANA JOLI
GRANDE GAITA
CONFERÊNCIA COCO CAJU
AEROPORTO DE PAPELÃO
REMÉDIO SPA
PROFESSOR LHIT
VOU DANÇAR TEU FUNANÁ
OS RINOPIT BULL
CARJACKING, TRAILER 1
P DE FACA E TACHO
ARRABALDE MONÓTONO
DEI POR ISSO… SÍLVIO VARTIN
FORA DO PENICO
O CONTROL DOS ESCRAVOS

TERCEIRA PARTE
GUIÕES PARA CURTAS METRAGENS SOBRE FÊMEAS

CHARRO TÁS MAL
EM LISBOA, TUDO NA MAIOR
UM SIM ONLINE
CHOCOLATE SAUDADE
GANDA MALUCONA
VITÓRIA NEGRA
A SANDIE SHAW DE CAMPO DE OURIQUE
TRADUÇÃO ENCRAVADA
UMA CARTA MORTA
FITA PRETA NO BRAÇO
SANDES DE CHOURIÇO
PIZZA PARAÍSO
O PERFUME DO DIABO
INFECTADA MELOPEIA
QUEM ME DERA UM FÃ ASSIM
VINGANÇAS & COBARDIAS
BRAÇO DADO COM O MORTO
MARIONETA ZEN
UM GOLPE NA RACHADA
A LI E A LU

QUARTA PARTE
CAIXOTES E RELICÁRIOS DE LIXO

CONTENTOR CRIOL
NA ÓRBITA DO PIÃO
FOTOCÓPIA GATUNA
ERROS
ILHÉU DO COSMOS
GRATO
GUARDANAPO
FARRAPO DE TEMPO
JOANINHA CENTIMETROSEXUAL
TCHEKA PAIXÃO
SMSúplica
SOPRO DE LUZ MORIBUNDA
MODINHA BICHAROLA
NEM NEM
PROMOÇÃO DO CARALHO
POST-ITS COM SOM DE SÓ
CAIXOTES DE RAÇÃO
DIAS EM QUEDA
OBSESSIVO VERME

INÉDITOS DE JORGE AGUIAR OLIVEIRA #1

TEMOS FOME, MERDA !



Tresanda
ao mesmo fétido cheiro
a fome
tanto em Darfur
como na Ilha de Santiago,
na Moldávia ou
num passeio de Lisboa.

Sobrevivemos de fiado
andamos aos caixotes
roubamos por raiva.

No comboio
da linha de Cascais
os burgueses exibem
o dinheiro a mais que têm,
lendo a Maria o Expresso
os livros de aventuras
astrológicas do Coelho

e, o brilho dos anéis
do baralho dos cartões
de crédito na carteira
e outros excessos,
a pedir traulitada
cegando-nos de raiva

enquanto os nossos filhos
nem sequer têm uma colher
de arroz, nem um pão,
e nós
e mesmo eles

que futuro?

Labirinto #2


Jerónimo Tavares Mascarenhas de Távora, Epithalâmio, 1738, in Ana Hatherly, A casa das Musas, Ed. Estampa, Lisboa 1995.


Jerónimo Tavares Mascarenhas de Távora nasceu em Lisboa, formou-se na Universidade de Coimbra, na faculdade dos Sagrados Cânones em 1731, foi Juiz de fora da Vila de Marvão e notabilizou-se como poeta, constando a lista das suas obras na Biblioteca Lusitana de Barbosa Machado. O presente texto-visual foi encontrado por Ana Hatherly na Biblioteca Nacional e classificado pela autora na categoria de Labirinto devido a apresentar a possibilidade de leituras múltiplas, para além do assunto que nele é abordado. Trata-se de um Ephithalâmio que celebra o casamento de D. Joana de Bragança, neta do rei D. Pedro II, sobrinha de D. João V, com o Conde de Monsanto, Dom Luís de Castro. Nele observamos o nome dos noivos em forma de leque, escrito com maiúsculas, sobrepondo-se ao texto em minúsculas. Toda a escrita se desenvolve na página em encruzilhada, colocando em destaque as letras dos nomes dos noivos. Este maravilhoso Ephithalâmio é um texto-visual do estilo barroco português tardio.

