30.12.06

Amadeo

Entrada

Ontem à noite fui à Gulbenkian, na companhia de alguns amigos, ver a retrospectiva de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918). Em 31 anos de vida, Amadeo de Souza-Cardoso deixou-nos uma obra, em quantidade e qualidade, que a maior parte de nós jamais conseguirá nem que vivamos todos 100 anos. Qualquer pessoa de bom senso sairá daqueles corredores reduzido à sua insignificância. Bastaram 31 anos ao pintor português para nos mostrar a dimensão da nossa insignificância. Pena que nem toda a gente perceba isso, preferindo continuar a passear-se pelos corredores do meio cultural, político, etc, dando-se a importância do bom senso que lhes falta.

29.12.06

Bom 2007

2007

28.12.06

Este país

Este país é uma merda, os políticos deste país não valem nada, este é o país da vigarice, os portugueses são da pior escumalha que há no mundo. Já me decidi, em 2007 vou viver para a Somália.

UM COMBOIO

Um muro e outro muro
só a palavra alada os ultrapassa
ave marinha que defronta o escuro
e deixa o dia onde passa

Mas onde achá-la em que praia
desvendar a certeza do seu corpo
onde encontrar quem saiba
das paisagens que há dentro do seu rosto

Se todos os silêncios são nocturnos
e a memória gelada que os procura
é um comboio de bruma
sitiada nos vóltios da ternura

Torquato da Luz

Torquato da Luz nasceu em Alcantarilha (Silves-Algarve), a 26 de Novembro de 1943. Fez o Curso de Ciências da Informação da Universidade Católica, foi jornalista do Diário de Lisboa e director do Jornal Novo, de A Tarde e do 2º Canal da RTP. Publicou vários livros de poesia e crónicas, tendo-se estreado em 1963 com Os Poemas da Verdade. Participou em diversas antologias, das quais se destacam Poesia 70 e Poesia 71, selecções, respectivamente, de Egito Gonçalves/Manuel Alberto Valente e Fiama Hasse Pais Brandão/Egito Gonçalves, e Caliban 3/4, edição e coordenação de J. P. Grabato Dias e Rui Knopfli. É autor do weblog Ofício Diário.

Introdução à história política portuguesa

- Olha filha, o pior português de sempre.
- Quem é, papá?
- É o Salazar, filha. A esse podes chamar todos os nomes que tu quiseres.
- Mas gaja não...

27.12.06

Assombrações

Consigo dividir os meus pouco mais do que 30 anos de vida em duas fases bem distintas: a fase em que os mortos me assombravam e a fase em que só os filhos me assombram.

Mofo

Tenho a casa cheia de mofo, mas regozijo-me por nela não haver fome. O mofo entope-nos o pulmão, dificulta-nos a respiração, ao mesmo tempo que nos reforça a resistência e nos obriga a ultrapassar todas as adversidades. A fome pesa-nos demasiado sobre os ombros, entorta-nos a coluna, atira-nos para dentro de um poço onde o mais certo será afogarmo-nos em ressentimentos, frustrações, desconfianças. Muitas das pessoas que não têm mofo em casa dão em paranóicos, ficam neuróticos, obsessivos, obcecados e cheios de fobias. Julgo mesmo que para essas pessoas devia ser vendido nas farmácias pacotinhos de mofo para inspirar pelo nariz.

Os exilados

Os exilados não falham alvos, pois não os têm. Para os exilados tudo é músculo e ironia, ou seja, tudo é um coração que bate até que o corpo diga: já chega.

Das pessoas sérias

Há pessoas que nos sorriem com olhos de dizer odeio-te. E há pessoas que nos olham com sorrisos de dizer amo-te. Também há as outras, as que nunca sorriem.

A sombra

Dentro do corpo descansam velhas memórias, experiências angustiantes, desapercebidas sensações. Viver é atribuir movimento a tudo o que descansa dentro do corpo. Morrer é levar para dentro de nada a sombra disso tudo.

Cinema: o balanço possível


Ontem, quando saí do Nimas, pus-me a pensar que não fui tantas vezes ao cinema este ano como em anos anteriores. Múltiplos factores terão condicionado essa realidade, podendo, no entanto, ser resumidos nesta triste constatação: uma carteira cada vez mais leve, uma vida cada vez mais pesada. Mas a verdade é que o ano cinematográfico, ao contrário do que vou lendo por aí, não me estimulou o suficiente para abrir os cordões à bolsa (não sei se estão a ver, mas viver na província quadruplica o preço de um bilhete de cinema: gasolina, portagens, estacionamentos…).

Vamos por trimestres. O primeiro foi invariavelmente marcado, quer queiramos quer não, pelos vencedores dos Óscares do ano precedente. A excepção foi «Nada a Esconder», thriller de Michael Haneke, que não me agradou tanto como outros filmes do mesmo autor. «Match Point», de Woody Allen, deixou-me um travo de mais do mesmo. Gostei de «Munique», de Steven Spielberg, talvez mais por ser fã do realizador de «Tubarão», confesso, do que propriamente pelo filme em si. Retenho do primeiro trimestre de 2006, no que a Óscares diz respeito, dois filmes que me pareceram muito bons: «O Segredo de Brokeback Mountain» - nomeado para melhor filme -, de Ang Lee, e «Syriana» - com prémio para o desempenho de George Clooney -, de Stephen Gaghan. Houve ainda um menos mau «Capote», que valeu o Óscar para melhor actor a Philip Seymour Hoffman. Seja como for, o grande filme do primeiro trimestre de 2006 foi, quanto a mim, «Uma História de Violência», de David Cronenberg. E nem sou especial admirador da cinematografia de Cronenberg.

Quanto ao segundo semestre, o destaque vai direitinho para um documentário de 2004, realizado por um brasileiro residente em Portugal. Refiro-me, como é óbvio, a «Lisboetas», de Sergio Trefaut. O grande blockbuster do ano - «O Código Da Vinci», de Ron Howard – também apareceu por esta altura, cumprindo os objectivos para que foi feito. Agradou-me «O Novo Mundo», de Terrence Malick, ainda que me tenha parecido algo distante da genialidade do anterior «A Barreira Invisível». Da cinematografia francesa, François Ozon brindou-nos com uma história comovente, mas algo óbvia, em «O Tempo que Resta». A grande surpresa, pelo menos para mim, foi «A Vida Secreta das Palavras», de Isabel Coixet – um filme de uma sobriedade espantosa, mas de nos deixar… sem palavras.

Passando ao terceiro trimestre, constato a hegemonia dos filmes relacionados com a guerra no Iraque ou com os atentados ao WTC. O ano tinha começado com «Máquina Zero», de Sam Mendes, demasiado colado a outros filmes do género, vindo a confirmar-se nos meses seguintes a inclinação para o filme de guerra ou a temática associada. Vejamos: «Voo 93», de Paul Greengrass; «A Caminho de Guantánamo», de Michael Winterbottom e Mat Whitecross; «World Trade Center», de Oliver Stone. Arriscaria afirmar, se não me levarem a mal, que de todos o melhor filme de guerra foi mesmo o documentário «Uma Verdade Inconveniente», de Davis Guggenheim, libelo ambientalista que dá voz às preocupações de Al Gore. A destoar desta tendência, salientaria «Voltar», de Pedro Almodóvar, um filme algo decepcionante tendo em conta outras obras do mesmo realizador. Não vi «A Senhora da Água».

E pronto, assim chegámos ao último trimestre de 2006. Direi apenas: «Juventude em Marcha», de Pedro Costa. Não digo mais nada, não me apetece dizer mais nada.

O LOBISOMEM

O amor é para mim um iroquês
De cor amarela e feroz catadura
Que vem sempre a galope, montado
Numa égua chamada Tristeza.
Ai, Tristeza tem cascos de ferro
E as esporas de estranho metal
Cor de vinho, de sangue e de morte,
Um metal parecido com ciúme.

(O iroquês sabe há muito o caminho e o lugar
Onde estou à mercê:
É uma estrada asfaltada, tão solitária quanto escura,
Passando por entre uns arvoredos colossais
Que abrem lá em cima suas enormes bocas de silêncio e solidão.)
Outro dia senti um ladrido
De concreto batendo nos cascos:
Era o meu Iroquês que chegava
No seu gesto de anti-Quixote.
Vinha grande, vestido de nada
Me empolgou corações e cabelos
Estreitou as artérias nas mãos
E arrancou minha pele sem sangue
E partiu encoberto com ela
Atirando-me os poros na cara.
E eu parti travestido de Dor,
Dor roubada da placa da rua
Ululando que o vento parasse
De açoitar minha pele de nervos.
Veio o frio com olhos de brasa
Jogou olhos em todo o meu corpo;
Encontrei uma moça na rua,
Implorei que me desse sua pele
E ela disse, chorando de mágoa,
Que era mãe, tinha seios repletos
E a filhinha não gosta de nervos;
Encontrei um mendigo na rua,
Moribundo de fome e de frio:
«Dá-me a pele, mendigo inocente,
Antes que Ela te venha buscar.»
Respondeu carregado por Ela:
«Me devolves no Juízo Final?»;
Encontrei um cachorro na rua:
«Ó cachorro, me cedes tua pele?»
E ele, ingénuo, deixando a cadela
Arrancou a epiderme com sangue
Toda quente de pêlos malhados
E se foi para os campos de lua
Desvestido da própria nudez
Implorando a epiderme da lua.
Fui então fantasiado a travésti
Arrojado na escala do mundo
E não houve lugar para mim.

