31.8.07

A FESTA

Tiago Barbosa Ribeiro sugere que os seus leitores escrevam sobre «a vergonhosa reincidência das FARC na Festa do Avante». Sobre o mesmo assunto, o ano passado, escrevi o que me valeu indiferença, à excepção de uma breve reprimenda de leitor amigo. Este ano conto uma história. Marquei presença na Festa do Avante, se bem me lembro, duas vezes. Na última delas lembro-me de uma cena curiosa, que se passou durante a actuação dos Xutos & Pontapés. Durante o concerto, se bem me lembro, o vocalista da banda fez o seguinte comentário apontando para o pavilhão do MPLA: «Cada crachá comprado ali servirá para comprar balas que matam pessoas». Cito isto de memória, pelo que as palavras não terão sido bem estas mas o efeito foi o mesmo. O Tim, vocalista dos Xutos & Pontapés, tinha, provavelmente, toda a razão, assim como terão razão as pessoas que não fazem férias em Cuba, na China ou noutro país qualquer que seja governado por ditaduras desumanas. Às vezes questiono-me se essas mesmas pessoas não adquirirão produtos nas lojas dos chineses, mas isso é a velha história da hipocrisia nacional. Assim como é a velha história da hipocrisia nacional não levantar a voz contra as traficâncias, ditas boas oportunidades de negócio, que os países ditos democráticos vão fazendo com essas escabrosas ditaduras. O que sei é que, em país democrático, o PCP está no direito de convidar quem quer que seja para uma festa que é sua e os cidadãos estão no direito de não ir a essa festa. Cada um tem os amigos que quer. Diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és. Eu deixei de ir à Festa do Avante, votei no PCP, se estou recordado, uma única vez (para a Junta de Freguesia), não compro produtos made in China, nunca passei férias em Cuba, etc, etc, etc. Mas às vezes interrogo-me se não deveria ter-me separado da minha mulher quando, recentemente, ela adquiriu um Ford. A Ford, como sabeis, é uma multinacional americana. Comprar um carro destes, seguindo o raciocínio do Tim, pode bem ser uma forma de patrocinar a guerra no Iraque, que nos deu, em tempos mais recentes, pérolas do respeito pelos direitos humanos como Abu Ghraib e Guantánamo. Enfim, dúvidas, paradoxos e contradições com os quais temos de aprender a sobreviver.
Ler também: Morte aos assassinos. E a sequela Morte aos assassinos (2). Em absoluta concordância com o Sérgio Lavos, abstenho-me de desenvolver o tema.

30.8.07

QUEM SAI AOS SEUS

Em entrevista ao Diário Económico, o advogado José Miguel Júdice, um dos mais recentes lacaios da trupe socrática, gaba-se da sua «abrangência» política: «Já fui mandatário de Durão Barroso, Maria José Nogueira Pinto e de António Costa, candidatos de três partidos diferentes, o que me garante uma grande abrangência». Não haja dúvida que este bailarino do fandango nacional ostenta certo jogo de anca. E assume: «Sou contraditório». Continuando: «Em matéria política vou ao supermercado e compro o que me apetece». Assim como quem compra feijão verde, tomates e melancia. Só perde o equilíbrio na contradição quando deixa escapar alguns desabafos: «Portugal é um país de vidrinhos ou de vidrecos…»; «Temos de viver com a esquizofrenia dos portugueses ou então emigrar.»; «Somos um país muito merdoso». É caso para dizer: quem sai aos seus não degenera. Mais objectividade e coerência era impossível.

ESTAMOS VIVOS

A noite presta-se ao crime, aos negócios sombrios, a rivalidades com desfecho sanguinário, como sucedeu recentemente nas zonas das discotecas do Porto e de Matosinhos. Quem frequenta a noite sabe que sempre foi assim, pois desde sempre se ouvem histórias tocadas com a surdina do medo, mergulhadas num lodaçal de práticas diabólicas para as quais é preciso ter o estômago da indiferença. Pelas bandas que frequento amiúde surgem relatos de vidas desfeitas à mesa do jogo, na cama da prostituição, nos tugúrios do tráfico. Ainda há não muito tempo foi uma puta regada com gasolina não muito longe de onde vos escrevo, e está por esclarecer o estranho assassinato do dono de uma discoteca de sucesso. Diz-se muita coisa, que maridos matam mulheres, que mulheres se vingam em maridos, que incêndios são ateados pela chama irreflectida das paixões, do ciúme e da inveja. Muitos crimes da noite possuem certas nuances indistinguíveis, misturam num só acto vários vícios, explicam-se por razões confusas que metem no mesmo saco ganância e amor, dinheiro e paixão. No fundo, sexo, drogas e rock ‘n’ roll sob o tecto sagrado do deus dinheiro. A gente pensa que é só nos filmes, nas Américas, matéria hollywoodesca. Mas essa matéria tem os seus vulcões. E esses são tão reais como estarmos agora aqui distraídos da sorte que temos.

RESPONDENDO

A bem dizer, que me tenha mudado a vida só me lembro de um livro. Já contei a história. Todos os outros não a mudaram senão naqueles resíduos de mudança que se manifestam em palavras a mais, esperanças a menos, ideias novas, filosofias velhas. Quero com isto dizer que em muito pouco me mudaram os livros a vida. Jamais tanto quanto, na minha curta vida, os tenho eu mudado (a eles) de estante, de sala, de pó. Parto do princípio que do desafio colocado pelo manuel devamos excluir aquelas inanidades para as quais não temos explicação do tempo que desperdiçámos a lê-las. No meu caso, confesso, é tanto esse tempo que, muitas vezes, me indago sobre o desperdício que é não escrever certas coisas, mas lê-las. Sendo assim, escolho dez títulos (cinco portugueses, cinco lá de fora) em muitas mentes obrigatórios. Não na minha, que tão depressa os leu como (quase) os esqueceu:

1- «O Manto», Agustina Bessa-Luís
2- «O Erro de Descartes», António R. Damásio
3- «Poemas Reunidos», Gastão Cruz
4- «Aparição», Vergílio Ferreira
5- «Portugal, Hoje: o Medo de Existir», José Gil

6- «O Monte dos Vendavais», Emily Brontë
7- «Pensamentos», Blaise Pascal
8- «Poemas Escolhidos», Paul Auster
9- «Os Emigrantes», W. G. Sebald
10- «Itinerário da Mente Para Deus», S. Boaventura

Adenda (antes dos insultos): Não é que considere os livros maus. Simplesmente não mudaram a minha vida. Acresce que quando não gosto de um livro que outras pessoas elogiam, raramente me sinto à vontade para dizer que é mau. Não é cobardia, é mesmo humildade. Outros livros, muito bons, exigem-me que assim seja. Segunda adenda: fiz uma substituição.

Em cada ave dormia uma montanha.
Em cada mão o réptil sagrado
vinha comer o sal. Nas ruas do porto
um bispo velho interrogava a árvore.
O vinho andava nu, e havia perto do rio
quem chorasse as savanas perdidas
depois do seu encontro com a neve.
Como o fogo lhe faltasse, o feiticeiro
casou com a cidade enquanto ardia.

Tradução de Eugénio de Andrade.