Maria João

O SANGUE DE SIMONE

A propósito do centenário do nascimento de Simone de Beauvoir, recupero um post editado a 11.1.06. Mudei-lhe a imagem, elaborei algumas correcções e, por culpa da capa da Nouvel Observateur, vejo-me obrigado a constatar que Simone não só era uma mulher inteligente como também tinha um cu bastante apetecível (o que desfaz o velho mito segundo o qual a inteligência nada quer com a beleza física). Sobre a sua obra vem-se abatendo, com o passar dos anos, uma nuvem turva de esquecimento. Há sinais preocupantes que nos dão conta desse facto. Se for exagerado falar-se de esquecimento, fale-se então do "gigantismo" de Sartre, seu companheiro de sempre, que acabou por lançar para a penumbra o que há de consequente na obra da mais conseguida escritora existencialista de todos os tempos. Criada no seio de uma família com aspirações aristocráticas, tipicamente burguesa, Simone cresceu em dissonância com a sua condição familiar. As privações que se seguiram à Primeira Guerra Mundial obrigaram a família a alguma austeridade, o que abonou em favor do desprendimento material que caracterizava a autora de O Segundo Sexo. Uma infância aprazível, rotineira, com apenas um senão: a exigência, por parte da mãe, de uma educação religiosa. A então jovem escritora iniciou a sua primeira grande batalha pela afirmação da individualidade, quando, aos catorze anos, renunciou a todo o tipo e fé. Ao mesmo tempo, conta a biografia oficial, aprofundou uma amizade marcante com uma colega do colégio. Não sabemos até que ponto terá ido essa amizade, sendo-nos apenas certo que nela se misturaram sentimentos de reacção ao autoritarismo familiar e de libertação espiritual. Os dogmas e tabus sexuais promovidos na infância começavam a desmoronar-se. Terminou o seu bacharelato com uma tese sobre Leibniz, à qual se seguiram os estudos de Filosofia na Sorbonne. A partir de então, a vida de Simone de Beauvoir é indissociável do percurso de Jean-Paul Sartre. A existência em comum estendia-se aos debates nos cafés parisienses, crescendo entre os dois uma relação cheia de peculiaridades: desde a renúncia ao casamento, por ser considerado um «aburguesamento limitativo», à proposta falhada de uma vida a trio, com uma aluna de nome Olga Kosakievicz. Deste episódio retirou Simone alguns argumentos para o seu romance de estreia, A Convidada, começado em 1938 e acabado em 1941. A sua publicação deu-se em 1943. Pelos entrementes da relação foi-se consolidando o objectivo de uma vida dedicada à literatura, mais do que à filosofia e à acção política (inicialmente motivo de enfado). O quotidiano era pautado pelo convívio boémio, leitura de policiais, filmes de cowboys, música jazz. A experiência da ocupação nazi fez implodir na consciência de Simone de Beauvoir um turbilhão de ideias e de sentimentos, organizados posteriormente num existencialismo empenhado politicamente e caracterizado pelo duelo constante entre um individualismo de tipo anarquista e o sentimento de culpa daí resultante. É desse magma que surde um dos seus romances mais eloquentes e marcantes: O Sangue dos Outros. Nele somos levados aos conflitos internos de personagens oprimidas pela ocupação e, de certa maneira, também pela necessidade de resistência à ocupação. Sentimento de culpa é a expressão chave deste romance memorável, onde a necessidade de mentir, de vingar, onde o ódio, a liberdade de cada um, se desenrolam sem remorsos, em cenário de guerra, no sentido de uma reconciliação do homem consigo próprio. Simone de Beauvoir morreu em Paris a 14 de Abril de 1986. Pela sua voz, chegaram-me pela primeira vez estas inquietações: «O meu mal-estar não se dissipava. Será que eu servia para alguma coisa? Para mim, não era essa a questão. Não podia talhar-me um destino justo num mundo injusto; desejava a justiça. Porque é que a queria? Pelos outros ou por mim? Disseste-me um dia com raiva: É sempre por si próprio que se luta. Eu lutava contra o remorso e a culpa, a culpa de existir, a minha culpa.» (in O Sangue dos Outros, tradução de Miguel Serras Pereira, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985)

OH, PAZ DO MEIO-DIA

em plena cidade, com os mais diversos
odores de comida na escada. As bicicletas
estão na entrada, fechadas, ao lado
do carro de bebé, não se ouve um som.

