30.9.05
quando eu tinha 48 anos e ela 68
uma boa idade para morrer claro
que tive de ser eu a matá-la
48 anos é uma boa idade
para matar.
Carlos Alberto Machado nasceu em Lisboa, em 18 de Novembro de 1954. É Licenciado em Antropologia pela FCSH/UNL e Mestre em Sociologia da Cultura pelo ISCTE. Tem-se dedicado desde 1969 à actividade teatral (actor, produtor) e à concepção e gestão de eventos culturais. Nos últimos anos dedica-se à escrita, investigação e docência universitária (Escola Superior de Teatro e Cinema e Universidade de Évora). Algumas obras publicadas: Ensaio – Teatro da Cornucópia: As Regras do Jogo (Prefácio de Alexandre Melo), Lisboa, frenesi, 1999; Cuidar dos Mortos, Sintra, Instituto de Sintra, 1999.Teatro – Transportes & Mudanças. Três Peças em Um Acto, Prefácio de Eugénia Vasques, Lisboa, frenesi, 2000. Poesia – Mundo de Aventuras, Évora, atægina, 2000; Ventilador, Espinho, Elefante Editores, 2000; A Realidade Inclinada, Lisboa, Averno, 2003; Talismã, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004. Organizou ainda obras sobre a história do teatro em Portugal. (a partir daqui)
Ut pictura poesis # 21 – Natureza viva
Foto respigada aqui:
Clara Peeters ( 1594-1657), Natureza morta de gato e peixe
Óleo s/tela , 13 1/2 x 18 1/2
A PEÇA
A menina à porta do teatro
Não faz parte da peça. Pelo
menos até ao momento
em que começo a imaginar-lhe
um outro vestido. Ela vê o
aproximar-me da porta e
quase olha para o escuro
da sala: Percebe-se que
acabo de fazer uma escolha.
Ela agora vai esquecer-se de
mim, inventar um homem que
entra numa sala como a fugir
da luz.
E no entanto é isto que fizemos
sempre.
Rui Costa
28.9.05
MARCO
o marco do correio
há muitos anos recebe
as escassas cartas
que mudam a vida.
Há muito que está
fora de serviço
mas a companhia
não informou ninguém.
Pedro Mexia nasceu em Lisboa, em 1972. Licenciado em Direito pela Universidade Católica, publicou o seu primeiro livro de poesia no início da década de 1990 com o nome de Pedro Bigotte Chorão. Tendo “renegado” essas primeiras aventuras literárias, considera-se hoje Duplo Império (1999), em edição de autor, a sua primeira recolha de poemas. Coordenador de uma Antologia da novíssima poesia portuguesa, crítico literário no jornal Diário de Notícias, Pedro Mexia tem apurado a sua arte de cronista em várias outras publicações escritas. Figura mediática da denominada nova poesia portuguesa, foi um dos elementos do painel de comentadores do programa televisivo O Eixo do Mal.
Fragmento # 16 – As Janelas
27.9.05
pernas e dois braços, dois olhos,
tem nariz e boca e come, vive
numa casa, espreita pelas janelas,
por vezes sai à rua, sozinho ou
acompanhado, a falar, apanha
chuva, liga a televisão, sabe onde
fica a França, lembra-se quando
era pequenino, inclusive
teve mãe e pai. É
impressionante o quanto um poeta
se pode assemelhar
às pessoas! A última vez que
falei com ele mandou-me um abraço.
valter hugo mãe nasceu em 1971 na cidade angolana Henrique de Carvalho. Passou a infância em Paços de Ferreira e vive em Vila do Conde. Licenciou-se em Direito e é pós-graduado em Literatura Portuguesa Moderna e Contemporânea. Publicou nove livros de poesia, entre os quais três minutos antes de a maré encher, a cobrição das filhas, útero e o resto da minha alegria. Recebeu o Prémio de Poesia Almeida Garrett da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto com o livro egon schiele auto-retrato de dupla encarnação. Foi, com Jorge Reis-Sá, responsável pelas Quasi Edições e director da Revista Apeadeiro. (a partir de nota biográfica inclusa em o nosso reino, Temas e Debates, primeiro romance de valter hugo mãe)
FAMALICÃO, O MUNDO
Famalicão é comercial e chama-se
“Loucura Center”. A Casa das Artes é
difiícil de encontrar porque não é no centro,
é num sítio mais para o lado da calma-paz
que é por causa das árvores.