Alain Bosquet

Alain Bosquet nasceu em Odessa, Ucrânia, a 28 de Março de 1919. Filho do poeta Alexandre Bisk, emigrou para a Bélgica onde fez estudos na Universidade de Bruxelas e, posteriormente, na Sorbonne. Mobilizado em 1940, tornou-se redactor, em Nova Iorque, do La Voix de France. Acabou desembarcando com os americanos na Normandia, em 1944. Um ano depois publica La vie est clandestine. Foi professor de literatura francesa nos EUA e professor de literatura americana em França. Trabalhou ainda como jornalista, tradutor e crítico literário em vários órgãos da imprensa escrita (Combat, Le Monde, Figaro, Quotidien de Paris). A sua extensa obra literária, várias vezes distinguida, divide-se pelo romance, pela poesia, pelo drama e pelo ensaio. Faleceu em Paris, no dia 8 de Março de 1998.

29.8.07

PARA QUEM SE SENTE INSPIRADO

Na poesia de Silva Carvalho encontro um olhar insensível e obumbrado, um cântico nulo e severo esvoaçando nulo de percuciência, um zumbido terebrante, o ouvido desperto até à ustão, um outro modo de ser pacacidade, uma fome terebrante em meu corpo ancho, o tão ansiado e fúlvido desejo, o deletério aviltamento, o morno truísmo pervagando a consciência sem memória nem signo, o prazer travestido em icto e auge e grito, um percluso percalço, a pletórica riqueza inefável, um poema surdindo no acme da Voz, um singulto, o poema indefectível da hora, a voz que sibila nonadas como miragens, o sonho incoativo, uma luz sitibunda caindo sobre as coisas, esse tenebricoso nada da presença que inebria, essa inolvidável hora no mericismo das coisas que asfixiam, o apogeu da hominalidade pura e fictícia, um sol dardejando a inanidade esplenética do que só pode ser sentido como ausência, um prazer tão inaudito e ao mesmo tempo suxo, o automóvel pela cidade aberta em espaços acmásticos, a tauxia da luz, cânticos dementes da desvirtuada palingenesia, uma dor despascente, o declínio sestro, um vil ínstase, ou apenas a excruciante metamorfose, fantasmagoria da estesia enferma, um olhar obstupefacto, a degenerescência do pervígil sonho, paredes devolvidas ao sáfio poente, o estilicídio da obsessão, a dor infecunda da premonição ao avesso e sempre vulgívaga, o poder com que se confunde um valor na estesia, um nada aspiciente, os limites perfunctórios da arte, a experiência definitiva e anistórica, a dispensação, uma hipotética e lúdrica memória, este desejo prisco e infantil, a tauxia do homem na nomenclatura real do mundo, a brancura esplenética, o sinuoso poema. Tudo isto eu encontro na poesia de Silva Carvalho. E fico triste, sem saber porquê!

Enterraremos tudo,
os braços, o movimento e a pá,
a paixão de sexta-feira,
a bandeira de andar sós,
a pobreza, essa dívida,
a riqueza, essa outra.

Enterraremos tudo até com sabedoria,
cortando sabiamente os pedaços,
ou cortando-os sem nos darmos conta, sabiamente.

Um resto de olhar
ficará flutuando como um pincel absurdo
sobre a trégua duplamente fiel de tudo ausente.
E menos mal que não haverá ninguém
para escavar logo bem fundo
e descobrir que não há nada enterrado.


Tradução de Arnaldo Saraiva.

Roberto Juarroz

Roberto Juarroz nasceu em Coronel Dorrego, Província de Buenos Aires, Argentina, a 5 de Outubro de 1925. Graduado pela Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, trabalhou como docente e bibliotecário em diversos países. Dirigiu a revista Poesia = Poesia, entre 1958 e 1965, tendo colaboração dispersa por numerosas publicações argentinas e estrangeiras. Foi crítico literário e de cinema, tendo também exercido a actividade de tradutor. Publicou, desde 1958, 13 volumes de poesia todos com o título Poesia Vertical, aos quais se acrescentou, postumamente, Decimocuarta Poesía Vertical. Faleceu no dia 31 de Março de 1995. »

28.8.07

DINÂMICA COLECTIVA

Para que haja dinâmica colectiva é preciso haver, antes de mais, um colectivo. A heteronímia pode, de certa maneira, ser considerada um colectivo de tipo psicológico. Deste modo, havendo heteronímia torna-se possível haver um certo tipo de dinâmica colectiva. Alguém que dentro de si permita a existência de múltiplas personalidades deverá, em nome da integração social, ser colectivamente dinâmico no imo da sua multiplicidade egóica. Caso contrário, arrisca-se a uma desfragmentação do ego com consequências previsivelmente catastróficas para si e para os seus. Mas isto em termos psíquicos, porque em termos extrapsíquicos a questão da dinâmica colectiva torna-se deveras complexa. Basta imaginarmos uma relação entre dois seres afectados pelo multipersonalismo. Se as relações entre dois indivíduos de personalidade consolidada no prisma da unicidade já são complexas, facilmente imaginaremos o que possa suceder no caso de ambos os indivíduos possuírem tendência para as personalidades várias (uma espécie de heteronímia concreta com repercussões ao nível da ambiguidade dos comportamentos). Muitas vezes não sabemos o que esperar daqueles que julgamos conhecer bem, pior se tivermos de esperar alguma coisa de alguém que conhecemos mal. Mas pior ainda é o género de expectativas geradas relativamente a quem desconhecemos por completo, não por distância relacional mas tão-somente por esse alguém ser a toda hora outro alguém que não o próprio. Como lograr alguma dinâmica colectiva entre dois seres que são sempre outra coisa que não aquilo que eram ou foram, eis o nosso problema. Porque, nessas pessoas que mudam de personalidade como quem pisca os olhos, há o ónus do caos, do acaso, da imprevisibilidade. Como sabeis, só quando há previsibilidade é que se justifica esperar alguma dinâmica colectiva. A solução para o problema seria uma conversão à inactividade hindu, ao nirvana, à abdicação, à entrega do ser ao ser. Não é solução fácil, como fácil sói não ser a vida que vive do ar que se respira. O silêncio também parece não funcionar. Isto porque sobre o silêncio paira sempre a nuvem da desconfiança, do temor, do medo, do receio de se estar a ser preterido, voluntariamente desprezado e excluído. Entre duas pessoas com múltiplas personalidades nada há pior que o silêncio. Podem imaginar isto se conseguirem imaginar uma estação do metropolitano, em hora de ponta, mergulhada na cegasurdamudidade do silêncio. Que fazer? A única solução visível é falar com essa pessoa como se estivéssemos a falar com uma turma inteira, esperando que, da pessoa em causa, surja a mesma atitude para connosco. Apenas esta condição poderá estabelecer alguma dinâmica colectiva entre dois seres que, a cada instante que passa, são já uma outra coisa. Falar para alguém como se se falasse para uma plateia de gente é, senão igual, pelo menos parecido ao que fazem os homens e as mulheres de sucesso na sociedade em que vivemos. É com esses homens e com essas mulheres que Deus quer, os homens sonham e a obra nasce. Talvez isso se explique pelo facto de vivermos em sociedades muito propícias ao multipersonalismo e à heteronímia, o que, em abono da verdade, se justifica pela propagação dos métodos intercomunicacionais cibernéticos. Mas o que importa aqui sublinhar é o sucesso do tom. Sintonizar correctamente o tom, falar, gesticular, andar, como se, a toda a hora, estivéssemos a comunicar para uma plateia imensa de indivíduos. No fundo, falar como se estivéssemos a conferenciar. Em certas situações, é tudo isto assaz satisfatório. Pois permite-nos transformar a mais banal performance sexual numa autêntica orgia de sabores.