Os prospectos foram retirados das caixas
do correio e deitados fora. As caixas
estão vazias. Até a televisão foi desligada
pela família turca cuja janela da cozinha

dá para o saguão nas traseiras. Oiço
loiça, pratos e talheres, lá atrás
ficam os quintais, claros e frescos, numa luz
pálida de primavera. Por toda a parte as estranhas

histórias de uma vida normal sem
sobressaltos à quarta-feira, tal como hoje. O dia
existe, claro como chuva, sons trazidos pelo vento: oh, paz de
quarta-feira com cebolas sobre a mesa,

com tomates e alface.
Foram-se os planos e os vexames
e pensamos como é tranquila
a quarta-feira

Nuvens sobre o telhado, azuis, e
silêncio nos quartos, tranquilos e calmos e
tão abertos como alho francês, como verde é a salsa,
e como estão quentes as ervilhas.


Tradução de João Barrento.

Rolf Dieter Brinkmann

Rolf Dieter Brinkmann nasceu a 16 de Abril de 1940, em Vechta, na RFA. Começou a publicar poesia na década de 1960, tendo-se estreado com a colectânea Ihr nennt es Sprache (1962). Viveu de trabalhos vários e dedicou-se também à fotografia. Foi bolseiro em Roma e em Austin, tendo traduzido e organizado antologias de vários poetas norte-americanos. Além de poesia, publicou contos e o romance Keiner weiß mehr (1968). Faleceu em 1975, vítima de atropelamento, na cidade de Londres.

20.1.08

DIZEM QUE É AMIGO DO SEU AMIGO #2


Paulo Teixeira Pinto nasceu em Angola em 1960. Em 1983 concluiu Licenciatura em Direito, pela Universidade de Lisboa. Foi docente nas Faculdades de Letras e de Direito da Universidade de Lisboa e no Departamento de Direito da Universidade Livre. Entre 1991 e 1995 foi membro do XII Governo Constitucional, presidido pelo Prof. Doutor Aníbal Cavaco Silva, tendo desempenhado funções de Subsecretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros e de Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros. Em 1995 é admitido nos quadros do Banco Comercial Português, sendo o responsável pela Assessoria Jurídica do Centro Corporativo. Foi nomeado Director-Geral e Secretário da Sociedade Banco Comercial Português, chegando a Secretário - Geral da Fundação Millennium BCP em 2004. Entre 2005 e 2007 foi o Presidente do Conselho de Administração Executivo do Millennium BCP. Largou o cargo com uma indemnização de 10 milhões de euros e com o compromisso de receber até final de vida uma pensão anual equivalente a 500 mil euros (35 mil euros por mês, 14 meses por ano). Passou à situação de reforma em função de relatório de junta médica. Parabéns Portugal.

Labirinto #1

MJLF, s/ titulo, revista Big Ode #0, Outubro 2006

Maria João

16.1.08

NÃO ENGANA NINGUÉM

No dia 7.5.07 escrevi um post intitulado COMPARAÇÕES. Voltaria a escrevê-lo, alterando apenas um facto: continuo a fumar. Leio agora este post, de Francisco Curate, e mais me convenço do que afirmei anteriormente: quando leio alguns argumentos contra a chamada nova Lei do Tabaco, dá-me ganas de me transformar num fundamentalista antitabágico. Aliás, Miguel Sousa Tavares, que em tempos me iludiu pela lucidez das suas crónicas, deixou de me enganar desde um texto de triste memória onde se referia a Ana Drago. Cada vez mais me convenço que esta gente leu a mais o que pensa a menos. De original, as suas bocas só têm o hálito podre de uma cultura que, na prática, para nada serve, pois, em teoria, pode estar ao serviço de tudo.