As árvores dão silêncio e algumas também
dão pássaros. Os pássaros dão silêncio
arregalando os bicos e a agargantar as canções.
Eu hoje vou ver um concerto de música
cigana. Os ciganos estão fora do centro
ou então o centro é que está fora deles.
Eu estou contente por estar a jantar em
Famalicão. Mas nunca mais fui feliz
num restaurante porque um dia fui
empregado de mesa num restaurante em
Londres e fui explorado. O dono ficava com
as gorjetas para pagar os salários e o dono
queria que eu fosse manager para engraçar
um pouco mais com as Clientes-Das-Grandes-Gorjetas.
Mas isto é um poema (mau, que seja) e nele
até os restaurantes dão música. É a música
do mundo. (Pois). Agora chegou a conta e o dono
do restaurante ama a mousse. E eu
penso: quando um restaurante é todos os
restaurantes tu não estás sozinho e tens muito
que fazer. Tens que comer, que dar a comer.
Na música do mundo.
Na música.
Famalicão, 24 de Setembro de 2005
26.9.05
Poema sumário das tabernas de Lisboa
Rua se São Marçal n.º 56, rua de Campo de
Ourique n.º 39, rua de São Bento n.º
432, rua da Cruz dos Poiais n.º 25ª. Calçada
do Combro n.º 38B, rua da Atalaia n.º 13,
rua de São Miguel n.º 20, rua da
Rosa n.º 123. Travessa do Conde de Soure n.º 7,
travessa dos Remolares n.º 21, rua do
Jardim do Tabaco n.º 3, rua da Regueira n.º 40,
rua das Escolas Gerais n.º 126, rua de Santa
Catarina n.º 28. Largo do Chafariz de Dentro n.º 23,
rua Sampaio Bruno n.º 25, travessa de São
José n.º 27, beco dos Toucinheiros n.º 12-A. Rua
Cidade de Rabat n.º 9, travessa do Alcaide
N.º 15-B, calçada de São Vicente n.º 12,
rua das Flores n.º 6, travessa da Espera n.º 54.
Praça das Flores n.º 5.
Manuel de Freitas nasceu em 1972, no Vale de Santarém, tendo publicado o seu primeiro livro de poemas em 2000: Todos Contentes e Eu Também, Campo das Letras. Em 1999 havia já publicado A Noite dos Espelhos, na editora frenesi, um breve ensaio sobre a poesia de Al Berto. Poeta de invulgar proficuidade, escreve regularmente sobre livros no semanário Expresso e tem colaboração dispersa em várias revistas literárias portuguesas. É um dos directores da revista Telhados de Vidro, publicação da editora Averno que o próprio dirige. Em 2002 organizou a antologia Poetas sem Qualidades, obra breve que acabaria por contribuir para uma acesa polémica sobre os trilhos da poesia portuguesa surgida na década de 1990.