Adenda: Em adenda à Dinâmica Colectiva, deixo verso de Silva Carvalho:

Digo para mim mesmo: aguenta!

A VISÃO DA MORTE DE UM MOTOCICLISTA PERTURBADO

Em pleno campo,
Avanço por entre muralhas de chuva
Que me fustiga o rosto e me ensopa os joelhos,
Mas sou o homem que quero ser.

A charneca firme acaba e surge o pântano.
Estamos agora em guerra: quem ganhar
Não conseguirá submeter a minha vontade humana
À natureza embora seja de lá que ela veio.
As rodas afundam-se; o ruído nítido torna-se confuso:
Porém, curvado sobre o volante,
Lanço esta minha máquina que escolhi
Contra a possibilidade de ser um corpo ainda.
A roda da frente penetra com firmeza entre
Dois arbustos de um verde esmaltado e insensível
- Gigantesco equilíbrio no contorno
De cada folha lisa. Redemoinhos negros sobem
Em redor do meu pé que, comprimindo com força,
Acelera o sono que espera.

Costumava viver no ruído e desconhecia
A existência da realidade calma ou rastejante,
Mas agora as águas paradas, coladas ao meu rosto
Sob o peso da morte, retiram-me o alento;
Embora angustiado julgo que posso
Mover-me através da matéria. Encontro o meu caminho,
Onde a morte e a vida se conjugam,
Através da negra terra que não é minha,
Povoada de fragmentos, embotada, informe,
Enquanto pelos meus ouvidos, enxameados de ruído,
As extremidades brancas das plantas do pântano,
Lentas, sem paciência, espalham-se à vontade
Invulneráveis e flexíveis, e se estendem
Numa posse serena em direcção ao seu fim.

E embora os cogumelos quando eu apodrecer
Me recubram os ossos com lívidos nós,
Até enfunarem os meus fatos, eles fingem
Que este espantalho é de novo um homem,
E é como servos que persistem
Ou, sem qualquer vontade, se contorcem;
E o hábito, pelos homens laboriosamente
Adquirido, não os deixa cansados.
Essa vegetação converte célula após célula
A minha única riqueza em lixo:
Tudo o que obtêm, obtêm-no por acaso.

E multiplicam-se na ignorância.


Tradução de Maria de Lourdes Guimarães.

Thom Gunn

Thom Gunn nasceu em Gravesend, Kent, Inglaterra, no ano de 1929. Filho de jornalistas, foi abalado pelo suicídio da mãe quando ainda era adolescente. Em 1954, já depois de ter concluído estudos em literatura inglesa, publicou a sua primeira colecção de poemas: Fighting Terms. Muda-se para São Francisco. Homossexual assumido, consumidor de drogas, publica, em 1992, The Man With Night Sweats, dedicado a amigos vítimas de SIDA. É-lhe atribuído o Lenore Marshall Poetry Prize. Reúne a sua obra poética em 1994 e, em 1999, publica um volume de ensaios intitulado The Occasions of Poetry. Faleceu no dia 25 de Abril de 2004, nas sua casa em São Francisco.

ORGANISMOS GENETICAMENTE MODIFICADOS


Na terra onde há muito tragédia e comédia têm palco privilegiado, uma mulher, fugindo das chamas que ameaçavam engolir-lhe a casa, morreu dentro de um carro, abraçada aos seus quatro filhos. Nas imediações, a sua casa foi a única que não ardeu.

Na terra onde o respeito à família é virtude inquestionável, um preto de nome Évora, nascido na Costa do Marfim, filho de pais cabo-verdianos, é campeão mundial na modalidade de triplo salto. Festeja a vitória com a bandeira de Portugal nas mãos.

27.8.07

O BORDERLINE 1

Joaquim Rocha

PASTELARIA AVENIDA

Desfrutava eu o café da manhã em esplanada sita na rua dos cafés de São Martinho do… vocês sabem, quando me surgiu este axiomático pensamento: clássico pede clássico. Não senhores, não estava de O Vermelho e o Negro na mão, pese embora o facto de haver sido atacado por uma inusitada praga de mosquitos intelectuais, daqueles que se nos colam às páginas dos livros para aí, mistério indecifrável, se deixarem esborrachar com a mais ininteligível das canduras. Na verdade, pensava eu na partida das 20:45 quando me ocorreu o tal axioma. Podia ver a jogatina mesmo por aqui, pensei. Mas depois mirei as adolescentes imberbes da mesa do lado, partilhando filmes gravados em telemóveis de última geração, comentados em gargalhadas estridentemente dentífricas. Na esplanada fronteira àquela onde me encontrava, algumas mesas iam sendo ocupadas, muito lentamente, por casais erectos no tronco, mas clara e inequivocamente amolecidos nos gestos. Eles sentados a lerem o jornal, elas agarradas aos suplementos. Têm todas madeixas no cabelo. De vez em quando cumprimentam-se, com aquela pose administrativa de bradar aos céus. Bebem cálices de vinho do… vocês sabem, e fazem-me crer que nem de bermudas largam a pele de gestores, tão bancários que são nos cumprimentos, tão cumpridos que são nas posturas. O clima, pois então, não estava propício a bolas. Como anjinho caindo do céu, recebo mensagem no telemóvel. Era a minha irmã a convidar-me para uma sardinhada lá na terra. Dito e feito. Sardinhas, saladinha de tomate e pepino temperada pelo velho, companhia canina, regado por um fresquíssimo verdinho, como ditava o momento, de uma tal Quinta Villa Beatriz. Maravilha. Tudo corria pelos melhores que até dava para desconfiar. E com razão. Em casa da minha irmã nada de canal desportivo. Conversa puxa conversa, combino com o velho descermos à cidade – cof, cof – para vermos a bola. Nos entretantos, fui-lhe escutando, com a mesma devoção de sempre, histórias antigas, das quais retive, com especial interesse, certa lenda sobre o melhor guarda-redes português de todos os tempos. De seu nome, Carlos Gomes. Parece que este tal Carlos Gomes, perdido de amores por menina de alta patente, teve que se pôr na alheta no intervalo de um jogo, sob pena de ser arrastado (pela PIDE – pudera!) a cumprir pena nos calaboiços do ancient regime. Outros tempos. Chegada a hora, descemos à cidade. Após duas malogradas tentativas, abancámos na clássica Pastelaria Avenida. Fauna cinquentona, a esticar para os sessentas, maioritariamente masculina. Minto. Exclusivamente masculina, à excepção honrosa de duas moçoilas do leste que serviam à mesa águas com gás, imperiais, atractivos. Ouvi dizer que o Pedro Emanuel agrediu o Derlei. Não vi nada, entretido que estava com os olhos de uma das moçoilas do leste. Também me dizem que o João Moutinho ia ficando sem uma perna, por culpa de uma entrada de Bosingwa. Também não vi, vidrado que estava numa tatuagem num braço de uma das moçoilas do leste. E falam-me de uma entrada de Quaresma sobre Miguel Veloso que era para expulsão, agravada de, pelo menos, cinco anos de pena suspensa. Confesso, tanto quanto rogo perdão, por não ter visto, tão concentrados que os meus olhos estavam nos atractivos que as moçoilas do leste serviam à mesa. Enfim, diz-se que o árbitro viu num corte de Polga um passe para o guarda-redes, o qual veio a resultar na falta que permitiu ao Futebol Clube do… vocês sabem, levar de vencida o clássico. Mais uma vez, e para terminar, eu não vi nada, eu nada vi. Estava com as moçoilas do leste na cabeça. Ao que aparenta, o árbitro também.

