“Cidadelas fechadas, impenetráveis, quase assustadoras”
Josiane Girou
Sempre gostei de deambular nas ruas das cidades, procurando descobrir os mistérios que guardam as suas casas, os seus habitantes, mesmo quando se trata de cidades que conheço bem. Os espaços de algumas cidades povoam a minha memória em rastros dos meus passos deambulando por ruas impenetráveis, por vezes assustadoras, onde vislumbrei uma janela diferente ou procurei um atalho, através de um mapa na minha mão, quando em viagem à descoberta de novos caminhos. Conheço cidades com ruas secundárias e habitações silenciosas, como as cidades alemãs e as cidades no Canadá; cidades caóticas e agitadas, como o Cairo ou Roma, com trânsito infernal e habitantes desorganizados; cidades que são portos, pontos de passagem junto a um rio ou mar, como Lisboa onde habito há vinte anos, ou Amesterdão com as suas janelas abertas, cidade composta por canais e pontes; ou ainda Halifax no Canadá, situada numa península do outro lado do Atlântico, que se chama Nova Scotia, onde vivi durante seis meses. Halifax é um porto com uma ponte semelhante à ponte vermelha sobre o Tejo, só que pintada de verde. Existem também cidades que não são reais, como Veneza, com ruas de água e pontes magníficas, onde se mergulha numa espécie de sonho acordado, com o perigo de nos envolvermos numa passividade estranha, onde sentimos que podemos ficar ali eternamente num estado contemplativo, numa espécie de purgatório; ou como Évora, bela e amarga em simultâneo, cheirando a terra molhada, o ossuário trágico de Portugal, com paredes brancas na fachada e interiores sombrios. Évora, aparentemente branca, é uma cidade negra e muralhada, onde as pedras funcionam como uma espécie de mortalha para os seus habitantes, almas penadas e em suspensão num centro histórico, deambulando num labirinto formado por ruas concêntricas demasiado estreitas e calcetadas, em torno de um templo romano que já foi um matadouro, junto de um antigo palácio da inquisição, transformado posteriormente num instituto universitário de jesuítas, que originou a actual universidade, situado mesmo ao lado da magnifica Catedral romanico-gótica, com as suas imponentes torres e pináculos, representando o único arcebispado nas terras do além Tejo.
A curiosidade em sentir uma cidade, percorrendo as suas ruas com os meus pés ficou-me das calçadas de Évora, que repetidamente me deram cabo das solas dos sapatos, onde o branco impenetrável das paredes nas casas e muros altos me levaram a imaginar o interior escondido e habitado no seu coração, que raramente se prolonga para a rua; por vezes abre-se uma janela e alguém espreita ou as crianças brincam no Verão fora de portas, acompanhando o som dos pássaros ao entardecer, junto às portadas das janelas entreabertas e vigilantes; na moraria de Évora, bairro entre muralhas fernandinas, outrora povoado por mouros, ao fim da tarde na adolescência percorri calçadas labirínticas, para me encontrar e visitar as minhas amigas mais antigas, que habitavam aquelas ruas estreitas da cidade. Eu partia do centro mais inveterado, vivia dentro da muralha romana, descia as arcadas da Rua D. Isabel, passando pela porta da muralha, que sempre me assustou, não sei porquê, ali debaixo ainda existe um pedaço de estrada romana, com pedras mais largas e escorregadias. Fora desta porta descia em direcção à rua de Aviz ou virava à esquerda, para a Rua do Menino Jesus, em direcção à travessa do Harpa, penetrando assim no interior das ruas estreitas do bairro, onde os carros quase não conseguem circular. No verão os miúdos jogavam à bola naquelas calçadas, as janelas mostravam velhos televisores a preto e branco com o telejornal e ao fundo da rua do menino Jesus, na esquina com a Rua das Fontes havia uma casa de prostitutas, alguma delas estavam à janela a ver quem passava. O som dos pássaros ao entardecer provoca-me sempre uma enorme nostalgia, remete-me para aquele labirinto de pedras escorregadias, a cidade onde o tempo foi suspenso em forma de pedra e cal, com morbidez. Os meus passos nas calçadas de Évora é algo que oiço actualmente muito ao longe, a saudade é um sentimento português que se entranha nos ossos e Évora tem lá aquela capela, a dos ossos; certo é que amamos mais quando estamos distantes, aprende-se muito com as saudades; a saudade é um luto, um cortinado roxo que nos cobre o coração, como cantam os açorianos, que vivem rodeados de água; Évora é o esqueleto da cultura portuguesa, um local onde o tempo foi suspenso em ruas estreitas, concêntricas e entre muralhas em forma de ossuário; e na entrada da célebre capela está escrito o seu cartão de visita: nós ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos.
Maria João