Não sou cão, não sou gente – sou Eu.

Iroquês, Iroquês, que fizeste?

Décio Pignatari

Décio Pignatari nasceu em Jundiaí, São Paulo, no ano de 1927. Começou a publicar poemas na Revista Brasileira de Poesia, integrado no Clube de Poesia, de São Paulo, liderado por poetas críticos da Geração de 45. Em 1952 fundou o Grupo Noigandres, com Augusto de Campos e Haroldo de Campos, oferecendo um forte contribuo para a implementação da Poesia Concreta no Brasil. Tradutor de várias obras, foi um dos fundadores da revista Invenção. Colaborou em vários periódicos, foi professor de Semiótica, publicou ensaios e livros de poesia. Em 1977 reuniu a sua obra poética no volume Poesia Pois é Poesia.

26.12.06

Jaime diz:


A rola cantava assim: Hoje já há bidés que me fazem pensar.

25.12.06

FELICIDADE


Gallon Drunk

Quando penso na felicidade lembro-me de guitarras, corpos suados, musculaturas soltas, danças delirantes que mais parecem ataques epilépticos. Ninguém pode ser feliz se não lhe for dada a possibilidade de desenvolver o seu próprio léxico, muito para lá das gramáticas, dos prontuários e dos dicionários. É importante que desenvolvamos o nosso próprio léxico durante a vida, que aceitemos os gestos que encerramos dentro do corpo como se esses gestos fossem o ritmo da nossa melodia mais íntima. É bom que tussamos, que deitemos para fora tudo aquilo que o espaço público nos rejeita. Só quando o espaço público for um reencontro de intimidades, só quando os desejos embaterem uns contra os outros fundindo-se, aceitando-se, só quando a recusa for um eco distante poderemos ser felizes. Um concerto, por exemplo, funciona como um desses espaços públicos onde muitos e diversos imos se tocam simultaneamente. Não acredito em demónios senão naqueles que construímos para nós próprios, demónios a que damos o nome de frustrações, recalcamentos, etc. Todos eles têm origem na interrelação que mantemos com a sociedade, com os outros, com o mundo, na sensibilidade com que percepcionamos e absorvemos o que nos está distante. Exorcismos, catarses e expurgações são pois uma das dimensões mais terapêuticas da arte, se a entendermos também como uma forma de expressão da tal interioridade prisioneira dos grilhões da vergonha, da consciência, da norma, da regra, da lei, ainda que facilmente aceitemos a importância dessa lei na regulação dos gestos, dos movimentos, dos passos que vamos dando no espaço público. A arte pode ser uma forma de tornar pública a intimidade, ainda que esta apareça sempre cifrada pelos particularismos e pelas limitações de cada linguagem. Sempre achei que o que há de melhor numa performance de Glenn Gould é o som da sua respiração, valendo o mesmo para o suor de James Johnston escorrendo-lhe corpo abaixo enquanto cospe sobre microfone as palavras que lhe vêm das entranhas.

24.12.06

Prenda de Natal

Ofereço-te um burro a zurrar, um bando de ciganos numa carroça. Ofereço-te o apelo de um amolador de tesouras. Ofereço-te as minhas mãos, o desejo de me pôr contigo a caminho, pelo frio adentro, como se fossemos a frase de um realejo na boca do amolador. Como se fossemos ciganos.

DUAS PASTORAIS PARA SAMUEL PALMER

«Se a Noite Pudesse Levantar-se & Andar»

Não posso pôr a mão numa
couve para acender
a luz, mas
a lua move-se sobre
o campo de couve escura e uma
troca enche
todas as veias.

A couve é também um globo
de luz, os dois globos

agora dois olhos na
minha saturada

cabeça.


«Devemos Tentar Por Detrás Das Colinas»

Oito Grandes Dálias estavam
além das Montanhas

lançaram fogo ao Sol
numa floresta negra
além das Montanhas,

no Vale da Visão

a Fissão de
Flores
entrega todo o Poder
no Vale da Visão

oito sóis,
em oito caules,

em chamas


Tradução de Manuel de Seabra.

Jonathan Williams

Jonathan Williams nasceu em 1929, em Ashville. Estudou na Universidade de Priceton e no Black Mountain College. Fundador da The Jargon Society, publicou inúmeros poetas, fotógrafos, ficcionistas, nomeadamente os associados ao Black Mountain College (Charles Olson, Kenneth Patchen, Denise Levertov, Paul Metcalf, etc). Autor de ensaios e de poesia, estreou-se em 1952 com Red/Gray. Possui mais de 50 livros publicados, muitos deles ilustrados com fotografias e desenhos da sua autoria. »

22.12.06

CAVALEIRO DO CAVALO DE PAU

Vai a galope o cavaleiro e sem cessar
Galopando no ar sem mudar de lugar.

E galopa e galopa e galopa, parado,
E galopa sem fim nas tábuas do sobrado.

Oh! que bravo corcel, que doidas galopadas,
- Crinas de estopa ao vento, e as narinas pintadas!

Em curvas pelo ar, em velozes carreiras,
O cavalo de pau é o terror das cadeiras!

E o cavaleiro nunca muda de lugar,
A galopar a galopar a galopar!

Afonso Lopes Vieira

Afonso Lopes Vieira nasceu em Leiria em 1878. Ainda muito novo redigiu alguns jornais manuscritos, tais como A Vespa e O Estudante. Concluiu o Curso de Direito em Coimbra, deslocando-se posteriormente para Lisboa. Em 1897 estreou-se com o livro de poemas intitulado Para Quê?, culminando a sua actividade poética, em 1941, com Onde a Terra Se acaba e o Mar Começa. Viajou por Espanha, França, Itália, Bélgica, norte de África e Brasil. Esteve ligado à Renascença Portuguesa, ao movimento saudosista, sendo um dos principais representantes do denominado neogarrettismo. Converteu para português várias obras clássicas, tendo sido pioneiro da fotografia e do cinema. Escreveu muita literatura para crianças, colaborou na revista A Águia e foi redactor e fundador da revista Lusitânia.

21.12.06

Fragmento #43 – Paredes de tempo

Sonho com a casa dos meus avós em Évora, mas não reconheço de imediato o espaço, vejo apenas que no sótão existe uma viga-mestre que está a ceder, se ela cair terão de fechar a rua lá fora e os estragos serão irreparáveis. Na casa estão alojados os meus irmãos e alguns amigos: percorro o corredor dos quartos ocupados rumo à biblioteca e desço as escadas, que me levam ao hall de entrada para a sala de estar, junto ao corredor da despensa. Está escuro e quando entro, dirijo-me para a mesa ao centro e levo um enorme estalo na boca. Sei que sempre fui desbocada, mas nem tanto e recordo que passei por aquele quarto que me provoca tanto medo e que não consigo lá entrar quando estou acordada. Depois relato a um dos meus irmãos que levei um estalo de alguém no escuro, um estalo na boca, mas não vi ninguém. O meu irmão diz-me que já viu luzes roxas naquela casa, luzes que se passeiam no escuro, eu respondo que não quero ali fantasmas e acordo a gritar: vão-se embora daqui todos, eu não tenho medo, fora daqui.
Depois, telefono ao meu irmão e relato-lhe o sonho, digo-lhe que deve ter sido da febre desta noite, pois estou com gripe. Ele diz-me logo: curioso, luzes roxas que se passeiam por lá? Este Natal vamos os dois descer essas escadas para ver se levas um estalo na boca quando chegares lá a baixo. Não te preocupes, eu vou contigo. Conto-lhe também que tenho uma prenda especial para lhe oferecer, ele responde que não é preciso, basta um beijinho. Pregunto ainda se há lenha na casa, ele diz que sim, que está na cave e tenho de fazer lume quando lá chegar.

Maria João

20.12.06

Intro

Entra de mansinho, poeta. Sim, poeta, pois se aqui estás só poeta podes ser. Quem mais a ler poesia?

DOMINGO

a Carlos Parreira

A distância entre mim e o que me circunda,
sempre a repercutir-se nos meus gestos,
aflige-me e dói-me.

Olho para aquela rua vagamente,
olho em volta de mim neste café longínquo,
e todas as coisas não significam coisa alguma
e toda a gente tem escrita no rosto
quanta traição da vida!

Ah, que não consigo ser fraterno e integrar-me
e ser despreocupado e ignorante
do meu, do nosso drama…

Bem quisera esquecer-me e enlear-me
nas coisas fúteis, ingenuamente vis,
que alimentam o destino desta gente.
Mas olho para mim e sinto-me diferente,
amachucado pela lucidez duma intuição
que todas as tentativas para imiscuir-me
não conseguem mais do que exacerbar.