LENÇO


Foram tantos os pensamentos belos
que passaram pela minha boca
que, se hoje os quiser tornar a dizer,
toda a palavra é pouca.

Foram tantos os sentimentos puros
que passaram pelo meu coração!
Amei toda a gente,
amou-me a solidão.

Foram tantos os pensamentos tristes
que eu vi passar ao longe, de partida!
Depois daquela noite inesperada,
a noite que desceu na tua vida.

A morte quando chega, assim alheia,
de negro nos veste a alma assustada.
Rezemos somente… Só Deus é que sabe.
Nós não sabemos nada.

Alberto de Lacerda
Imagem respigada aqui.

Alberto de Lacerda, de seu nome completo Carlos Alberto Portugal Correia de Lacerda, nasceu em 1928 na Ilha de Moçambique. Veio para Portugal em 1946, a fim de concluir estudos secundários. Co-fundador da revista Távola Redonda (1950), fixa-se em Londres a partir de 1951. Continua a publicar, no entanto, em várias revistas e jornais portugueses, iniciando, ao mesmo tempo, profícua colaboração com órgãos da imprensa britânica, francesa e brasileira. Em 1955, Arthur Waley traduz e prefacia 77 Poems, uma edição bilingue da casa Allen & Unwin (Londres), calorosamente saudada pela crítica local. Só em 1961, com a publicação de Palácio, granjeia algum reconhecimento em Portugal. Em 1972 torna-se professor de poética, na Boston University. Poemas seus estão traduzidos para inglês, francês, alemão, castelhano, bengáli, etc. René Char considerou-o «um dos quinze poetas europeus de voz universal». Faleceu no dia 26 de Agosto de 2007, em Londres. »

26.8.07

EPC (1944-2007)

Intelectual de primeira em país de segunda, escreveu muito sobre tudo. Sobretudo, pouco lemos do que escreveu. Passávamos-lhe os dedos pela tinta jornalística quando líamos jornais, neste país sempre militantemente avesso ao género que pensa. Diz-se que pensou tanto como terá, obliquamente, fornicado. É o que diz, como já alguém disse, quem mais não tem o que dizer. Não lhe apreciámos o tipo mal-com-os-outros-quando-mal-comigo, nem certas farpas, em jeito cata-vento, a fazerem ricochete. Que o elogiem em necrológico aqueles que com ele privaram. Ou, em alternativa, os que lhe meteram veneno na sopa. O lugar está aberto. Venha o senhor que se segue.

In memoriam

Eduardo come no prato
o coelho que come
Eduardo no prado


Algumas referências a EPC no Insónia: O escritor; O parêntesis; Nem de propósito; Jesus!!!; A opacidade das leituras
.

24.8.07

VIVER

À medida que os anos vão passando, penso no que fica para trás como um lugar de paisagens difusas. Mas reparo também nos desleixos, na forma muito natural como fui perdendo o interesse por uma série de “coisas”. Só para dar alguns exemplos mais óbvios, verifico que praticamente deixei de comprar CDs, jornais não leio e já quase não vou ao cinema. Teatro nem se fala e exposições só muito, mesmo muito, de vez em quando, levado pelo acaso e sem qualquer intenção. Concertos? Só os do trabalho e alguns com um s no lugar do c da segunda sílaba. Concluo que a minha vida é uma sucessão de abandonos, e que cada vez gosto mais de viver.

VINGANÇA

Caem-me os olhos, inadvertidamente, numa série (telenovela?) da SIC chamada Vingança. É inevitável que tal aconteça, enquanto o CSI não chega. Na Vingança os actores têm todos uma cara muito séria, passam a vida a chorar, são tão dramáticos nos gestos que chegam a ser cómicos. Nunca houve tanto choro que me desse tanta vontade de rir.

23.8.07

DESCULPA (em sentido figurado)

Não gosto que me peçam desculpas, nunca gostei. Prefiro que se dêem ao trabalho de não repetirem os mesmos erros, as mesmas faltas, os mesmos delitos de sempre. Por isso mesmo, nunca peço desculpa. Desculpa-me, pois, que não te peça desculpa por não aceitar o teu pedido de desculpas.

LIVROS, LIVREIROS, LIVRARIAS

Pela manhã, percorro as ruas de Lisboa onde assentam praça alfarrabistas, antiquários e livrarias. Faço tempo e exercito as pernas, mas quase apodreço ao sol à espera que o comércio abra. São 8:30. Algumas livrarias só abrirão às 10, outras, poucas, madrugam às 9. Há duas que estão de férias, talvez sinal de prosperidade no negócio. Espero, sem saber que o que me espera é um cenário desolador: numa o computador não funciona, o que deixa o cliente sem resposta quanto a vários livros, recentes, mas tão difíceis de encontrar como polvo nas praias de Sines; noutra pergunto por livros de Dalton Trevisan, trazem-me um tal Lauro Trevisan; há ainda uma onde, após laboriosas perscrutações em estantes refundidas, avisto alguns livros muito cá de casa. Por que estão ali aqueles livros? Explicam-me que não se vendem. Nos escaparates reinam livros de auto-ajuda, entre obras de nomes sonantes da TV, políticos, porcarias. Um destes dias, ainda me ponho a escrever um livro de auto-ajuda para os amantes dos livros. Como sobreviver neste cenário de mediocridade? O que seria hoje de um Ulisses, de um Húmus, de um Finisterra? Vem-me à memória conversa recente, sobre romances de muita qualidade mas impublicáveis. Não têm leitores, dizem. Não há leitores, dizem. Haver há, o que não há é quem queira fazer por eles. Haver há, o que não há é vergonha na cara.