um espelho do tempo em que vivemos
Concerto de Homeagem a Aristides de Sousa Mendes
(estreia absoluta)
de Sérgio Azevedo
Coro de Câmara da Universidade de Lisboa
Maestro José Robert
Participação do Coro da Universidade de Lisboa
Comunicações do Doutor António Vasconcelos Tavares, Pró-Reitor da UL e de Sérgio Azevedo
ENTRADA LIVRE : 2 de Outubro, 18 horas
Salão Nobre da Reitoria da Universidade de Lisboa
Ainda que eu nunca me tivesse esquecido daqueles momentos em frente do consulado português em Bayonne, apenas tive conhecimento do que tinha de facto acontecido ali em Maio de 1986. Foi então que, através de um artigo no New York Times e troca de correspondência com John Paul Abranches, eu soube que aqueles vistos portugueses, que provavelmente salvaram as nossas vidas, tinham sido emitidos contra as ordens do governo de Salazar, e apenas porque de Sousa Mendes, o cônsul português em Bordeaux, tinha vindo a Bayonne naquele dia e ordenado a uma equipa relutante que o ajudasse a emitir vistos para todos os refugiados que estavam à frente do consulado. Também só soube nesse dia que de Sousa Mendes tinha pagado bem caro por um acto tão belo e altruísta. Como escrevi na introdução de um livro que lhe dediquei, “Eu nunca o vi, nem ele a mim.” Os meus pais morreram ambos totalmente inconscientes do que ele sacrificara por eles, e provavelmente nunca terão chegado a ouvir sequer o nome dele.
Há algum tempo, John Paul Abranches pediu-me que explicasse como o ter recebido um visto em 1940 afectou a minha vida. Consegui responder-lhe em muito poucas palavras. “Tenho agora oitenta e um anos, sou Professor Emeritus no M.I.T., casado com uma mulher maravilhosa há cinquenta anos, pai de dois filhos que são para mim fonte de grande alegria e orgulho. Tenho tido uma vida muito rica. Se não fosse o feito dele (de Sousa Mendes), eu teria muito provavelmente morrido miseravelmente num campo de concentração antes de chegar sequer aos dezassete.”
Professor Emeritus – Dept. de Linguística e Filosofia
M.I.T.( Massachusetts Institute of Tecnologie, Cambrige, EUA)
Sobre o MIT: http://www.mit.edu
Sobre o professor: http://web.mit.edu/philos/www/bromberger.html
CASA DA MÚSICA
Mas sei que hei-de ir lá um dia, desafiador de eternidades, quando já a casa for um monte de destroços salpicado pelo mijo dos cães do futuro.
Nessa altura, hei-de dizer:
Companhia do Eu
Novela Nasal – 11º Episódio
FIM
Antes de Christo
Para o Joaquim Rocha.
Fotografia publicada no nº1 da revista La Révolution Surréaliste,
Reconstituição presente no Museu Boijmans Van Beuningen em Roterdão,
25.9.05
UM HOMEM INCLINA-SE
E estende lentamente sobre ele com a língua
Um líquido rosado
O corpo fica todo húmido brilhante e incendiado
Com os dentes faz logo aqui e acolá
O signo do amor
Pequenos pontos brancos que adornam a pele escura
A mulher fecha os olhos dilata as narinas
Às vezes para seu desgosto um suspiro entreabre os seus lábios.
Versão possível de HMBF.
Emilio Adolfo Westphalen nasceu em 1911 no Peru. Poeta e ensaísta, estudou no Colégio Alemão de Lima, tendo ingressado posteriormente na Faculdade de Letras da Universidade de San Marcos. Obteve a Licenciatura em 1932. Passado um ano publicou o seu primeiro livro: Las ínsulas extrañas, ao qual se seguiu, em 1935, Abolición de la muerte. É um dos mais importantes poetas surrealistas peruanos. Dirigiu as revistas Las Moradas, Revista Peruana de Cultura e Amaru. O domínio de várias línguas (inglês, alemão, francês, italiano e português) permitiu que trabalhasse como tradutor para as Nações Unidas. Ocupou o cargo de Agregado Cultural da Embaixada Peruana em Roma. Em 1977 obteve o Premio Nacional de Literatura. É hoje considerado um dos maiores poetas peruanos do séc. XX, a par de César Vallejo, José María Eguren e Martín Adán.
24.9.05
Inventar-me vivo de vez em quando.