O FIM DA VIOLÊNCIA

Dizia Kant que o paternalismo é o pior dos despotismos. Não tenho a certeza de que tenha sido Kant a afirmá-lo, nem que o tenha afirmado deste modo. Para o efeito, pouco importa. A frase é boa e ninguém me cobrará imposto pela incorrecção, caso exista. O paternalismo é, sem dúvida, o pior dos despotismos. Porque o paternalismo é traiçoeiro, leva-nos a crer na sua bondade, faz-nos sentir seguros e apoiados, para nos fragilizar quando for o momento de nos dar o golpe. E esse momento chegará, não tenham dúvidas. O momento de sermos golpeados chegará, mais tarde ou mais cedo, surpreendendo, então, os nossos votos de confiança, a nossa cumplicidade, a nossa entrega, a nossa fé, a crença de que por aquelas bandas o medo poderia viver descansado. Mas o medo nunca pode viver descansado. Os paternalistas sabem que o medo não pode viver descansado, pois ele é o garante da sobrevivência do paternalismo. Se não sentirmos medo, precisamos de um pai que nos apoie, que nos sustente, que nos abrigue, que nos proteja de quê e para quê? Podia pôr-me para aqui a dar exemplos. Exemplos, infelizmente, não me faltam. Mas chamo a vossa atenção para três fenómenos, de certa forma recentes, que podem servir de prova ao que pretendo afirmar: o aumento exponencial do recurso a sistemas de videovigilância, a famigerada Lei do Tabaco, as intervenções da ASAE - Autoridade de Segurança Alimentar e Económica. Todos estes fenómenos estão de algum modo relacionados com a atitude paternalista do Estado, uma atitude que se alimenta do medo como os vampiros se alimentam do sangue. Podemo-nos interrogar, e devemos, sobre as boas intenções do Estado quando se mostra tão preocupado com as nossas saúde e segurança. Por que razão, roubados que somos todos os dias, violentados na carteira que vamos senso todos os dias, temos nós que ser saudáveis e estar seguros? Para que o Estado, obviamente, também se sinta seguro na forma como nos rouba e invade. O Estado quer apenas continuar a ir-nos aos bolsos, mas sem sujar as mãos e com mais saúde. Já não se trata apenas de zelar pela segurança dos cidadãos, de actuar em nome do seu bem-estar. Trata-se de fazê-los acreditar, aos cidadãos, através da propagação do medo, do receio de ser censurado, vigiado, multado, apontado, trata-se de fazê-los acreditar, dizia eu, que o Estado está, de facto, a zelar por nós como um pai zela pelos seus filhos. O que o Estado nunca entenderá é que não é nosso pai, que pai temos só um e não é, certamente, o Estado. Freud, aplicado a este contexto, até tinha alguma razão. Antes que o estado nos foda a mãe, ou seja, a liberdade, o melhor será mesmo que matemos… o pai. Até lá, porque andamos muito ocupados a ganhar os tostões que o pai nos saqueará, deixo mais um poema de Gottfried Benn, a pensar em coisas tão óbvias que me parece escusado aprofundá-las:

RESTAURANTE

O sujeito lá do fundo pede mais uma cerveja,
para mim ainda bem, assim não preciso censurar-me
por também sorver uma nessa altura.
Pensa-se logo que se está contaminado,
eu li mesmo numa revista americana
que cada cigarro encurta a vida de trinta e seis minutos,
eu cá não acredito, possivelmente a indústria de coca-cola
ou uma fábrica de pastilha elástica estava por detrás do artigo.

Uma vida normal, uma morte normal
também não é nada. Também uma vida normal
leva a uma morte doente. Sobretudo a morte
não tem nada a ver com a saúde e a doença,
serve-se delas para os seus próprios fins.

O que é que você acha: a morte nada tem a ver com a doença?
Quero dizer: muitos adoecem sem morrer,
portanto aqui há qualquer coisa diferente,
um fragmento de dúvida,
um factor de incerteza,
a morte não está tão claramente delimitada,
também não tem foice,
observa, espreita do canto, refreia-se mesmo
e é musical numa outra melodia.
Gottfried Benn, 50 Poemas, versão de Vasco Graça Moura, Relógio D'Água, Janeiro de 1998.

Bloco de apontamentos #69


MJLF, Aparição, técnica mista s/papel, 42x21cm, 1997



Fim.