BOEMINHA EM TEMPOS DE CÓLERA

Lisboa ainda existe, o difícil é encontrá-la. Parto daqui já tarde, com duas intenções na carteira: ver amigo com quem devo acabar as bainhas de projecto atrasado, dar uma volta pelas livrarias. Termino numa esplanada ventosa, mas com uma irrepreensível vista para o Castelo de São Jorge, a comer um bife mal passado, acompanhado de um tinto argentino com o qual danço o tango, em goles lentos, sem grande dificuldade. A conversa é boa e animada, apesar da agitação nas ruas. Não foi fácil encontrar um lugar mais sossegado, tantos são os turistas que, por esta época, se vêem à luz alfacinha. Durante a deambulação observo um, têmpera nórdica, a urinar no beco de uma obra. A mulher olha-o e ri-se muito. Ele, terminado o serviço, responde-lhe com gargalhadas estridentes. Mijar na rua, em plena cidade, para aquele nórdico, deve ser a aventura de uma vida. Chegam a Portugal e transformam-se em portugueses com uma facilidade dos diabos, o que, no caso, até não é difícil de justificar dada a inexistência de casas de banho públicas onde um homem possa mudar a água aos tremoços. Ainda pela noite dentro, tento visitar lugar de boa memória. Fechado. Atravesso a rua de um Bairro Alto repleto de velhas mercearias e antigas leitarias transformadas em lojas que devem ser o último grito da moda. Não percebo porquê. Muita cor, muita droga nas ruas, sobretudo coca, e pouca vontade de ficar. A sugestão do meu amigo é o Maxime, onde nos aguardam velhos fados na pronúncia castiça de taxistas, reformados, sonhadores, estrelas eternamente adiadas. Compreendo aquela pronúncia dos «viestes» e dos «vistes», do «sentíri» e do «amári», regalo-me com alguns fados bem balanceados, o estilo antiquado da clientela, o ambiente decadente, como as estrelas, de algumas personagens. Fico até com um fado na memória, sobre uma guitarra velhinha que já ninguém quer. Tal guitarra, tal fado. Felicito o intérprete pela interpretação e pergunto-lhe sobre o autor da letra, ao que me responde, após várias hesitações e muitas dúvidas, com um nome que nada me diz: Carlos Conde. Até consigo apaixonar-me por uma fadista, na casa dos cinquentas, que canta como quem apregoa peixe na lota. Só não consigo encaixar a imperial a €2,50 e a conta que se anuncia no parque.

21.8.07

MUDAR O MUNDO

Acabei agora mesmo de mudar o mundo. Se não acreditam, pensem. Também vocês, concretizando esse simples gesto de pensar, mudarão o mundo. Não que o mudem para melhor ou para pior. Apenas o mudam. Para tal, se bem repararmos, basta inclusive escrever a palavra mundo. E se a escrevermos repetidas vezes – mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo, mundo -, então mudaremos o mundo muitas vezes. Tantas quantas as vezes que o escrevemos numa palavra tão simples como esta, a palavra mundo. Pergunto-me quantas vezes será preciso escrever mundo para que o mundo caiba na palavra mundo? Pelo menos duas vezes há-de ser necessário, pois o mundo é sempre o que é e o seu contrário. Julgo que estamos sempre a mudar o mundo, mesmo quando não queremos que ele mude. O que eu queria mesmo era não mudar o mundo, andar nele sem que nem ele nem eu sentíssemos que andamos um sobre o outro. Quando ando sobre o mundo fico com cãibras, crescem-me calos enormes nos dedos dos pés, e abrem-se-me feridas incuráveis. O mesmo sucede ao mundo por andarmos sobre ele. Por isso, o melhor seria não andarmos sobre o mundo. Assim ninguém se feria. Mas já que andamos, é preciso andarmos com um certo cuidado. É preciso andarmos com o cuidado de quem evita ferir alguém e ser ferido por essas feridas. Não há ferida pior para quem fere do que aquela que se sofre como uma espécie de ricochete das feridas imprimidas nos outros. Sabe-se isso quando se anda pelo mundo, quando se olham as paredes do mundo, quando abrimos as janelas do mundo, até quando adormecemos o mundo que trazemos para dentro de nós durante o tempo em que andamos sobre o mundo. Sempre que mudamos o mundo, o mundo muda-nos. Esta correspondência inalienável entre o mundo e as nossas acções é terrivelmente opressora, sobretudo para quem não pretenda mudar. Há pessoas que, talvez temendo as feridas, não gostam de mudar. Preferem manter tudo na mesma, o que não deixa de ser absurdo. É que é impossível manter tudo na mesma, esforçarmo-nos por manter tudo na mesma é já mudar qualquer coisa. Mas há, sem dúvida, indivíduos que não gostam de mudar. Não gostam de mudar o mundo nem gostam de mudar a si próprios o mundo que trazem dentro de si. Compram uma casa para definitivamente habitarem, até ao fim do mundo, essa mesma casa. Assim que vêem uma racha abrir-se na parede lisa, retocam logo a parede para que ela pareça a mesma parede que era quando compraram a casa sem rachas nas paredes. Passam a vida a limpar o pó das estantes, a lavar o chão, a espanejar os cantos onde crescem teias de aranha do tamanho do mundo. As teias de aranha crescem como parte de um mundo que tem esta mania de se estar sempre a mudar, mas há pessoas que detestam isso. Sofrem de aracnofobia. As pessoas que não gostam que o mundo mude padecem de muitas fobias como esta. Por isso tentam manter tudo na mesma, escrevendo o menos possível a palavra mundo, andando muito levemente sobre as calçadas, quase flutuando, nem se dá por elas, são uma lentidão, tudo porque, temendo mudar o mundo, se entregam a esse sofrimento de o mudarem o menos possível. Eu não sei muito bem se sou uma dessas pessoas, mas julgo que não. O que sei é que nunca tive pretensões de mudar o mundo, nunca as tive na exacta medida em que convivo perfeitamente com a inevitabilidade de o estar a mudar a toda a hora. Por exemplo, escrevendo o que até agora escrevi, gerando dentro de mim um forte impulso que resultará no que passarei a escrever já de seguida. Por isso vos confesso que não sei o que significa pretender mudar o mundo, mas sinto que a toda a hora o mundo que há em mim do mundo se me transforma. Esse mundo, que é um pouco como a sombra de que falei, a tal sombra de por onde eu passo que é sempre arenosa, é um mundo terrível. Muito semelhante a um conto de Edgar Allan Poe, esse mundo é uma coisa terrível a degenerar dentro de uma coisa fantástica que, por sua vez, manifesta magnificamente o declínio de outra coisa ainda mais fantástica que nós nunca sabemos bem o que é mas convencemo-nos existir. Talvez no mundo das flores, no canto dos pássaros, talvez na espuma que se forma onde o mar flagela as rochas. Tal como vejo o mundo, a única coisa que eu mudaria nele, se pudesse, era essa mania de o estarem sempre a mudar não querendo mudá-lo. Essa coisa de tudo mudar para que tudo fique na mesma. Digamos que, fosse-me concedido esse poder, e cessaria agora mesmo a mudança do mundo no preciso instante em que a cerveja me escorre pela garganta abaixo. Faria aí uma pausa eterna. E, não sentindo mais nada, senão a cerveja a escorregar garganta abaixo, ordenaria ao mundo que continuasse o resto da sua existência a escrever-se a si próprio (mas que me deixasse, por instantes, na paz de uma cerveja a escorregar goela abaixo).

SOMBRA

A sombra de por onde eu passo é sempre arenosa.
Por mais veloz que o vento seja, nunca a leva.
Apenas a arrasta em pequenos grãos que eu fico à espera de um dia voltar a encontrar.

BLOGOLÊNDEA

Mentes esgrouviadas a escreverem cheias de estilo.

P.S.: O meu estilo é mais estilo que o teu.