Consola-me a certeza de que tudo isto é fictício,
e não me custa a renúncia, em troca deste contemplar
calado, discreto mas tumultuoso…

Lá fora há agitação e há bulício.
Paira sobre as coisas a inutilidade,
o frágil, o efémero…

(Chego às vezes a pensar que tudo não seja mais que representação.)

Cansado do espectáculo,
abandono esta mesa de café
e vou passear ilusões impossíveis,
até que a noite venha e eu recolha
à solidão do meu quarto
- mãos vazias e coração intranquilo.


Luís Amaro

Luís Amaro nasceu em Aljustrel no ano de 1923. Começou a escrever aos 12 anos em pequenos jornais alentejanos, mas cedo se radicou em Lisboa. Passou pela Portugália Editora e ajudou a fundar a revista Árvore – com António Luís Moita, António Ramos Rosa, Egito Gonçalves, José Terra e Raúl de Carvalho. Em 1949 publicou o seu único livro de poesia, intitulado Dádiva. Colaborou com publicações como a Távola Redonda e a Seara Nova, tendo ingressado, em 1970, na Fundação Calouste Gulbenkian onde viria a trabalhar na revista Colóquio-Letras. Em 1975 reuniu a sua obra poética no volume Diário Íntimo (Dádiva e Outros Poemas), recentemente reeditado pela &etc. »

IVG #21

"Abortar como opção quando já bate um coração?" Vê-se por aí em enormes outdoors esta frase que remete subliminarmente para o arcaísmo judaico-cristão da mulher pecadora e leviana. Sendo que a dita frase surge em forma de pergunta, induz portanto respostas. E a minha resposta é a seguinte: sim, abortar como opção quando já bate um coração de mulher, de mulher responsável que enfrenta condições de vida adversas, nos planos afectivo, económico ou social, que a conduzem a essa opção, nos prazos impostos pelos conhecidos limites biológicos. Para que o seu coração de mulher continue a bater e a sua vida não se transforme num drama. Para continuar a ser mulher responsável.
#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10 / #11 / #12 / #13 / #14 / #15 / #16 / #17 / #18 / #19 / #20

19.12.06

O ARGUMENTO DA “AUTORIDADE”

É uma medida antropológica da sanidade de
uma sociedade/pessoa. Alguns confundem-na com
imunidade. São os que têm uma nostalgia dos tempos
em que a senhora dava tabefes para educar a
criadagem. São criados também, incapazes de
negar o sorriso dengoso a quem lhes destina
os vis resquícios da mordomia.
São normalmente frouxos, porque tudo neles
funciona por adequação a um modelo.
Um dia darão bons conselhos porque nunca
na vida foram capazes de praticar maus exemplos.
Imaginam-se de pergaminhos loiros na face quase
imberbe e escrevem laudas como quem pede licença.
Sonham com uma morte galada e um anjinho virá,
de setinha mansa a doirar-lhes o cu.

Rui Costa

Fragmento de uma canção perdida

***
Estou sem tempo para pensar os sonhos barrocos de quem passa, estou sem tempo para a vastidão das forjas capitalistas, tenho o sangue indesejado dos justiceiros, só penso no longe, no longe, no longe do longe, aqui tão perto: a paciência do burguês comovido com o tom das unhas da senhora que faz embrulhos, o susto das crianças perdidas entre as prateleiras do supermercado, o bailio dos números. Se fosse impossível, tornaria possível este sonho: garimpar a minha solidão no vazio de um salão de festas, o salão federativo, associativo, cooperativo, dos malandros que passam entre as mil maneiras de uma vinha crescer e dar vinho.

Sem ironia

Não me digam nada, deixem-me em paz. Já sei
que hei-de morrer. Já aprendi a suportar a dor
diante da beleza intocável. Não me consolam
as palavras, prefiro que não dêem por mim.
Digo-o sem ironia, detesto dramatizar.
Nada tem muita importância. Tudo acaba, até,
por ter um certo encanto. Sorrio por dentro, todo
o meu corpo é um sorriso quando a melancolia
se instala no meu espírito ao fim da tarde.

João Camilo
João Camilo nasceu a 5 de Junho de 1943 em Salgueiro do Campo. Licenciou-se em Filologia Românica no ano de 1968. Foi leitor em Oslo, em Rennes e em Aix-en Provence, tendo-se doutorado em França com uma tese sobre Carlos Oliveira. É professor catedrático de Literatura Portuguesa e Brasileira na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara, e director do Center for Portuguese Studies, assim como responsável pelas suas publicações desde 1989. Poeta, ficcionista, ensaísta, estreou-se em 1975 com a narrativa Retrato Breve de J.B.. O seu primeiro livro de poesia, Os Filmes Coloridos, foi publicado em 1978. Recentemente editou, com a chancela da OVNI, a colectânea O Som Atinge o Cimo das Montanhas. É autor dos weblogs Blue Everest e nada.niente.

18.12.06

Esclarecimentos

Sobre a polémica aqui em curso, vejo-me obrigado, na qualidade de autor do Insónia, a prestar alguns esclarecimentos:

1- Conheci o Rui Costa pessoalmente, já depois de o ter convidado a colaborar com o Insónia. Antes disso, o Rui tinha entrado em contacto comigo através de um weblog que tive antes do Insónia: o Universos Desfeitos. Não conheço a Inês Lourenço pessoalmente, mas há algum tempo que trocamos e-mails. A Inês entrou em contacto comigo depois de ter lido o post que escrevi sobre um dos seus livros: «Logros Consentidos».

2- Tenho de ambos boa impressão, não me obrigando isso a estar sempre de acordo com o que escrevam ou façam. Já estive em desacordo com o Rui aqui no Insónia, o que, de resto, até foi elogiado pela Inês, no seu Vida Involuntária. Admiro a obra da Inês Lourenço, o seu esforço e a sua dedicação às coisas da poesia. Admiro a atitude do Rui Costa, o seu espírito livre e, como é óbvio, muitas das coisas que escreve. Orgulho-me, por exemplo, de ter sido dos primeiros a divulgar alguns dos seus poemas publicados em «A Nuvem Prateada das Pessoas Graves».

3- É bom que os leitores do Insónia saibam que nada aqui se publica sem que antes passe pelo “crivo do meu bom senso” (as aspas são só para salientar a ironia da expressão). Os colaboradores não possuem palavra passe, fazem-me chegar o seu material ou por correio electrónico ou mesmo, como muitas vezes sucede no caso da Maria João, por correio postal. Sendo assim, também eu me sinto responsável pela publicação do post que motivou a reacção da Inês Lourenço.

4- Como oportunamente expliquei à Inês Lourenço, a minha opinião sobre este assunto é simples: não considero o texto do Rui insultuoso, nem mesmo indelicado, e isso, para mim, é o mais importante. Trata-se de uma provocação que me parece pertinente, com razão de ser e que em nada fere, assim penso, a dignidade da obra visada. Não é assunto que me fascine, nem é a primeira vez que textos de badana vêm à liça neste weblog, mas não discordo do Rui quando põe em causa a pertinência de certos dados pessoais, no caso familiares, em sínteses biográficas de índole curricular. O porquê de o ter feito agora tendo por alvo uma obra específica é lá com ele.

5- Não posso, no entanto, deixar de relevar a atitude da Inês. Ao contrário do que seria de esperar, dada a importanticidade a que o meio literário português nos habituou, a Inês não fez orelhas moucas da provocação, não fingiu que não viu, manifestou a sua indignação sem pruridos nem snobismos bacocos. Alguns dirão que o melhor seria ignorar e ficar calada, até porque só tomou conhecimento do post dias depois de ele ter sido publicado. Outros, como eu, julgarão que ter reagido como reagiu é sinal de uma espontaneidade e de uma imprecaução que só abona em favor dos poetas. De gente precavida, certinha e snobe estou mais que farto. Curioso que, quando publicado, o post do Rui tenha merecido um único comentário (do Filipe Guerra). A reacção da Inês já vai em mais de 20. Se isto não diz qualquer coisa do país em que vivemos, então o que diz?

ÁRVORE DE NATAL

E se na rua um contrabaixo passasse por si e lhe oferecesse um ramo flores? E se as flores, num repente improvável, se metamorfoseassem em serpentes dançando ao ritmo das pessoas que passam na rua? E se a rua se estendesse sob as pessoas que passam como um rio se estende sobre a terra que fica? Pouco importa que o espectáculo ainda dure, temos tempo, não temos tempo, temos espera. Só nos falta a dança. Imaginem um pai a atravessar ruas atoladas de gente agarrada às montras das lojas, centros comerciais a rebentarem pelas costuras, braços pintados de nódoas negras, pulmões em estado de latência, mãos carregadas de desespero, sacos de presentes, pernas trémulas, suor, tremores, o chegar a casa para um banho de imersão e um livro de poesia à lareira, o desistir do banho e do livro para abrir resmas de envelopes com contas por pagar. Atirem-se as contas à fogueira, à fogueira com as contas por pagar, à fogueira com os prospectos, à fogueira com as plásticas árvores de Natal fabricadas na China, à fogueira com a neve artificial, a publicidade, os enfeites, as cantigas delicodoces, o menino Jesus nas palhas deitado, as palhas deitadas no menino Jesus, à fogueira com o Natal dos Hospitais e o Natal das Prisões, à fogueira com a prisão natalícia deste espectáculo repugnante. Estou sem tempo para pensar os sonhos barrocos de quem passa, estou sem tempo para a vastidão das forjas capitalistas, tenho o sangue indesejado dos justiceiros, só penso no longe, no longe, no longe do longe, aqui tão perto: a paciência do burguês comovido com o tom das unhas da senhora que faz embrulhos, o susto das crianças perdidas entre as prateleiras do supermercado, o bailio dos números. Se fosse impossível, tornaria possível este sonho: garimpar a minha solidão no vazio de um salão de festas, o salão federativo, associativo, cooperativo, dos malandros que passam entre as mil maneiras de uma vinha crescer e dar vinho. Não. Troque-se a vinha por um eucaliptal, há lá árvore mais rentável!