Maria João

15.1.08

DIZEM QUE É AMIGO DO SEU AMIGO

Começou num balcão na dependência da Caixa Geral de Depósitos (CGD) em Mogadouro. Filiou-se no PS após a Revolução dos Cravos. Com apenas 30 anos, já representava o PS na AR. Deixou para trás um curso de Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, acabando por licenciar-se em Relações Internacionais na variante de Cooperação na Universidade Independente (UnI) em 29 de Julho de 2005. Nos governos "rosa", foi secretário de Estado da Administração Interna (1995-97), secretário de Estado adjunto do ministro da Administração Interna (1997-99) e ministro adjunto do primeiro-ministro (1999-2000). Já em 2000, passou a ministro da Juventude e Desporto. Pediu a demissão após notícias sobre alegadas irregularidades cometidas pela Fundação para a Prevenção e Segurança, que fundara no ano anterior. Chega a administrador da CGD , tornando-se responsável pela gestão das participações financeiras desta instituição (entre as quais se destaca a posição de 9,7% no capital da EDP, de 4,7% na Portugal Telecom e de 2,6% no Banco Comercial Português). Foi hoje eleito vice-presidente do BCP. Parabéns Portugal.

Bloco de apontamentos #68


MJLF, Palavras de pedra, técnica mista s/papel, 42x21cm, 1997

A madrugada empedrou-me a língua, triste Leda emparedada, só paredes e queria mesmo era beber da tua água, UuuU, pouca-terra, pouca-terra, dava-ta a terra que não tens, pedra que o tempo na água desfaz em argila moldada – isto é só para os que são bons de língua – precipitada lá vai fluindo como a água que corre na água. Por fim o fogo funde a argila moldada, terra ao rubro e transforma-a em pedra outra vez.

Maria João

O QUE É GRAVE

Quando não se fala inglês,
ouvir falar de um bom romance policial inglês
que não foi traduzido para alemão.

Ver, quando faz calor, uma cerveja
que não se pode pagar.

Ter um novo pensamento
que não se pode embrulhar num verso de Hölderlin
como fazem os professores.

Em viagem, à noite, ouvir bater as ondas
e dizer para si que elas sempre o fazem.

Muito grave: ser convidado,
quando lá em casa há mais sossego,
o café é melhor
e não é preciso conversar.

O mais grave de tudo:
não morrer no Verão,
quando tudo é claro
e a terra é leve para a enxada.

Tradução de Vasco Graça Moura.

Gottfried Benn

Gottfried Benn nasceu a 2 de Maio de 1886, em Mansfeld, no Brandenburgo. Ensaísta, romancista e poeta, estudou teologia e formou-se em medicina. Começou a publicar em 1912, estreando-se com um pequeno volume de poemas intitulado Morgue und andere Gedichte. Serviu na Primeira Guerra Mundial, tendo sido um entusiasta do Nacional Socialismo. No entanto, rapidamente se desiludiu com os nazis. Viu as suas obras proibidas quer pelos nazis, quer, posteriormente, pelos aliados. Em 1951 ganhou o Prémio Georg Büchner. Faleceu em Berlim, a 7 de Julho de 1956.