DESOBEDIÊNCIA CIVIL

Informa o Público que o PSD recebeu ilegalmente, em 2002, mais de 233 mil euros em donativos indirectos da construtora civil Somague. Cito: «O Tribunal Constitucional deu como cabalmente provado que a Somague, SA pagou uma factura no valor de 233.415 euros por serviços prestados ao PSD e à JSD pela empresa Novodesign, embora afirme "ignorar o que fundamentou tal liberalidade", refere o acórdão, de 27 de Junho passado.» Portugal é isto, é consecutiva e repetidamente isto. É neste Portugal dos arranjinhos, das falcatruas, dos negócios por baixo da mesa, das danças de salão, que os portugueses vão votar de quatro em quatro anos. Quando os exemplos vêm de cima, que podemos esperar dos que estão por baixo? O povo olha e pensa: hei-de ser eu toda a vida a galinha que come com a merda dos galos instalados no alto do poleiro? A arte do desenrasca e o chamado chico-espertismo são atributos bastas vezes reconhecidos nos portugueses, tão reconhecidos quão criticados, censurados e vilipendiados por uma corja de moralistas que, vai-se a ver, limita-se a repetir, debaixo de maquilhagem de marca, os tiques que tanto censura. É o Portugal corrupto que sempre foi. Já Fialho de Almeida falava dele: «tudo em Portugal corre ao dinheiro». Mudam-se os regimes, mantêm-se os vícios. É este país uma escola de agiotas e batoteiros da coisa pública. «Conclui-se disto a deliquescência da vida portuguesa, nos seus duplos aspectos da consciência e da moral» - dizia Fialho e eu relembro. Mas não vale a pena continuar a digitar a mesma tecla, mesmo quando a sátira ao (des)governo de Portugal, vinda a lume, em 1713, pela pena inflamada de Tomás Pinto Brandão, readquire por estes dias uma pertinência que, para mal dos moralistas, parece nunca ter perdido. Este é o bom governo de Portugal, e contra ele pouco há a fazer. Da canalha e dos vendilhões, da corte e dos soberbos fidalgos da politiquice desavergonhada, a gente há muito já nada espera. De quem a gente ainda esperava alguma coisa era desses que andam preocupados com a saúde das galinhas, ceifando campos de milho quando o que era preciso ceifar era campos de hipocrisia, cinismo, usura e dissimulação. Aí sim, é que seria ver a desobediência civil bem empregada, ao serviço de uma limpeza que todos temem porque todos trazem as bainhas salpicadas da mesma porcaria.

ÎLE ST. LOUIS

Farei do silêncio
uma proa de barco
da tua ausência um rio
d’árvores afogadas

Isabel Meyrelles

Isabel Meyrelles nasceu em Matosinhos no ano de 1929. Fixou residência em Paris em 1950, prosseguindo estudos superiores na Université René Descartes – Paris V – Sorbonne e Ecole Nationale Supérieure des Beaux-Arts. Poeta, tradutora, escultora, esteve desde cedo ligada ao movimento surrealista. Publicou o seu primeiro livro de poemas, Em Voz Baixa, decorria o ano de 1951. Amiga de Natália Correia, com quem dirigiu o restaurante O Botequim, foi ainda uma importante divulgadora da poesia portuguesa em França. Em 1976, nas edições Afrodite, edita uma antologia sobre O sexo na moderna ficção científica. Importa salientar que, entre 1962 e 1967, havia sido directora da livraria I’Atome em Paris, especializada em Ficção Científica e Fantástico.

20.8.07

FERNANDO SANTOS

Fernando Santos, treinador do Benfica, foi hoje abortado. Ao que sabemos, sem ter sido referendada a sua continuação à frente do plantel das águias. Em matéria de abortos não deverá haver maior coerência na cabeça do engenheiro, posta hoje a rolar como uma bola nos pés de Mantorras.

MICRO-FICÇÃO ETC. (a propósito do post do Henrique)


1. Todas as palavras são demais para descrever a micro-ficção. (piadinha pretensamente infra-estrutural)

2. O contexto sociológico parece ser o da reacção ao excesso imposto pela lógica consumista das últimas décadas do século XX.

3. Também é bem capaz de representar uma reacção ao individualismo contemporâneo, fundado na possível intuição de que muitas palavras nos separam e de que poucas, ou uma só – silêncio? – nos pode unir.

4. O minimalismo resultante permite a ocupação do espaço raro – o do livro também – por mais gente, opondo-se assim às descrições totalizantes que o pós-modernismo condenou, e à palavra revelada no livro extenso – Bíblia, Microsoft, etc. – da verdade única.

5. A afinidade da micro-ficção com a anedota indicia uma revalorização da palavra falada, a que se perdeu com o fim da tertúlia, e assemelha-se a práticas tribais como o grafito, que na ritualização permitem a busca da identidade pela acção de autor; autor integrado, mais que apocalíptico. A anedota não pretende mudar o mundo (embora o faça) mas a micro-ficção sim, como toda a arte. A anedota serve para nos ajudar a viver com o mundo que temos, a arte serve-se de nós para começarmos a construir o mundo que queremos.


Rui Costa

BRONZE DE PÓ

A propósito deste post, sou reenviado para as férias ora findadas. Pelas praias por onde andei, pelas praias por onde há anos vou andando, é frequente ficar com camadas sucessivas de pó sobre a chapa do carro. Também como aqui se descreve, muitas foram as mensagens com que me deparei ao longo dos dias. A mais engraçada de todas dizia: «Não é sujo. É bronze!» Pois claro. Que outra coisa podia ser o pó nos carros senão bronze?

SEGUNDO LIVRO DE ISHTAR

9

há um horror a morder por dentro dos martelos
os nódulos da nuca
com um afã infravermelho
um infra-horror aflito
que escava galerias na percepção dos ossos

e uma voz
nas inscrições das córneas
onde os animais sem alma se concentram
no escárneo de um pássaro sem asas

na cidade esventrada
todas as janelas abrem para dentro
sobre o vão das vértebras
e toda a roupa seca sobre o coração em chamas

reflectem as areias
uma ideia de povo
como se bastasse o seu lampejo breve
a embalar um cirúrgico silêncio
decisivo



Carlos Nogueira Fino nasceu em Évora a 25 de Novembro de 1950. Residente na Madeira desde 1959, é docente na Universidade da Madeira. Estreou-se na poesia em 1987, com XXIII Poemas de Ilhamar, prémio Leacock 1987. Já em 1996, foi atribuído o prémio cidade do Funchal Edmundo de Bettencourt de poesia ao livro Arco e Promontório. Para mais informações, consultar a página pessoal do autor ».