ARS LONGA

Le blanc souci de notre toile
Mallarmé

Cuidadosamente como um homem atando tomateiros,
querendo ser arranjadas, as palavras,
são toda a nossa preocupação, como esse talentoso
pequeno fumador sabia,

o que é dito é melhor do que dito se a
página for atacada com força.
Seixos num riacho, os círculos
que causam não têm importância,

a memória desses círculos, porém,
ah, a lembrança deles da próxima vez
que atirarmos seixos, há uma
comparação silenciosa, discutem na água

como contra a água no cérebro, o
riacho da agitação de ontem. Gravados
finamente, nem lamentam nem choram, as
palavras, não são nem a experiência

nem a sua expressão; uma barreira de celofane,
para te enredar ternamente, ou ferozmente,
uma aqui! uma ali! uma está em dois
ou três lugares ao…! ou é

ontem, que é isto, um poema?
um grupo de palavras, um monstro da
tarde, baixa a cabeça poderosamente, está em
plena posse da terra e do mar,

enche a nossa vela, enche a nossa vela
enche a nossa vela, enche
a nossa vela, enche a nossa
vela, enche a nossa vela.

Tradução de Manuel de Seabra.

Gilbert Sorrentino

Gilbert Sorrentino nasceu em Brooklyn em 1929. Romancista, contista, poeta, crítico literário e editor, fundou a revista literária Neon. A sua primeira colectânea de poemas, The Darkness Surrounds Us, apareceu em 1960. Escreveu mais de trinta livros e recebeu vários prémios. Faleceu no dia 18 de Maio de 2006.

17.12.06

A badana de um livro (ParteII)

Por só agora ter tomado conhecimento de um post aqui publicado em 29 de Novembro por Rui Costa, a autora referida no post, Inês Lourenço, do blogue Vida Involuntária, pede-nos que publiquemos o seguinte comentário:

Sr. Rui,
É pena a sua profícua actividade literária desaguar em poemas a badanas. Ou melhor, a duas linhas de uma badana, apresentada por um editor jovem (Quasi, 2000) que deve ter entendido que num livro com poemas de 20 anos compilando vários livros publicados, se justificava uma nota bio-bibliográfica mais completa e pormenorizada.
É pena o sr. ser só frequentador de badanas. E de uma badana de há seis anos. (Informa-se que a autora já tem posteriores livros publicados, onde outras foram as opções "badanais" dos editores)
Porque se fosse menos frequentador de badanas e mais de miolos, verificaria que a autora, além dos filhos, a quem dedica um dos livros, incluído na brochura, também fala de gatos, cães, casas, camas amaridadas ou desmaridadas, viagens e seres microcéfalos e banais.
Para que fique um pouco mais actualizado, devo dizer-lhe que essa moda estruturalista de descarnar os textos das biografias de quem os produz, já era. E que vários autores actuais, apõem filhos, gatos e cães nas suas bio-bibliografias. Ex: Ana Luísa Amaral ou Pedro Paixão.
Além de que esse machismo arcaico de achar que parir e educar gente ética e esteticamente, não faz parte da biografia, só se for para a galáxia "alegres" e "alegras". Que mesmo esses já querem a fecundação medicamente assistida...
Olhe, dedique-se a coisas mais proveitosas do que frases recortadas de "badanices", chalaceadas à má-fé.
Convença-se que há muitos telhados de vidro e atalhos esconsos, que outros, com mais ética do que você, não vêm satirizar.
E, adivinhou!: Os filhos da Inês, já têm, nas suas áreas, publicações com badana...
Olhe, só lhe resta reclamar com o seu ADN.

16.12.06

[SEM TÍTULO]

o poema é um fin
o poeta é um his

poe
pessoa
mallarmeios

e aqui
o meu
dactilospondeu:

entre o
fictor
e o
histrio

eu

Haroldo de Campos

Haroldo de Campos nasceu em São Paulo, Brasil, a19 de Agosto de 1929. Ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, no final da década de 1940, lançando o seu primeiro livro em 1949, O Auto do Possesso, quando ao lado de Décio Pignatari participava do Clube de Poesia. Em 1952, Décio, Haroldo e seu irmão Augusto de Campos rompem com o Clube, por divergirem quanto ao conservadorismo predominante entre os poetas, conhecidos como Geração de 45. Fundam, então, o grupo Noigandres, passando a publicar poemas na revista do grupo com o mesmo título. Nos anos seguintes defendeu as teses que levariam os três a inaugurar em 1956 o movimento concretista, ao qual se manteve fiel até o ano de 1963. Doutorou-se pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, dirigiu a colecção Signos da Editora Perspectiva, publicou numerosos ensaios de teoria literária. Faleceu em São Paulo, a 16 de Agosto de 2003. »

Cuba aqui tão perto

Para o Nandinho.
O déspota

- A morte do Zé Eduardo será a libertação do povo angolano.

15.12.06

A PROSTITUTA DA RUA DA GLÓRIA

Tanges a noite sem saber que a noite
é uma cítara com cordas de ferro
onde os insectos ferem as asas.
O teu canto arranha o azul da chama
e a cidade desperta para a dança:
um labirinto de minotauros
sorvendo o odor do primeiro tango –
um ténue resquício de feno escondido na nuca.

Ainda ontem foi lua cheia no teu ventre.
Sobrou um aquário onde os cegos vêm depenicar
a caspa dos pombos.
Hoje não saias, deixa-te ficar.

Pelos corredores as fêmeas largam o pó
das florestas quentes –
ténues resquícios de feno escondidos na nuca.

Hoje não saias, deixa-te ficar.
Deixa dormir o teu sexo cansado de morrer.

Catarina Nunes de Almeida

Catarina Nunes de Almeida nasceu em Lisboa em 1982. Em 2005 concluiu o curso de Língua e Cultura Portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Em Março de 2006 recebeu o Prémio Internacional de Poesia Castello di Duino, em Trieste, Itália. Publicou Prefloração, nas Quasi Edições, livro com o qual venceu a segunda edição do Prémio Daniel Faria, em 2006.

14.12.06

A puta e o putanheiro: contributo para uma estese sinonímica sobre sujeitas e sujeitos sem predicados

Ferreira Fernandes
Sob cúpida influência de pensadores generalistas, vejo-me obrigado a acusar a ausência de cientismo e a pobreza antropolátrica de algumas considerações vindas a lume sobre o livro que ora gera ondas instáveis, mas demoradas, de espiritualismo operatório. O maximalismo patenteado na orientação rectilínea condenatória do putedo, remete para planos fracassados a ontologia dialéctica e anti-positivista das acusações proferidas por Carolina Salgado, frustrando, em certos casos, felizmente isolados, o maneio da verdade. Ferreira Fernandes, por exemplo, iconoclasta diversificado, remete-nos para uma exigência intrínseca de qualquer autodidacta da autenticidade: ficar calado. Os lindos olhos apaixonados de Pinto da Costa, assim o lemos na periódica Sábado, deverão ser a única pressão disciplinadora do escol pensante no que ao caso do momento respeita. Nunca o bom senso nem o bom gosto foram tão polarizados como leit motiv mitificador de uma verdade cindível ao único facto que importa, para já, relevar: o estatuto de puta, para alguns sujeita sem predicados, da arrependida. Força-se, então, essa perspectiva identificativa, suspendendo, num traçado conceptual, a instrumentalização ideológica da obra em causa. O que aqui temos é uma metafísica da humildade, mui lusitana na sua matriz liofilizada, que assenta na problemática palpável da filha-da-putice nacional. Ao mesmo tempo que se postula uma referenciação de puta à acusadora, estreita-se a audácia monadológica de quem ouse, por via de um empirismo puro, chamar a atenção para a índole de putanheiro do acusado. Como refere Karl-Otto Apel em Estudos de Moral Moderna: «os homens foram treinados no ethos vivido de uma boa pólis». Cabe-nos, não obstante, interrogar as premissas ressumantes dessa mesma pólis, sob pena de nos ficarmos por uma parca predicação dos sintagmas que dividem a verbalização retórica do escol pensante agora ocupado em indultar quem relega nas putas a sanhuda incumbência de representar junto do povo as cores da causa. Alguém ainda se lembra do célebre caso Orelhas? Vivemos, está de ver, num império noosférico onde cabe a cada ser o tentame de uma normativa fonomorfossintáctica. Concluirei afirmando que, embora acríbico, o pábulo do povo é o prazo de um debate e só quem já foi às putas deveria estar autorizado a lhes chamar «sujeitas sem predicados». Reservando-me à aridez que apenas por acaso permite percepcionar num velho baboso um coração alígero, pergunto-me: já terá Ferreira Fernandes alguma vez ido às putas?