400 milhões de pessoas carecem das calorias, proteínas, vitaminas e minerais necessários para manter o corpo e o espírito num estado saudável...
Milhões de seres humanos padecem de fome permanente...
Outros sofrem de deficiências causadas por carências e de infecções a que poderiam resistir com uma alimentação melhor...
Morrem por ano 14 milhões de crianças com menos de 5 anos devido aos efeitos combinados de subnutrição e infecções...
Em algumas regiões, metade das crianças tem ao nascer uma esperança de vida inferior a 5 anos...
Os teus problemas são um insulto para quem não tem que comer. Eu estou-me nas tintas para todo esse mistifório de meninos mimados pela sorte. Quero lá saber do depois do depois. Quero é saber do agora, aqui, quero saber de problemas concretos, daqueles que se resolvem com as mãos, com os pés, no estômago.
Novela Nasal – 10º Episódio
FEIRA DO MONTIJO
Como? Isaura? Como? Vinte e dois.
Nasci num dia de apanha de azeitonas,
num estábulo velho. Esta cicatriz
foi na minha primeira visita
a Évora, a casa da minha avó,
levei com uma escada de alumínio
na testa. Não rias, mas pulsa
quando me venho. Como?
Sim, se calhar foi quando me deu
para começar a sonhar c’a cidade,
onde as fotografias ficam prontas
em meia-hora. Ou achas
que a vida está para demoras?
Como? Comes-me ou não?
António Cabrita nasceu no Pragal a 16 de Janeiro de 1959. Em 1979 publicou Oblíqua Visão de um Cristal num Gomo de Laranja ou Perene o Sangue que Arrebata os Anjos Vingadores. Parte considerável da sua obra poética está reunida em Arte Negra, livro de 2000 publicado pela Editora Fenda. Crítico de cinema e crítico literário no Expresso, António Cabrita é também editor das edições Íman, director da revista Construções Portuárias, autor de contos e argumentos para cinema.
23.9.05
Post
COMPREI O JORNAL
NÃO PORQUE FOSSE LÊ-LO
MAS PORQUE ME AGRADOU
O PENSAMENTO
DE PODER NÃO O ABRIR
Rui Costa
Fragmento # 15 – A casa escreve descrevendo-me
Nunca sei onde estão as chaves de casa, antes de sair procuro-as sempre, ou estão na cozinha, ou estão na sala, ou no quarto, ou na marquise. As chaves obrigam-me a percorrer todo o espaço antes de sair. A casa diz: tens de ver onde deixas as coisas, se está tudo bem, não sais daqui enquanto não percorreres todo o meu interior, vê lá se não tens lixo para deitar fora. Vai dar uma volta, mas vê lá como é que vais.
Nunca sei onde estão os óculos, se não os deixo no nariz ou ao lado do computador, repete-se o ritual da ronda à casa, à casa de banho, à cozinha, ao quarto, à sala. Perco-me dentro de casa, fumo cigarros, as paredes amarelecem absorvendo o fumo, sinto-me sufocada por estas paredes. A casa esconde-me as coisas, as canetas, os lápis, os cadernos, os sapatos. A casa apoderou-se de mim há muito tempo, ela diz-me: aqui estás bem, podes dormir podes sonhar podes pensar à vontade, as minhas paredes mostram-te o que fazes, os teus gestos, as tuas cores, as texturas, os amigos, a lua, as tuas paisagens na parede, os que passaram por cá deixaram rastros também, estão comigo, vivos ou mortos, os que aqui dormiram. Aqui estás tu e perdes-te aqui dentro, por isso se escondem os objectos, é para acordares, saíres de ti, vai dar uma volta, areja a cabeça, vai ver outras coisas fora das minhas paredes.