19.8.07

Mal vae ao piolho se a cabeça se enforca.
Albino Forjaz de Sampaio

18.8.07

CAFÉ CARDEAL

No Café Cardeal a bola começa mais tarde. Por culpa de uma televisão teimosamente avariada perdi os primeiros 10 minutos do Sporting-Académica, provavelmente os únicos em que a Briosa mostrou um futebol de génio. Fui entretendo os nervos com uma tosta mista e uma Sagres preta. Maioritariamente preenchido por homens, este Cardeal ostenta uma estranha conjugação de tons nas paredes. Contei, pelo menos, quatro cores: o chamado azul-cueca, um amarelo desmaiado, verde alface e cor de laranja. Tudo cores condizentes com os gostos da clientela, onde há a destacar duas ou três adolescentes que tão rapidamente entram, para comprar maços de Marlboro Light, como saem. Há ainda um mangas criteriosamente apresentável. As calças verde azeitona, 100% terilene, levam a supor tratar-se de um leão dos sete costados. Engano-me. Reparo na falta de pontaria quando, ao golo do Derlei, salta dali um comentário amargurado à lá lampião. Topo-lhe as riscas rubras na camisa, muito fininhas, condizentes com o tom de pele, exactamente o mesmo que tinge a voz aguardentada. De relógio dourado no punho e anel no mindinho, o mangas vai fazendo as delícias da noite levando para casa vários troféus de bocas foleiras. Ao segundo dos leões o tom azeda. Miro-lhe os pés inquietos e reparo numas curiosas meias turcas onde aparece desenhado um símbolo, desses que podiam figurar numa qualquer camisola desportiva, com as palavras Foot Boll (sic). Entretanto as bocas foleiras deram lugar a um tom azedo. Fala-se do Arneirense, na «cambada de chulos autênticos» que gere os destinos do clube do bairro. Cigarro após cigarro, parece-me ver-lhe inchar no braço a tatuagem com duas espadas cruzadas. Não é efeito das Sagres que fui bebendo. O mangas está mesmo zangado, indignado e ofendido serão os termos, com os dirigentes do Arneirense. Só regressa ao jogo por instantes, quando a Académica marca, para lembrar esses tempos em que a Briosa era uma equipa que jogava de igual para igual. Agora os tempos são outros. Pena que, com os tempos, nada tenha mudado nos árbitros. Ou, pelo menos, no modo como os olhamos. Esses serão sempre maus, péssimos, indescritivelmente incompetentes. Até quando apitam para nos pôr a andar a caminho de casa.

PELA SAÚDE

O desespero obriga-me a sugerir à ASAE - Autoridade de Segurança Alimentar e Económica, o mais recente papão do Portugal chico-esperto, uma singela mas mui nobre e asseada tarefa: fechar a boca aos clientes que falam alto de mais nos cafés, nas pastelarias, nas esplanadas, nos restaurantes e afins. E, já agora, obrigar a radicais mudanças de guarda-roupa na série Morangos com Açúcar. Ele anda aí uma praga de miúdas giras com ar de solteironas pindéricas que um tipo chega a casa com os olhos a doer de tanta fluorescência.

?


17.8.07

VOLTA A PORTUGAL V

Subir a encosta montado numa mota, descer o rio numa jangada de pedra, dar a volta a Portugal em bicicleta.
Evitar a caça à rola.

VOLTA A PORTUGAL IV

Por que chamarão humanas às relações? Elas são tudo menos humanas. Elas são animais, instintivas, prudentemente ensaiadas, canibalescas. Pelo menos tanto quanto a arte de pedalar. Ou a caça à rola. Temo pela rola quando o ciclista se aproxima. Nada posso fazer. Não tenho pedalada para ele, ela não me quer por perto. Ao estriar dos tiros, tentarei fazer o relato da corrida em meia dúzia de lugares comuns. Tal qual o Marco Chagas.

VOLTA A PORTUGAL III

Sempre que o pelotão passava, eu pensava: quantas formigas atropeladas para isto? Quantas pernas rapadas para isto? Pomadinha no cu, massagens, selins almofadados. Formigas assassinadas, caídas na teia dos ra(p)tos. Quando for grande quero ter uma camisola amarela e correr pela Sicasal - Indústria e Comércio de Carnes, SA. Até lá, permanecerei escravo do amor.

VOLTA A PORTUGAL II

Beijinhos e champanhe para o camisola amarela. Na plateia, alguns homens olham as meninas atrás do camisola amarela como se elas fossem objectos. Adereços que estão para ali a fingir que dão beijinhos ao camisola amarela. Este só pensa no troféu, chegar a casa e tomar um banho, subir uma montanha. Na plateia ninguém pensa que aquela camisola está suada. As pessoas preferem invejar o efeito dos adereços. Detesto as pessoas por constatar tais preferências. Também não aprecio muito as mulheres que se deixam ser adereços.

VOLTA A PORTUGAL

Tenho amigos que se sentem bem no lugar do pendura. Outros perguntam-me se podem ir no banco de trás. Dos que têm veículo próprio, há aqueles que nos seguem e os que preferem ser seguidos. Eu gosto mesmo é de andar de bicicleta.

16.8.07

INGMAR BERGMAN 1918-2007


Despeço-me hoje de Bergman, enquanto ouço The Seventh Seal na voz de um Scott Walker ainda muito easy listening, a entrar na década de 1970, fazendo o seu caminho na direcção da esquizofrenia. Sou bergmaniano dos pés à cabeça – escrevi aqui. E é verdade. Por vezes, pode não parecer. Mas é. Ao contrário da canção de Scott Walker, inspirada num dos mais tremendos filmes do realizador sueco, o cinema de Bergman nunca primou pela facilidade. Aliás, a música de Scott Walker também acabou por desembocar em mares dificilmente navegáveis. No cinema de Bergman há, contudo, uma pausa que nos impele à reflexão sem nos asfixiar. Por vezes tendeu para um registo mais ligeiro, ainda que muito raramente. Mesmo nesses momentos, é uma fusão entre a imagem e a palavra o que acontece. Por isso Bergman é poético, por isso o seu cinema é poesia, por isso ele é um dos grandes poetas do nosso tempo. Os seus temas são os temas poéticos por excelência: Eros e Thanatos, o tempo, Deus, a religião e essa coisa, que soa já tão antiquado referir, do sentido da vida. A propósito recupero um post que editei a 19 de Janeiro de 2005 – não recordo a data em que o escrevi pela primeira vez. É sobre Lágrimas e Suspiros:

Ernst Ingmar Bergman (Suécia, 1918) é um conceito que significa cinema. Em 1972 filmou aquele que é, quanto a mim, o filme mais paradigmático da sua obra: Lágrimas e Suspiros. É arriscado dizê-lo, talvez um pouco pretensioso, dada a proficuidade da filmografia bergmaniana. Contudo, não é isso que importa aqui reflectir. O que importa aqui reflectir é o vermelho, a poética desse vermelho vivo, cor de sangue, que aparece em evidência nesse filme. Cor de sangue e de fogo. Logo no início do filme, Anna (Kari Sylwan), a empregada, ateia o lume. Mas também cor de vida, do mistério da vida. Cor ambivalente, portanto. Tal como o filme de Bergman. As mais íntimas paixões humanas entram aqui em conflito, num ambiente frio e distante como só pode ser o dos solares aristocráticos. Agnes (Harriet Andersson, sublime) padece de doença muito grave, está moribunda. Aguarda que a morte lhe leve o sofrimento, a dor - palavra sublinhada, também no início do filme, quando Agnes se levanta da cama e escreve algumas frases no seu diário. Observamos toda a sua agonia. Acompanhamos as suas duas irmãs, Karin (Ingrid Thulin) e Maria (Liv Ullmann), nessa espera. E somos levados a sofrer tanto ou mais que elas o sofrimento do padecimento da irmã. O vermelho de Lágrimas e Suspiros é um vermelho forte, feminino. Lembro-me de Sylvia Plath: «I am a garden of black and red agonies. I drink them, / Hating myself, hating and fearing». Lá estão o vermelho e o negro, o sangue e o luto. Lá está o jardim onde Agnes recorda a mãe passeando, na busca de paz e de solidão. Lá está a agonia incomensurável de Agnes... e o ódio e o medo. Lá está a vida, «o peso do tempo». O ódio de Karin, personagem terrível, incómoda, porque tão cruelmente real. Um ódio-próprio tanto quanto é ódio aos outros, à vida. Karin vive distante dos afectos, não suporta o calor do toque humano. Agnes, numa das memórias que tem da mãe, recorda-nos que é preciso tocar para estar próximo. Karin mantém-se distante. Evita Fredrik, o marido. Evita Maria. «Não quero que sejas amável para comigo», diz-lhe. Mutila-se, sente prazer na dor, a dor é o seu refúgio. Maria é o medo, um claro medo da morte, do sofrimento. Refugia-se no amante, o médico de Agnes. Joakim, marido de Maria, tenta suicidar-se quando se apercebe da infidelidade da mulher que, numa daquelas cenas que só Ingmar Bergman sabe filmar, é desvelada pelo amante que lhe lê o rosto defronte a um espelho: indiferente, egoísta, indolente, impaciente... Mas repleta de medo, acrescento eu, um terrível medo de acabar só. Personagens patológicas, tão patológicas quão profundamente humanas. Resta-nos a pobre Anna, a empregada, fiel a Agnes antes e depois da morte. Reza pela filha, que Deus lhe levou para o céu. Num plano esquivo, fugaz, apercebemo-nos do berço mantido como se tudo ainda fosse vida. Porém, vazio. Quando Agnes morre, um padre vem a casa benzê-la. Pede a Deus que o seu sofrimento sirva para que o sentido das nossas vidas nos seja mostrado. O sentido dos relógios, do tiquetaquear dos relógios, que vão aparecendo e que se vão ouvindo ao longo do filme. Se o tempo tivesse cor, seria aquele vermelho do filme de Ingmar Bergman. Lágrimas e suspiros. Poderá alguém dizer que isto não é poesia?