14.1.08

PAISAGEM

Há coisa de seis anos tive a oportunidade de visitar, no Museu Serralves, uma exposição de João Vieira intitulada Corpos de Letras. João Vieira aparece geralmente apresentado como um pintor que cruza texto com imagem, experimentando o aspecto gráfico da escrita muito à maneira do que foi realizado por diversos poetas da chamada poesia experimental. Este eventual cruzamento de dois signos de natureza distinta pode também ser entendido de um modo simbiótico. Se assim for, deixará de haver um cruzamento entre escrita e imagem, já que ambos passam a constituir uma mesma realidade. É curioso que no domínio da escrita a dimensão imagética seja várias vezes negligenciada em lucro do sentido, o mesmo não sendo verificável, por exemplo, com a música. Os escritores trabalham demasiado a musicalidade dos seus textos e descuram o lado imagético da palavra, o qual gera relações de extrema dificuldade com o leitor – já que este, ao ler, procura sempre retirar um sentido, um significado, do que está a ler, não se preocupando de igual modo com esse significado quando escuta uma peça musical ou quando aprecia um quadro pendurado numa parede. Por diversas razões que não vale a pena aflorar, a escrita ainda se mantém refém do sentido. Outras formas de arte há muito mandaram o sentido às favas, instituindo na obra de arte um elevado grau de indefinibilidade. Nem sempre é assim, mas tende muito a que assim seja. Diz-se que pensamos por palavras, que o nosso pensamento se processa a partir de associações de palavras, que as próprias imagens que formamos no pensamento não são senão palavras despoletando, numa química provavelmente inexplicável, impressões figurativas. É muito mais simples dizer-se que o pensamento resulta de associações entre os vários dados dos sentidos, que algures no nosso cérebro a memória de um cheiro funde-se com um som, ambos com uma imagem, a sensação de uma textura e que, de toda essa interligação, surgem então as palavras. Mas e se os cheiros forem já palavras? Talvez a palavra seja uma região transfronteiriça, o lugar que nos faz sentir livres mesmo quando não estamos senão presos (desde logo, às próprias palavras). Sem dúvida que as palavras têm um poder imenso. É através delas que estabelecemos processos de comunicação, com todos os problemas que daí advêm; mas igualmente por ser por intermédio das palavras que nos localizamos no espaço e no tempo. Mais do que libertarem-nos, elas convencionam-nos. Jogar com elas é, pois claro, um jogo perigoso. As palavras são o que nos resta enquanto o silêncio não for solução, enquanto o corpo se mantiver activo e actuante, enquanto buscarmos no mundo o ruído irremissível do desejo. Torna-se fácil imaginar os nossos corpos como agregados de palavras articuladas num código desconhecido; ou como conjuntos de letras formando palavras novas, inventadas, desconhecidas, extravagantes, palavras em ruptura com toda e qualquer convenção organizadora do caos em que fomos concebidos e onde fomos lançados. Por isso mesmo, um texto espontâneo, automático, configura sempre o caos. Nós somos esse caos, o modo como lidamos com as palavras faz prova disso. Se o nosso corpo for uma palavra única, singular e irrepetível, uma palavra impronunciável, impartilhável, impraticável, então a morte é apenas uma borracha, é uma espécie de corrector ao serviço da natureza. Contudo, não será por nos apagarem da página que desapareceremos, já que as palavras perduram para lá do uso que lhes damos – mesmo quando não lhes damos grande uso. Debaixo do corrector, ficará a marca da nossa existência. Vincada na página, a marca da nossa existência será aquele relevo denunciando-nos sob camadas sucessivas de tinta. Nem simbiose, nem cruzamento. Paisagem, somente uma paisagem estática, silenciosa, irrelevante. O nosso destino ditado pelo esquecimento. E enquanto leitores uns dos outros, somos apenas a busca de um sentido para este perpétuo desalinho em que nos encontramos.

SILÊNCIO

Silêncio: que prazer seria
Consumi-lo, comê-lo como pão.
Nunca há bastante. Agora,
Quando estamos calados, metal
Ainda tine em tremente
Metal; porta que bate; uma criança
Chora; outras vidas nos cercam.

Mas recordai, não há
Silêncio dentro; o ventre
Suspira, ronca, e o que é
Esse bater, essa chamada?
Um tambor bate, um tambor.
Ouve a tua máquina ruidosa,
Que para o silêncio se dirige.

Tradução de Manuel de Seabra.

Edward Lucie-Smith

Edward Lucie-Smith nasceu em Kingston, na Jamaica, a 27 de Fevereiro de 1933. Mudou-se para Inglaterra em 1946, tendo estudado em Canterbury, Paris e Oxford. Poeta, fotógrafo, crítico de arte e curador, é autor de uma vasta bibliografia iniciada em 1961 com A Tropical Childhood and Other Poems.

13.1.08

SAGRADO CORAÇÃO

Damien Hirst


Mortos, todos mortos, nada mais que mortos, já mortos, mesmo falantes, caminhantes, gritantes, mortos, nem limbo nem purgatório nem inferno nem paraíso, apenas mortos. Sentimos o coração a bater, sentimos bater algo a que chamamos coração porque nos disseram para chamarmos coração ao órgão que palpita. Pode ser uma pedra, a lava rompendo a crosta da terra, pode ser qualquer coisa que nunca saberemos, que nunca decifraremos. O coração é uma cifra indecifrável. Está morto. Sentimo-lo a bater e, no entanto, está parado. O coração não respira.