DE ANTÓNIO PEDRO RIBEIRO
O poeta libertino passeia-se por braga
os pêlos do nariz entram na "brasileira"
e lêem eça de qúeiroz
as mamas discutem teatro
as mulheres bonitas são verdes
as sapatarias devoram virgens crucificadas
a trepar pelas arcadas
as mini-saias já não se passeiam pelo "astoria"
assassinado pela merda híbrida
viva a velha "brasileira" que se mantém no sítio!
e os empregados rabugentos
e os clientes petrificados a vê-las passar
escândalo!
aumenta a prostituição na cidade
a junta de freguesia de s.vítor e a polícia coligaram-se
para combater o flagelo
cambeses pertence a barcelos
as meninas perdem-se no mundo dos saldos
nas traseiras do hospital de s.marcos
marcos e zapata a conspirar
desfile de guerrilheiros na avenida da liberdade
nas barbas do papa e do arcebispo primaz
um doido para a mudança!
um doido sem vereadores
um doido que escreve á mesa da loucura
que se ridiculariza a si mesmo e ao mundo
que escuta a conversa dos anciãos
é bom morrer em braga!- diz o cartaz
talvez por isso eu esteja aqui
é bom morrer em braga-diz o cartaz
talvez por isso eu esteja aqui
a morrer e a renascer várias vezes
na "brasileira" à mesa dos papéis
e o blog que não bloga
e a empregada de mesa sorridente
e a clientela que envelhece
ando com falta de speed na tola
ao balcão os empregados conferenciam
sobre o tempo que faz e os tempos que passam
estou doido e não sirvo para o mundo!
estou doido e crio mundos
estou doido e assim quero ficar
morte ao mundo e aos seus criadores!
morte ao poeta e aos seus tumores!
ela comprou um jaguar-diz o ancião.
ela comprou um avião-diz o caviar.
ela perdeu o telemóvel e morreu ao terceiro dia
ela...
na minha cidade
parece um tanto ou quanto surrealista.
A. Pedro Ribeiro
Braga, "A Brasileira", 18.8.2005.
Rui Costa
À LUZ DE DUAS LEITORAS DO INSÓNIA
Do exercício de olhar e ver, seccionar o que se pretende, como quem espreita o mundo por uma objectiva registando apenas parte da realidade, depende a minha limitada visão. É da luz que uso, de que disponho, que depende a eliminação de parte da realidade.
E vejo o que quero ver...e ignoro o que no momento quero ignorar, escolhendo assim o terreno onde habito.
Certo é que essa luz raramente é ondulatória e tem fotões. Também é por mim assumido que nem sempre consigo controlar a disposição e consequentemente a luz que escolho para um dia, e tantas vezes me arrasto para fora da cama de manhã com os olhos poluídos e os pés torturados de mil sapatos. Outros dias há em que tudo é novo, só o belo me acompanha.
Facto é que aquela lâmpada fundida na casa de banho me proporcionou um banho tacteado à luz da vela.
Erro meu, no dia seguinte colocar uma lâmpada cem vezes mais potente do que aquela pequena chama. Repentinamente, os azulejos ainda ontem impecavelmente alvos, tomaram um tom pastel.
Substituí outros talentos por um pano e detergente, pensando que esse fenómeno da causa e do efeito não é de todo científico, e que provavelmente uma lâmpada de mil velas teria provocado um tecto igualmente amarelado... que tais preocupações de brancura seriam diferentes para gerações iluminadas à luz do gasómetro.
A penumbra liberta os sentidos oprimidos pela exuberância da visão. Qualquer maçã tem um cheiro mais intenso no escuro e é na escuridão que muita realidade se reordena e claramente se revela. Certa que o bruxulear da chama de ontem me mostrou o arco íris pousado nas bolas de sabão, incomparavelmente mais nítido que o dia hoje, iluminado a sol aberto e não menos cogitação.
Aurora Silva / Teresa Tudela
22.9.05
MANIFESTO
Eu gosto muito dos senhores que moram no meu prédio.