CRITICAR

Criticar é fácil, diz-se. Porém, não há crítica mais fácil que esta. Talvez a opção pela facilidade seja mais forte que outra opção qualquer, seja ela qual for. O que me intriga é que sendo tão fácil criticar, exista tanta gente acrítica neste mundo. Se calhar criticar não é assim tão fácil. Criticar tem os seus custos. Tornar-se criticável é um deles.

A M(EN)INA

A menina inglesa que desapareceu no Algarve continua desaparecida. A imprensa insiste em fazer disso um achado. Horas e mais horas de notícias inexistentes, factos improvisados, eventualidades e suposições. Chamam circo mediático a esta coisa que, cá pelos meus olhos, se assemelha à mais ordinária das pornografias. A imprensa portuguesa prefere o caso da menina desapreciada aos casos que envolvem outros géneros de promiscuidade, desses que tocam os mais altos patrocínios da pútrida nação. Orwell já tinha avisado, não podemos confiar em nada do que sai nos jornais. O que era previsível mas indesejável é o estado de subjugação e subserviência a que chegou o jornalismo em Portugal, transformando potenciais génios da comunicação em autênticos lacaios do poder económico. No regresso, é bom constatar que nem todos andam a dormir. Pena que sejam tão poucos. A ler: este, este e este.

AS FÉRIAS


Entre leituras, banhos, pescarias e piqueniques, entre o campo e a praia, a terra e o mar, algumas pessoas: as que falam alto, sujam tudo, não respeitam nada nem ninguém, conduzem com uma mão no volante e outra no cigarro, buzinam, ultrapassam, estacionam onde calha, como calha. As pessoas das filas, impacientes, bronzeadas de impaciência. Mas também as outras, as pessoas gentis. Há três anos estacionado na mesma casa, em tempo de férias sou consecutivamente brindado com vinho, batata, salsa, tomates, pimentos, pepinos, courgetes, amendoins, espinafres, ovos, pão, melancias, meloas, peras, cebolas, batata doce e sei lá mais o quê. Temos duas hortas só para nós, dois porcos nas traseiras da casa, aos quais damos os restos. Nada se perde, tudo se transforma. Adormecemos a ouvir grilos, rãs, cigarras, passareiro. Amiúde, visitamos ou somos visitados por vacas, uma ou outra mula, cavalos. Está-se definitivamente melhor no meio das melodias do campo. Às vozes das pessoas apressadas, irritadas ou simplesmente histéricas de excitação, prefiro os grilos. Prefiro os grilos, mesmo quando nos invadem a casa e impedem-nos o sono.

PRIMEIRO ESBOÇO DE UMA MÃO

Agitemos aqui A MÃO, a mão do Homem!

1

A mão é um dos animais do homem: sempre ao alcance do braço que sem cessar a alcança, o seu morcego diurno.
Em repouso aqui ou acolá, pomba ou rolinha, muitas vezes então reunida à sua companheira.

Depois, forte, ágil, esvoaça em volta. Esconde a sua fronte, passa diante dos seus olhos.
Prestigiosamente representando as Euménides.

2

Ah! É também para o homem como que a sua barca com amarra.
Puxando como ela até ao limite da corda; baloiçando o corpo sobre um e outro pé; inquieta e teimosa como um cavalo novo.
Quando a vaga se agita, fazendo o sinal de nem bem nem mal.

3

É uma folha mas terrível, pregnante e carnuda.
É a mais sensitiva das palmas e o caranguejo dos coqueiros.
Vejam a direita a correr aqui por esta página.

Eis a parte do corpo melhor articulada.
Há um boi no homem, até aos braços. Depois, a partir dos pulsos - onde as articulações se desmultiplicam - dois caranguejos.

4

O homem tem o seu botão electro-magnético. Depois o seu celeiro, como uma abadia reconvertida. Depois os seus moinhos, o seu telégrafo óptico.
De lá saem por vezes andorinhas.

O homem tem as suas bielas, as suas charruas. E a sua mão para os trabalhos de rigor.
Pá e pinça, croque, remo.
Tenaz carnuda, torno.
Quando uma faz de torno, a outra faz de tenaz.
É também esta cadela que por tudo e por nada se deita de costas para nos mostrar o ventre: palma oferecida, a mão estendida.
Servindo para agarrar ou para dar, a mão para dar ou agarrar.

5

Ao mesmo tempo marioneta e cavalo de lavoura.

Ah! É também a andorinha desse cavalo de lavoura. Pica no prato como o pássaro na bosta.

6

A mão é um dos animais do homem; muitas vezes o último a deixar de mexer.

Ferida por vezes, arrastando pelo papel como um membro retesado uma caneta enxertada que aí deixa o seu rasto.
Esgotada, ela pára.

Arrepanhando então o lençol ou amarfanhando o papel, como um pássaro que morre crispado na poeira, - e aí se abandona enfim.

Tradução de Manuel Gusmão.


Francis Ponge nasceu a 27 de Março de 1899 em Montpellier. Militante comunista, delegado sindical, membro da Resistência, publicou o seu primeiro livro, Douze petits écrits, em 1926. Só em 1942 aparecerá o segundo, intitulado Le Parti pris dês choses. Inicialmente influenciado pelo surrealismo, distancia-se destes optando por uma linha mais materialista e sensualista. Professor após a guerra, escreveu poemas, quase sempre em prosa, e ensaios, assim como poemas-ensaio, tendo sido posteriormente reconhecido o seu trabalho com a atribuição do Grande Prémio de Poesia da Academia Francesa, em 1984. Faleceu a 6 de Agosto de 1988.