Adenda: um post do Luís e outro do Lutz.

Minha querida sanduíche

Pena não ter uma máquina fotográfica à mão, mas juro que vi, no Modelo aqui de Caldas, o Todos os Dias, de Jorge Reis-Sá, entre o Diário de uma Stripper, de Leonor Sousa, e o Eu, Carolina, de Carolina Slagado. Também havia por lá uma série de versões do Kama Sutra - para homens, para mulheres, para gays (não encontrei para virgens nem para padres, mas fica a sugestão) -, de uma tal Alicia Gallotti. Todos da Dom Quixote.

#18 – os criados

felizes os convidados para a ceia do senhor
bendita sois vós entre aquelas que morreram
bendito é o fruto – a árvore – e o espinho
bendito o vinho que derramei por vós – vosso ventre
e a janela por onde a tua sagrada alma partiu
felizesosconvidadosparaaceiadosenhor –
minha carne rasgada – verdes veias inchadas nos olhos /
eis o pequeno cálice de seiva – bebe-a
eis a semente e o sangue da vida eterna – meu corpo rasgado por
vós:
pequenas sereias – pimenta – sal – jasmim
convidados felizes os que podem cear com o
senhor foram tantas as almas que subiram a partir desta
cama perdoa-lhes mãe eles não te conhecem e
les pensam que morreste na terra santa e que subiste aos céus
eles
os felizes convidados
eles
que nunca provaram a tua saliva nem a seiva do cálice
?não há cálice pois não mãe
só vento e almas subindo a partir desta cama de pérolas vãs
e espuma
senhor prova os meus pés
senhor saboreia os meus pés
senhor
verdes veias inchadas nos olhos eis-me-pequeno-cálice-de-seiva
perdoa-lhes mãe do mundo eles não conhecem a tua saliva

Frederico Mira George

Frederico Mira George nasceu em Lisboa em 1962 (?). Fotógrafo e designer, artista plástico e escritor, tem trabalho disperso por vários órgãos de comunicação social. Em 1995 integrou o projecto do PiM-Teatro e a sua direcção artística, assumindo a direcção plástica e gráfica da companhia. De poesia, conhecem-se-lhe os livros Caixa Negra, Amores Perfeitos, 2005, e Quarenta Romances de Cavalaria e outros Poemas, Dom Quixote, 2006.

O INDECISO

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O homem entrou numa loja de antiguidades. Gostou tanto do que viu que não conseguia decidir o que levar. Passou tanto tempo nisto que foi posto à venda.

Rui Costa

13.12.06

IVG #20

Cerca de 350 mil portuguesas já terão feito um aborto
Alexandra Campos , (PÚBLICO)

Os resultados do estudo da APF indicam que cerca de 350 mil mulheres em idade fértil já terão abortado em Portugal, onde o retrato do aborto clandestino mudou. O estudo já está a desencadear polémica entre as associações partidárias do "não" na despenalização do aborto. É o primeiro estudo de base científica que tenta traçar uma fotografia do fénomeno do aborto clandestino em Portugal. E permite perceber, sem margem para dúvidas, a dimensão do problema. Entre 346 e 363 mil mulheres em idade fértil já terão interrompido voluntariamente a gravidez e, só no ano passado, o número de abortos oscilou entre os 17.260 e os 18 mil, a crer nos resultados do trabalho promovido pela Associação Portuguesa para o Planeamento da Família (APF), que defende a despenalização da interrupção voluntária de gravidez (IVG). Das duas mil mulheres inquiridas, 14,5 por cento admitiram já ter feito um aborto em algum momento da sua vida. Quando se restringe a pergunta ao universo daquelas que já engravidaram, porém, a percentagem das que afirmam ter interrompido a gravidez sobe para 20 por cento, ou seja, uma em cada cinco mulheres que engravidou em algum momento da sua vida fez um aborto. Mais de metade são mulheres até aos 24 anos, apesar de a percentagem na faixa etária entre os 25 e os 34 anos ter um peso significativo (35,6 por cento). Mas os dados deste inquérito encomendado pela APF a uma empresa de estudos de mercado (a Consulmark) - e que hoje vão ser apresentados na Maternidade Alfredo da Costa (MAC), em Lisboa - permitem ir bem para além da crueza dos números. A "fotografia" que daqui resulta põe em causa tanto a "perspectiva neo-realista", daqueles que advogam que este fenómeno afecta sobretudo "as pobrezinhas e jovenzinhas", como a posição dos que defendem que este problema "não existe", conclui Duarte Vilar, director executivo da APF, sublinhando que "a amostra é representativa para o todo nacional". Os dados permitem perceber que "o perfil do aborto está a mudar" e que "hoje o circuito clandestino é mais seguro", acrescenta Maria José Alves, também da APF e obstetra da MAC. Para Constantino Sakellerides, da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) e ex-director-geral da Saúde (que defende igualmente a despenalização do aborto), este trabalho é "muito interessante" não só porque permite concluir que a IVG "tem um peso importante na nossa sociedade", mas também porque torna evidente que as mulheres não tomam a decisão de abortar "com ligeireza" - a maior parte diz que a decisão foi "difícil" ou dificílima". Os factores que determinam a interrupção da gravidez resultam de "um conjunto de circunstâncias que dificilmente são controladas" pelas mulheres, nota ainda. Perto de um quinto das mulheres que abortaram vivem sozinhas, não têm vida sexual estabilizada e isso é um factor-chave neste processo, sublinha, acrescentando que em cerca de 17 por cento dos casos a decisão é tomada por rejeição da gravidez por parte do companheiro ou por pressões familiares. As razões invocadas são "sérias, não são caprichos", sintetiza. Uma boa notícia é a de que a maior parte das mulheres inquiridas diz ter interrompido a gravidez apenas uma vez e quase dois terços afirmam tê-lo feito até às dez semanas de gestação. Isto significa que as mulheres "não têm a propensão para usar o aborto como método contraceptivo", resume Maria José Alves. "O primeiro aborto é quase sempre o último", corrobora Sakellerides. E não há diferenças substanciais quando se olha para os níveis de instrução. Na opinião do ex-director-geral da Saúde, isso permite concluir que as circunstâncias que levam as mulheres a abortar atingem todos os níveis educacionais e, portanto, todos os estratos económicos. Sakellarides destaca ainda o facto de 20 por cento admitir ter tido complicações após o aborto, o que é muito. Apesar de o principal método utilizado ser a raspagem, há já muitas mulheres que interrompem a gravidez com comprimidos. No conjunto das que optaram por este último método, cerca de um terço afirma que se viu obrigada a recorrer a um hospital, por complicações subsequentes.
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QUANDO ESTAMOS MAL, DIZEMOS

Quando estamos mal, dizemos
Que, evidentemente, os tempos são assim,
Mas dizemos com as palavras
Que o próprio tempo nos ditou,
E vamos ligados para sempre
À sua severa tutela,
Ao facto de haver grandes planos,
Ao facto de haver grandes feridas,
De modificarmos a natureza,
De morrermos das dificuldades,
E das nossas pernas estarem habituadas
Aos alertas aéreos e terrestres,
De contarmos os dias por grandes unidades,
Da nossa vida estar cosida em grandes pontos,
De nenhum desastre no mundo
Este fino fio poder romper.
Seja azar ou boa sorte,
Mas não podemos viver de outra maneira,
Não mudamos – nós teimosos –
Estes anos, nem estes dramas,
Não mudamos o nosso lote,
Não mudamos o nosso papel –
Representado no silêncio ou em voz alta,
Como herói ou como figurante,
Mas diante de todos se responderá
Pelo seu tempo e não por si só.


Tradução de Manuel de Seabra.

IlyaEhrenburg

Ilya Ehrenburg nasceu no dia 26 de Janeiro de 1891 em Kíev, na Ucrânia. De ascendência judaica, mudou-se com a família para Moscovo quando tinha apenas cinco anos. Foi preso em 1908 por actividades revolucionárias, emigrando para França após a libertação. A sua primeira colectânea de versos, intitulada Stikhi, aparece em 1910. Em Paris torna-se amigo de Picasso, Apollinaire, Léger, entre outros, ganhando a vida como correspondente de vários jornais russos. Autor de romances, pequenas histórias, poemas, fez parte do grupo construtivista, tendo-se oposto ao Realismo Socialista de Gorky. Recebeu o Prémio Estaline em 1942 e 1948 e manteve alguma actividade política relevante, assumindo posições por vezes controversas, nos últimos anos da sua vida. Morreu em Moscovo no dia 31 de Agosto de 1967. »

Fonte: Wikipédia

A Carolina do Norte possui um dos litorais mais traiçoeiros e acidentados do país.