Quando fumamos muito, quando bebemos muito, quando nos cansamos, ou quando corrermos desenfreadamente na direcção de um sonho, de uma meta inatingível, ou quando o coração parece dominado por uma vontade imparável de saltar para fora do peito... Somos a prisão de um coração, somos uma jaula, tudo o que encerramos dentro de nós é um animal impossibilitado de exercer o seu instinto da caça. Travamos o instinto da caça para não sermos caçados, receamos que as balas, a meio do caminho, se voltem contra nós. Por isso travamos o instinto da caça.

Vimos desse tempo em que os peregrinos caminhavam de lança na mão, apoiavam-se na terra com as pontas das lanças, bem afiadas, rasgando o ventre dos rastros, deixando para trás uma espécie de ferida que foi a marca da nossa passagem. Vimos desse tempo, caminhando incessantemente na direcção da morte. Pelo caminho: bebemos cerveja, fumámos cigarros, rimos, dançámos, fizemos a cama, engraxámos as botas, passámos a língua pela superfície de vários corpos. Pelo caminho: construímos casas, erguemos muros, edificámos lendas, arquitectámos segredos, promovemos a oração como um arcano fatal. Pelo caminho: fintámos a morte.

Mas fechados na jaula de um coração, impedindo o voo de um coração, somos pouco mais do que o aditamento da morte. Quem pode assegurar o rosto do suicídio? Quem pode garantir a explicação do desespero? Uma estrela enforcada é como um candeeiro aceso na sinuosidade dos negócios - pegam-lhe no corpo, atiram-na para debaixo da terra, para uma fogueira iconográfica, transformam-lhe a morte nas lanças com que abrimos as feridas da terra. Vampiros de dentes cariados, andemos desde sempre a alimentarmo-nos das dores uns dos outros. E mal dos que subsidiam a dor com um sorriso, com a busca prazenteira de um lugar para lá das ilhas onde caímos, a paz grotesca de quem se encontra, de quem investe nessa busca silenciosa de um silêncio agitado. Pois é sempre agitado o silêncio que se procura.

A gente pode erigir sonhos de uma vida pacífica, isolada, sem a oferta derreada dos nossos medos. A gente pode erigir as paredes desse sonho, entrar no sonho e nele instalar-se durante o percurso da vida. Uma casa perto do mar, isolada das garras agressivas e implacáveis da civilização. Para aí chegarmos é preciso soltarmos o coração, deixá-lo voar para lá do corpo, arrancar-lhe os espinhos como quem amanha um peixe. Para chegarmos a esse lugar é preciso, no mínimo, desaparafusar os ossos, o corpo, separar as águas do pântano para o qual nos atiraram logo à nascença.

Se estiver alguém a vigiar-nos, se formos vítimas das proibições obsessivas desses que não sabem viver sem dizerem aos outros como se vive, então desistamos de pagar o imposto da nossa incomensurável tristeza. Nunca foi preciso ser-se poeta para concluir que o mais importante é, antes de nos precavermos, atearmos o rastilho das bombas. O que virá depois da explosão já todos sabemos, mortos há muito que estamos.

12.1.08

CONTINUIDADE


Há em certas coisas antigas um vestígio
De nebulosa essência, além do peso e forma;
Um éter subtil, indefinido
Ligado às leis do tempo e do espaço.

Um débil, velado signo de sequências
Que os olhos de fora descobrir não conseguem;
Suas cerradas dimensões – onde os anos idos se acoitam
Só por secretas chaves se devassam.

Comovo-me quando os raios do sol ao entardecer
Alumiam as velhas casas da quinta frente ao monte
Colorindo de vida as formas que perduram
De séculos mais reais que este que conhecemos.

E nessa estranha luz sino que não estou longe
Dessa massa imutável em que as faces são as épocas


Tradução de Nicolau Saião.