O prédio é alto e tem elevadores. Assim é melhor porque ninguém
tem que carregar ninguém às costas. Quer dizer, as pessoas
também podiam ir pelo seu próprio pé mas isso era se não houvesse
pessoas no meu prédio que precisam de favores. Precisam,
e depois pagam com as costas na subida-Ouvi dizer que há
pessoas no meu prédio que têm em casa florestas normandas (eu
cá só ervas daninhas!). É que o elevador do meu prédio avaria
muitas vezes. Avaria, e depois os senhores dos andares de cima
precisam de carregadores. As pessoas dos andares de baixo
começaram a nascer todos os dias com as costas mais
largas para poderem carregar melhor, e agora o elevador
avaria quase sempre. A minha sorte é eles saberem que
eu só tenho em casa ervas daninhas. Nunca me pedem para
os carregar nem sequer estacionam as suas árvores novas
a barrar-me a entrada de casa: têm medo de ser contaminados.
Agora são os senhores dos andares de cima que me pedem
favores: se posso mudar de casa, de prédio, que até me
oferecem uma casa com florestas normandas lá dentro.
Mas eu não quero. Estou bem aqui. As minhas ervas
chegam já ao primeiro andar. Às vezes subo por elas
e convidam-me para jantar. Falamos e rimos e quando
nos calamos o silêncio à volta é maior.
Até agora cresceram sempre frescas pelo seu pé acima.
Rui Costa
decadência e devassidão. Tudo
é possível por ser interdito.
Homens de fogo, mulheres de lama.
Saíram do mundo para a minha pasta
forrada a papel de fantasia.
Usam ligueiros, pénis
e soutiens. Máscaras e luvas.
Há zonas no corpo enegrecidas
pelo chicote. Amam-se, fornicam.
Exibem o ódio, a quase demência
de um mundo maldito.
Isabel de Sá nasceu em 1951 em Esmoriz. É licenciada em Artes Plásticas/Pintura pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Realiza exposições de pintura desde 1977. Exerce a profissão de professora. Publicou o seu primeiro livro de poemas, Esquizo Frenia, em 1979 na editora & etc. Recentemente, as Quasi Edições reuniram toda a sua obra poética publicada num volume intitulado Repetir o Poema. Sobre esta obra escreveu António Guerreiro no Actual (17-Setembro-2005), suplemento do jornal Expresso, o seguinte: «A característica mais evidente desta poesia é a criação de um universo fechado no seu complexo de símbolos e imagens: ela define-se, antes de mais, por um determinado imaginário, isto é, por um conjunto de imagens que formam um arquivo pessoal, um léxico e um discurso não partilháveis.»
21.9.05
A NUVEM PRATEADA DAS PESSOAS GRAVES
Nem sempre se deve desconfiar das pessoas
graves, aquelas que caminham com o pescoço inclinado para baixo,
os olhos delas a tocar pela primeira vez o caminho que os pés confirmarão
depois.
Às vezes elas vêem o céu do outro lado do caminho que é o que lhes fica por baixo dos pés e por isso do outro lado do mundo.
O outro lado do mundo das pessoas graves parece portanto um sítio longe dos pés e mais longe ainda das mãos
que também caem nos dias em que o ar pode ser mais pesado e os ossos
se enchem de uma substância morna que não se sabe bem o que é.
Na gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, com que nos são alheias quando as olhamos de frente rumo ao lado útil do caminho que escolhemos, essas pessoas arrastam uma nuvem prateada que a cada passo larga uma imagem daquilo que foram ou das pessoas que amaram.
Essas imagens podem desaparecer para sempre se forem pisadas quando caem no chão. A gravidade dos pés e da cabeça, e também dos olhos, destas pessoas, é, por isso, uma subtil forma de cuidado.
In “A Nuvem Prateada das Pessoas Graves”, 2005, Quasi
Rui Costa
O SOL DA TARDE
Agora alugam-se quer este quer o do lado
para escritórios comerciais. A casa toda tornou-se
escritórios de intermediários, e de comerciantes, e Sociedades.