12.12.06

Quando eu morrer escrevam posts...

Se há coisa que me irrita profundamente é aquele tipo de fuga para a frente de quem não querendo dizer algo opta pela retórica redonda de quem não diz nada. Vem isto a propósito da forma como a morte do ditador Pinochet foi recebida nas páginas decorativas da bloga lusa. Há os que festejam. O quê? Há os que lamentam. Em nome de quê? Há os que… lembram Fidel Castro. Para quê? Se isto não é de uma infantilidade sem limites (bem, depois de ter visto o Prós & Contras de ontem já nem sei o que deva considerar de infantilidade) que me atirem um cesto de calhaus para cima. Mas pego em três exemplos, todos do mesmo weblog. Luís Aguiar Santos opta pela objectividade sem concessões ideológicas (se não sabem o que é, não perguntem): diz que prefere «o legado de Pinochet (o Chile em 1990) ao de Allende (o Chile em 1973)». Não concordo nem discordo, porque não prefiro heranças que não me foram deixadas. Mas vão lá e leiam os comentários. Até mete dó. Noutro sentido, Bruno Cardoso Reis prefere centrar-se na interrogação mais repetida a propósito deste tema: «Será que Fidel Castro, outro ditador terrível nos fará esperar, e a uma Cuba arruinada e subjugada, pelo próximo ano?» É certo que a formulação da questão está um pouco confusa, mas se bem percebi: o que tem o cu a ver com as calças? Quando Fidel morrer, lembraremos quem? Ditadores há muitos, que a terra lhes seja pesada, a todos sem excepção, que nem chumbo. Já a Ana Cláudia Vicente diz a única coisa lógica e possível de ser dita (talvez por isso ninguém comente, é sempre assim na bloga lusa) por quem está a quilómetros de distância da alegria e do sofrimento daqueles milhões de chilenos. Servindo-se de uma canção dos U2, lembra as «mães da Plaza de Mayo, as que perderam rasto aos argentinos desaparecidos por altura do golpe de Videla e Galtieri, em 1976». E depois remata: «Mas são os chilenos que, ao contrário de Doña Lucía Hiriart Rodriguez, filhos e netos, nunca poderão enterrar os seus, me ocupam o espírito». É só isto que importa, nada mais do que isto. O resto é o espectáculo da retórica no máximo da sua ignara refulgência.

As 7 Maravilhas de Portugal

Parques Eólicos

Não entendo por que têm de ser sete as maravilhas do mundo. Pessoas amigas, preocupadas com a minha saúde, tentam convencer-me de que o número sete é mais importante que os outros. Dizem-me que sete são os dias da semana, os planetas, os graus de perfeição, as cores do arco-íris, os raios do raio do Sol hindu, etc. Como não sou de conversas mansas, logo lembro que sem o seis não haveria o sete e que para este ser possível necessitamos do um, do dois, do três e assim sucessivamente. O número um é um número essencial, símbolo do «homem activo, associado à obra da criação». Ora, deste ponto de vista talvez fosse mais lógico eleger uma única maravilha do mundo. Ou seja, talvez fosse mais lógico não eleger nenhuma pois das sete Maravilhas do Mundo originais resta, isso mesmo, uma: as Pirâmides de Gizé. A porca torce o rabo, e a gente troça com a porca, quando as pessoas que pensam estas coisas olham para as Pirâmides na actualidade e não conseguem ver nada de maravilhoso, sentindo então uma enorme frustração. Quem já esteve nas Pirâmides sabe que o que delas resta é um amontoado de pedras, rodeado de gente miserável a tentar fazer negócio junto de turistas ridículos que pagam para andar dobrados dentro de salas exíguas de onde quase sempre conseguem apenas trazer crises de falta de ar. A atmosfera à volta das Pirâmides também não é aconselhável, com a cidade do Cairo, transformada numa nuvem de gasóleo queimado e muito ruído, a ameaçar os resquícios de espiritualidade que só gente muito espirituosa ainda logra ali sentir. Perante cenário tão desanimador, sinal explícito da degradação da humanidade, toca de propor alternativas. Só falo daquilo que sei e o que sei é que a Acrópole, em Atenas, é um monte de pedras engessadas onde não resta beleza alguma; o Alhambra, em Granada, ainda mantém uma certa mística, assim tipo a mística benfiquista ou sebastianista ou coisa que o valha; o Coliseu de Roma só lembra coisas tristes; a Torre Eiffel é um rendilhado de ferro erguido no sentido das nuvens cuja beleza reside unicamente na vista que proporciona sobre Paris. Talvez o Machu Picchu seja mais agradável, mas dizem-me pessoas muito próximas que já lá estiveram que a única excelência da coisa é mesmo o local onde a coisa foi erguida. Pense-se também no Cristo Redentor e na “redentora” paisagem urbana que dali se vê, deve ser de levar às lágrimas. Fico-me por aqui. Quero com isto dizer que o que resta de belo no mundo não tem a mão do homem. Nenhuma criação humana supera a beleza natural de uma selva Amazónica, de um deserto do Sara, etc. As sete maravilhas do mundo só poderiam ser, se fôssemos justos, sete maravilhas naturais, pois onde o homem tem metido a mão é invariável a decadência. Felizmente algumas maravilhas naturais ainda mantêm, aqui e acolá, a sua beleza original. É bom que preservemos isso, sobretudo evitando ao máximo o turismo nesses locais, dificultando ao máximo o acesso humano a esses locais. Quanto ao caso português, note-se bem o desplante. Um país que sempre desprezou o seu património quer agora votar o que, na maioria dos casos, não passa de uma indisfarçável negligência no acautelamento do tempo. Está tudo a cair aos bocados e querem que vejamos nisso uma maravilha… Olhem, a mim não me enganam. Voto nos parques eólicos que proliferam pelos montículos do país, símbolo do progresso estampado, em alguns casos, mesmo à frente de dezenas de moinhos de vento antigos votados ao abandono aqui pela região. Cenário idílico e lindo de morrer. Não acham?

O ANJO



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Era uma vez um anjo que tinha um supermercado. Também tinha um desgosto enorme por não usar óculos.

Estava apaixonado pela perna de um flamingo. Pensou dizer-lhe, mas resolveu abrir antes outro supermercado. A perna do flamingo foi viver para longe. O tempo mudou. Fazia escuro e frio. O escuro também faz, não é só o frio. Teve este pensamento profundo, o certo é que via cada vez melhor. Viu a perna do flamingo na distância. Abriu outro supermercado, desta vez só para vender óculos.

Depois ficou chateado. Mas no dia seguinte estava outra vez bem-disposto. De maneira que já não vale a pena dizer porque é que ele ficou chateado.


Rui Costa

Fragmento #42 - Comboios

Perdi-me em adulta nos comboios alemães, quando voltava de Heidelberg: enganei-me na estação de Mainz, porque estava em obras; fez-se tarde e não reconheci o caminho de volta a partir de Wiesbaden e tive de voltar para trás; nos comboios regionais, saí num lugar escuro de ninguém e tive de voltar de novo; o interior das máquinas era vazio, pontuado por alguns alienados; ouvi a certa altura a abertura de uma garrafa de vinho ao fundo, o ploc da rolha, claro, estava em pleno Vale do Reno onde se produzem vinhos que parecem refrescos florais; uma alemã que arranhava o inglês indicou-me por fim uma estação que tinha um café, onde telefonei para me irem buscar, porque não fazia a mínima ideia onde me encontrava; tudo à minha volta era um campo infinito nocturno sem viva alma. O equivalente em Portugal seria uma alemã enganar-se e sair de noite em Vila Nova da Baronia em vez de ir parar a Beja. Os alemães no campo não falam nenhuma língua, apenas a deles, nalgumas cidades de província também é assim. Em Heidelberg falam inglês e andam de bicicleta, lá situa-se uma das mais antigas universidades da Europa; não percorri o caminho dos filósofos à beira rio, tenho de lá voltar, não visitei o castelo, nem o Jardim Zoológico, apenas andei nas ruas a olhar para os edifícios, a espreitar as janelas; quero voltar ao silêncio das ruas alemãs, àquela ordem austera para sentir frio no nariz e percorrer aquele caminho à beira rio; vou ter que insistir porque existem coisas que são mais importantes que o dia-a-dia, vou voltar atrás outra vez. Isto tudo foi no tempo em que era monja ou o raio que o parta, também visitei o convento da Hildegard von Bingen. Já não me perco no caminho de volta, nem mesmo no escuro, estou vacinada e tenho mapas. Agora dizes-me que sonhaste com o quadro que está por cima da minha cama ao som de comboios, era tudo vermelho e negro; parecia um filme sueco? A novidade é que vivo mesmo junto a uma estação de comboios e eles ouvem-se na minha casa, acompanham o meu descanso e cansaço; tu não reparaste nisso, mas só poderias acordar muito bem disposto.
Maria João

11.12.06

EXPERIMENTAR

Experimentar, em termos artísticos, não tem de ser, necessariamente, um acto agressor, um acto de distanciamento que perca de vista, à falta de melhor termo, o espectador. Quero entender aqui o conceito de espectador no sentido de testemunha, um sentido aplicável a todo o tipo de relação que se estabelece entre uma qualquer obra artística e aquele que dela frui. O usufruto de uma obra de arte, seja ela de que género for, implica sempre essa relação, uma relação que pode ser de provocação, de identificação, de revelação, de atemorização, mas que nunca deixa de ser uma relação. É como um eco. Imaginemos o eco da nossa respiração gritado por alguém que não nós. É isso que experimentamos quando uma obra nos atrai, mesmo quando ela nos atrai pela repelência que nos provoca. Aí ela é o reflexo dos nossos podres, a reverberação dos nossos medos. Há muito disso na arte contemporânea, na música, na poesia, na pintura, na escultura, na dança, etc. Há muito desse confronto com o lado mais obscuro da criação, ou seja, o lado da destruição. Porque criar também é assassinar, também é esse gesto cruel de destruir, (des)construir, criar também é agarrar num riff de funk e estilhaçá-lo aos bocados sem que isso nos impeça de dançar.