Howard Phillips Lovecraft

H. P. Lovecraft nasceu em Providence, Rhode Island, a 20 de Agosto de 1890. É sobretudo conhecida a sua obra narrativa no domínio da ficção fantástica. No entanto, também cultivou o ensaio e a poesia. Perdeu o pai muito cedo, revelando-se uma criança prodigiosa. Recitava poesia aos dois anos, começou a ler aos três e, com seis anos, escreveu os primeiros textos. Com apenas dezasseis anos, começou a escrever uma coluna de astronomia no Providence Tribune. O seu primeiro trabalho publicado de forma profissional foi o conto Dagon, aparecido, em 1923, na revista Weird Tales. Os seus últimos anos foram de pobreza e várias enfermidades. Morreu no dia 15 de Março de 1937, vítima de cancro intestinal.

11.1.08

(Chuva)


A água dilui a consciência, gota a gota
encharca as imagens, agitam-se os seus reflexos,
tremem apenas um instante sobre a ferida. Nunca
acabará a chuva. Na memória chove,
volto a ver os charcos da infância, uma manta
encharcada sobre vagas cabeças, e um rosto
muito fugaz de mulher. Sempre esteve a chover,
os pássaros fugitivos procuravam aquecer-se
no nosso sangue. Aquela boca de tépida lua
emudecida e fria, sobre a erva húmida…
Onde leva a água essas sementes?, em que mar
desaguam?, em que mãe germinam?, acaso
a alma é terra e, logo, já madura, frutificam
sob o tremor da memória? Tocar o mundo
com as nossas mãos cegas, e logo, na recordação,
outro mundo renasce mais intenso. Aquela
mão pousada sobre o tempo, aquela fronte
com o seu gesto de argila, e este turvo afã
do homem em levantar a sua casa destruída
sob a tempestade, esta inquietação de abrir
nas ondas de todos os regatos a entranha
acesa do musgo. Sim, em que oceano,
em que leito se vertem as palavras?, que cais
abrigam os seus barcos? O céu é água parada,
e o pó, e os vestígios que espelham e abrasam
na sua luz a consciência. Todos náufragos sob
igual aguaceiro, peregrinos do sonho,
crescendo sob o peito do tempo, sustendo-nos
sobre a mão incerta de um deus que nos ignora.


Tradução de Amadeu Baptista.

Miguel Florián

Miguel Florián nasceu em Ocaña, Toledo, no ano de 1953. Licenciou-se em Filosofia Pura, dedicando-se, posteriormente, ao ensino. Crítico literário e poeta, colaborou em várias publicações colectivas. Traduziu diversos poetas franceses e portugueses. Começou a publicar em 1992, com o volume Los mares, las memorias. Desde então, vários prémios foram atribuídos a obras suas. O poema que aqui reproduzimos apareceu no n.º 9 dos Cadernos de Poesia Hífen.

10.1.08

CINCO POEMAS EUROPEUS #5

Nazaré (vila e praia)

Não a outra, mas essa: a que do Sítio nos aponta o ocidente
E depois outras rotas para todos os quadrantes:
a praia de dentro
o jardim de fora e do fundo da nossa pequena
silhueta
- morte que se negou.

A solidão da praia do Norte
o assombro da luz
que alimenta a penumbra
Tudo o que por alegria calamos num passo estugado e
um pouco temeroso
Não importa, dizias tu, além é o mundo e ouve-nos
- pequeno veraneante de roupas coloridas que a alguém entregou
sua voz seu segredo
seu nítido momento.

E agora
não a outra mas tu
a que não entra nessa história sagrada em que Ester
colocou seu cântaro perto do muro caiado
e que em Azarias achou seu derradeiro refrigério
A mão a asa perfeitamente modelada
e depois seu abalar para sempre, seu
trespassado e imperfeito corpo até à claridade
- bóias barcos refluir de vagas as máquinas
fotográficas ao ritmo do que de longe a serra da Pederneira
conserva e permite.

Não a outra mas tu
a que outrora vi entre céus e uma sombra fugaz
Meu íntimo refúgio igual a mil a cem a um apenas.
As flores os fogareiros para o trabalho do peixe a jorna entregue
a quem na memória retém surpresa e saudade

ou simplesmente no cimo da falésia avistou
horizontes ruas incólumes a escuridão das dunas.

Nicolau Saião
In Escrita e o seu contrário