Serviços mínimos

Muitos assuntos aqui se misturam. Primeiro, não gosto de trazer para a blogolândia problemas pessoais, daqueles pessoais mesmo pessoais, tão pessoais que até nem parecem nossos. Pois bem, deste feita, por respeito aos devotos leitores, vai ter de ser. Nos próximos dias só serão garantidos serviços mínimos aqui no Insónia, o que dará, mais coisa menos coisa, num post por dia à procura da alegria. O tempo não está para brincadeiras e a asma ressentiu-se, a ponto de hoje ter decalcado o camarada Che num daqueles ataques de levar à pica. Como o grosso do trabalho é no sótão, entre livros e muito pó, vou ter que me ausentar durante alguns dias, pelo menos até a respiração voltar ao sítio. Resta-me o consolo, obviamente, de algumas das pessoas mais inteligentes deste mundo terem sido asmáticas. Ser asmático é fazer parte de um grupo imenso de pessoas imensamente sábias e imensamente inteligentes. Assim como, e agora mudando de assunto, ser um dos melhores bloggers de 2006. Isso mesmo, camaradas. O Insónia não aparece nos destacados, mas apareceu eu, cá no fundo, entre os últimos que são sempre os primeiros. Dividem comigo o 10.º lugar alguns ilustres que me abstenho de mencionar sob pena do meu nome ficar manchado. Sinto-me feliz, asmático mas feliz. Estava até capaz de fumar um cubano só para festejar. Acham que agora, com este importantíssima distinção, vou conseguir publicar um livro na Dom Quixote?

10.12.06

Estas coincidências

O Estes Momentos, weblog que desconhecia mas cujo bom-gosto se assemelha em muito ao d'A Cozinha da Joana, também elege o Insónia entre os melhores weblogs temáticos. Obrigado. Agora vou ali arranjar um tema, volto já.

Só publica quem quer

A ex-companheira do inefável Pinto da Costa, uma galdéria qualquer que ele trocou por uma esposa devota, na boa tradição do velho baboso português, publicou um livro onde se aplica na descrição dos podres, em sentido literal, do presidente do FCP. Não li, não vou ler, não me interessa, mas acho piada que ande para aí alguma indignação pelo facto do livro ter sido editado pela Dom Quixote. Não entendo a admiração. Há muito que a Dom Quixote vem contribuindo para o ambiente de pocilga que reina nas bancas de livros das grandes superfícies e nas montras da grande maioria das livrarias portuguesas.

9.12.06

VASCO PULIDO VALENTE


Vi-o a foliar o dia inteiro, destruir a imagem dos outros, perdido nos corredores onde o vento cata os galos do poleiro. Que sombra é Eça, que sombra é Eça, que tantas sombras tem, que só serve para entreter quem não tem o que fazer? Que sombra é Eça, leitor, que se põe de mal com os outros e de bem consigo?

8.12.06

The Drift

Missão árdua, mas não impossível: tentar penetrar a música do mais recente álbum de Scott Walker. Noel Scotty Engel (n. 1943) conseguiu bastante sucesso a solo na década de 1960, com quatro discos em nome próprio que são do melhor que se possa imaginar. À época o tom era de crooner iniciado na temática existencialista, com canções abordando filmes de Bergman e livros de Camus. Em registo pop, usando e abusando de orquestrações romanticíssimas e arranjos algo pomposos inspirados em Bacharach e Morricone, Scott Walker foi um profeta da melancolia, um vidente, uma espécie de ícone entre as hordas de neo-depressivos com queda para as artes. A desgraça viria na década seguinte, com um Scotty cada vez mais ensimesmado, exilado, dedicando-se ao estudo do canto gregoriano, tentando suicidar-se. A esquizofrenia outrora implícita era agora o dado mais explícito na sua vida e, por consequência, na sua obra. Seguiram-se dois períodos mais extensos de hibernação, entre 1974-1984, 1984-1995. Foi precisamente em 1995 que dei conta da obra de Scott Walker, através do álbum Tilt, um objecto tão estranho quão cativante. The Drift mantém a linha de Tilt, embora me pareça bem mais perturbador. Publicado pela 4AD, é aquilo a que se pode chamar um álbum de terror, gótico até ao osso, com picos musicais aterrorizadores - onde entram sons de animais em agonia, grunhidos que associamos a seres misteriosos - e momentos de suspense, quase silenciosos. Há qualquer coisa de catártico na forma como aqui se expõem demónios, medos, pesadelos: cossacos em carga através de campos de rosas brancas, Palácios sombrios, crenças esotéricas, referências obscuras ao 11 de Setembro, situações claustrofóbicas, «nice girls turned into whores», sítios onde nascem crianças mortas, fantasmas, os tumores da actualidade acossando o peito de quem canta, Sudão, Milosevic, Calígula, um estômago a rebentar de não ter onde dormir, de não conseguir dormir, «you and me against the world». Termina com uma balada absolutamente genial, talvez a mais estranha dedicatória alguma vez cantada na história da música ex-pop: «This is / a waltz / for a / dodo / A samba / for Bambi / Gavotte / for the / Kaiser / Bolero / for Beuys / A reel / For Red / Rosa / A Polka / for / Tintin». Neste excelente sítio podem fazer muitas coisas boas associadas ao álbum.

Fragmento #41 – Gato Tigrado

Tenho o computador avariado desde Maio e ainda não o arranjei, a contenção de despesas no momento não me permite qualquer tipo de luxo. Esta situação prolongada tem um aspecto positivo, porque obriga-me a sair de casa para consultar a Internet, vou a uma loja da PT num centro comercial; consultar os e-mails tornou-se assim um bom pretexto para andar a pé quando não chove. Ontem, deparei-me com uma situação insólita quando estava nesta loja: tudo começou quando me atribuíram o computador nº7, pensei logo que sete vidas têm os gatos e por isso o meu e-mail teria alguma mensagem importante. Ao consultar as mensagens, lá estava uma boa proposta de trabalho feita por um amigo, um bom desafio, fiquei entusiasmada apesar de ser algo que não rende dinheiro, mas em termos práticos também não vou gastar, por isso pode-se fazer com gosto. Nisto, espreito o que se passa no Insónia e sinto algo nos meus pés – era um gato tigrado, lindo, fofinho, branco e laranja com os olhos cor de mel, a largar charme e pêlos nas minhas pernas. Fiquei perplexa com aquele ser, dei-lhe uns mimos, reparei que tinha uma coleira vermelha de veludo com um guizo e estava muito bem tratado. Largo o computador e dirijo-me à rapariga da loja, pergunto-lhe de quem é este gato lindo, ela responde que não sabe e que ele acabou de entrar ali agora. Observo como ele se vai passeando na sala, passando o pescoço nas cadeiras e nas pernas dos clientes; vê-se logo que é um gato de apartamento, ingénuo e mimado, entrou ali porque a sala está quente. A rapariga da loja está um pouco à nora, não sabe o que fazer, enquanto o gato vai conquistando novos amigos. Entra um colega da rapariga e faz umas festas no bichano, ele rebola-se no chão, mostra a barriga branca com as patas no ar, brinca com as mãos dele sem mostrar as unhas, dá-lhe dentadinhas de amor. Este gato é mesmo irresistível, muito radioso e civilizado, deve ter fugido por alguma janela e não sabe onde está; tem mesmo ar de quem não se orienta sozinho na vida, deve existir um dono ou uma dona que lhe dá muito amor e neste momento se encontra em pânico à sua procura. Proponho ao pessoal da loja que telefonem para alguma instituição que cuida de animais e que ajudem a procurar o dono. Entretanto, entra na loja um miúdo brasileiro muito engraçado, que está à espera que a mãe termine de falar ao telefone. O miúdo adorou o gato e começou a fazer-lhe traquinices, digo-lhe para ele ter calma e não o assustar – os gatos mesmo quando são domesticados, mantêm reflexos de predadores, eles reagem mal a movimentos bruscos e devem ser tratados com calma. O gato continuava a largar charme por onde passava e o pessoal da loja estava a tentar arranjar alguém que pudesse ficar com ele; eu não o podia levar comigo porque se a Lua o visse passava-se, havia logo zaragata; os gatos entre eles são terríveis em questões de territórios. A rapariga da loja estava encantada com o bichano, mas também tinha um gato em casa. Por fim, a rapariga conseguiu convencer uma amiga a ficar com o gato pelo menos uma noite, porque a União Zoófila apenas o poderia recolher no dia seguinte, para procurar o dono ou dona. Respirámos todos de alívio, eu estava a ficar angustiada ao imaginar este bichano lindo e meigo a andar nas ruas da cidade; ingénuo como é ainda era atropelado, via-se logo que o gato não sabia nada da sobrevivência nas ruas, nem conhece a crueldade dos humanos nos seus espaços públicos. Saí então da loja e fui beber um café, aproveitei para apontar este encontro com o gato tigrado no meu bloco. Passado um bom bocado, vejo a rapariga da loja com os olhos muito tristes, a espreitar para fora do edifício e volto então ao espaço dos computadores. Contam-me que o bichano não queria sair da loja, que quando a amiga da rapariga o veio buscar, ele entrou em pânico, assanhava-se e assoprava quando se aproximava da porta da rua. A rapariga da loja mostrou-me os braços, estavam cheios de arranhões. O gato acabou por se escapulir a alta velocidade. A rapariga e um segurança ainda o procuraram nas redondezas. Eu fui dar umas voltas ao quarteirão, entrei nos cafés e perguntei se não o tinham visto, mas nada. Por fim, voltei para casa triste, a pensar na sorte do gato tigrado, ele era tão charmoso, meigo e ingénuo. Espero que as suas sete vidas o tenham protegido, se bem que foi a curiosidade que matou o gato, como se costuma dizer; na melhor encontrou o caminho para casa, ou alguma alma caridosa o descobriu e procurou o dono, porque aquele gato maravilhoso nunca poderá sobreviver muito tempo numa selva de betão.

Maria João

7.12.06

Cada um joga com o que tem

É hoje o derradeiro dia de votações para a eleição d’Os Melhores Blogues 2006. Não sei se ainda vou a tempo, mas quero aqui afirmar solenemente que ofereço penicos, faiança das Caldas e cavacas a quem votar em mim até ao final do dia de hoje.

P.S.: Nunca tinha pensado no Insónia como um weblog temático, mas a Joana Bernardes tem toda a razão: nós somos 1 dos 6 melhores weblogs temáticos portugueses de 2006. P.S.2: tem direito a penico, faiança, cavacas e ginja. P.S.3: é bom saber que ainda há gatas que nos entendem.

IVG #19

Em 1998 não votei. Afirmo-o de livre consciência e sem que me haja envergonhado pela opção tomada ao ceder ao letargo do tempo previamente planeado para o ócio dominical, que me impediu a deslocação à assembleia de voto. Naquela altura, votaria “sim” e talvez a certeza de uma não certeza, por manifesta falta de reflexão, haja contribuído para a preguiça em detrimento do cumprimento do tal dever cívico. Desta feita irei votar e votarei SIM!
André Moura e Cunha, In Absentia.

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Bloco de apontamentos #48


MJLF, S/título, gesso, 36x110x57cm, 1999.

Este Verão estive uns dias na Ilha do Farol, numa casa que uns amigos alugaram na zona clandestina, que era redonda e tinha uma decoração marítima muito peculiar. Quando lá cheguei avisaram-me logo que o bom da casa ser redonda era que não se podia andar a chorar pelos cantos. Ainda bem que só lá estive uns dias, porque o redondo não é bom para as variações de humor, comecei a andar às voltas como o farol e a ter ataques de fúria com quem me chateava a cabeça.

Maria João

ODE

A miúda de James Bond
Está na cama, com
Um pesadelo durante uma trovoada
Todas as folhas caíram:
Dois homens no espaço,

Uma senhora com o cão,
Uma senhora com o filho,
Uma árvore casa, pequenas cabanas e barcos,
E homens apanharam pardais
Para levar para outro país

Aarão ficou no templo
Mas Mrs. Grub foi ao dentista
Deixando o filho com bexigas doidas
Chovia dentro de casa
Nevava nos carros da polícia

E assim a menina mimada
Que arrasta o cabelo
Baixo baixo baixo no tapete de treino
Libertando o poder da serpente
Da sua espinha atrás dela

Ouve a coruja
Que já não grita
Ofuscada por faróis por assim dizer
E atravessando a estrada, a árvore vazia,
E a mente mais vazia do que antes, e mais livre.

Tradução de Manuel de Seabra.


David Shapiro

David Shapiro nasceu em Newark, Nova Jersey, no dia 2 de Janeiro de 1947. A sua primeira colecção de poemas, January, apareceu em 1965. Tinha apenas 18 anos e sonhava vir a ser violinista. Considerado uma criança prodígio, estudou música, matemática, pintura e arquitectura. Já na Universidade de Columbia destacou-se enquanto poeta, mantendo ligações com autores como John Ashbery, Kenneth Koch, o músico John Cage e o pintor Jasper Johns, assim como outros poetas associados à denominada New York School (movimento avant-garde iniciado na década de 1950 ainda na esteira da beat generation). Publicou várias dezenas de livros de poesia e de crítica, assim como uma peça de cariz político intitulada Harrisburg Mon Amour. Co-editou, com Ron Padgett, uma antologia de poetas nova-iorquinos e escreveu vários ensaios, considerados fundamentais, sobre alguns dos seus maiores amigos, incluindo John Ashbery e Jasper Johns.

IVG # 18

Estou farta. Farta das fotografias dos embriões. Farta de imagens de marquesas de obstetrícia. Farta de ver as mulheres, como eu, transformadas num corpo-aquário com imagens de fetos em diversas fases de desenvolvimento. Agora para completar o album até já temos fotos de fetos elefantes, fetos cães e outros fetos mas sempre fetos no vente materno. Tanto ventre, senhores! (...) Por tudo isto votarei Sim a 11 de Fevereiro. Mas não considero que o caso fique aqui encerrado. Em política como na vida as responsabilidades devem ser pedidas a quem de direito. E esta situação aberrante em que nos encontramos tem responsáveis. São eles António Guterres e Marcelo Rebelo de Sousa. Sobrepondo-se à Assembleia da República estes dois líderes acordaram na realização dum referendo que não só não resolveu problema algum como criou vários. Algum dia quer um quer outro terão de ser confrontados com isto.
Helena Matos, in Público.
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Ramos Rosa

Porquê tanta cerimónia em afirmar que há muito tempo a obra poética de António Ramos Rosa só a breves espaços não é uma autêntica maçada? A obra de um poeta vale quase sempre por meia dúzia de poemas, Ramos Rosa escreveu-os logo nos primeiros livros. O resto tem sido como uma muralha erguida à volta da hierofania.

6.12.06

Magazine littéraire

É muito pouco provável que neste preciso momento um qualquer francês se sente numa esplanada a beber um café e uma água com gás e a ler uma revista literária portuguesa, tal como neste preciso momento aquele qualquer português ali sentado na esplanada a beber um café e uma água com gás e a ler uma revista literária francesa. É que lá na França faz frio, enquanto aqui, no nosso Portugal, está uma tarde linda de ler revistas literárias francesas.

Bloco de apontamentos #47

MJLF, S/título, técnica mista s/papel, 15x10cm, 1996.

Sento-me no café com o meu caderno de apontamentos e as ideias a girar. Está imenso frio e com o piloto automático ligado, abano o pequeno pacote que retiro do pires e o açúcar salta para cima de mim e gira à minha volta. Um casal de pé ao balcão farta-se de rir da minha figura a sacudir o açúcar por todo o lado. Deve andar por aí um anjo que me fura os pacotes porque me quer ver elegante e bonita.

Maria João

Caros amigos

Sei de pessoas que têm amigos por todo o lado, passam a vida a dizer que são amigas deste e daquele, dirigem-se a todos por «caro amigo» ou «cara amiga». Eu sou incapaz de ser amigo de alguém assim.

IVG # 17

Votarei “sim” no referendo sobre o aborto, sem grandes parangonas morais, sem grandes proclamações sociais, sem certezas absolutas sobre nada, nem sobre a moralidade, nem sobre a liberdade do acto de interromper uma gravidez. Respeito os dilemas dos que votam “não”, respeito os dilemas dos que votam “sim”, porque em ambos os lados há a consciência de que o que defrontam é um mal social, uma perturbação a evitar, um momento sempre de uma certa crueldade interior, a da vida aliás. Mas como não acredito em grandes proclamações morais, nem pelo “sim” nem pelo “não”, voto “sim” por um conjunto de razões dispersas, sociais, culturais e filosóficas, que admito que se diga serem de mal menor. Será de mal menor, mas quantas vezes muitas coisas que fazemos são de mal menor?
José Pacheco Pereira, in Sábado.
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