Ah este quarto, não é nada estranho.
Perto da porta por aqui estava o sofá,
e diante dele um tapete turco;
ao pé a prateleira com duas jarras amarelas.
À direita; não, em frente, um armário com espelho.
Ao meio a sua mesa de escrever;
e três grandes cadeiras de vime.
Ao lado da janela estava a cama
onde nos amámos tantas vezes.
Estarão ainda os coitados nalgum lugar.
Ao lado da janela estava a cama;
o sol da tarde chegava-lhe até metade.
…De tarde quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana só… Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.
Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis.
ESTÃO BONS?
Práqui.
Ou práqui: msgtorc@hotmail.com
20.9.05
Jogo de amigos (anterior ao sudoku)
x – dois.
y – não não agora não foi.
y – dois.
x – não.
y – só sei que hoje já vão oito.
x – dois.
y – tá quieto.
x –
y – dois, já vão seis.
x – aqui não.
nota: Com dois dedos, aflorar os testículos do companheiro.
Para que ele note que foi apanhado, dizer “dois”.
Nuno Moura
TEATRO DO CAMPO ALEGRE
“A história do pastor”
A seguir a história do pastor.
O pastor vivia em Goinge, floresta normanda.
Era filho dos senhores da Escânia
hoje conhecedores de ciências.
Aos vinte anos sabia já
distinguir as ervas
curava com esmero os golpes do gado.
Entretinha-se com o queixo.
E todos os arroios
o conheciam de sol a sol.
Aos vinte e seis anos
casou com Dourada, a rapariga débil.
Aos trinta
viu realizar-se um sonho antigo:
receber os primos no pátio.
Abriu então cervejas
fritou amêndoas
falou pela primeira vez de nostalgia.
Daniel Maia-Pinto Rodrigues
Rui Costa
CÁ E LÁ
mas o problema é que não somos sempre os mesmos.
Muitos morreram já, outros mudam de sexo,
mudam de barba de cara língua ou idade.
Há anos preparamos (há séculos) os papéis,
a tirada de fundo ou apenas
‘senhor, a mesa está posta’ e nada mais.
Há milénios esperamos que alguém
nos aclame no proscénio com aplausos
ou mesmo com algum assobio, não importa,
desde que nos reconforte um nous sommes là.
Infelizmente não pensamos em francês e assim
ficamos sempre no cá e nunca no lá.
Eugenio Montale nasceu em Génova, no dia 12 de Outubro. Com uma boa voz de barítono, estudou canto, pensando numa eventual carreira operática. Nunca chegou a frequentar a Universidade, adquirindo a sua cultura de forma auto-didáctica. Em 1916 publicou o seu primeiro artigo e o primeiro poema que incluirá em Ossi de seppia (1925). Chamado para a Escola de Infantaria de Parma, foi depois mobilizado para a frente de Vallarsa. Publicou poemas numa revista de Turim, a Primo Tempo. Em 1923 abandona a ideia de uma carreira como cantor de ópera. Dois anos depois assina o manifesto anti-fascista de Benedetto Croce e publica o seu primeiro livro: Ossi di seppia. Em 1926 trava conhecimento com Umberto Saba e começa a colaborar na famosa revista florentina Solaria. Transfere-se para Florença, arranjando emprego na casa editora Bemporad. Em 1931 ganhou o prémio dell’Antico Fattore, como poemas posteriormente publicados (1932) sob o título La casa dei doganieri e altri versi. Em 1938, dispensado do seu cargo de director do Gabinete Vieusseux (biblioteca), em virtude de não estar inscrito no Partido Nacional Fascista, iniciou uma intensa actividade como articulista e tradutor. Depois do final da guerra, fundou o bissemanário Il Mondo. Começou a desenhar e a pintar, transferindo-se para Milão. Ganha vários prémios literários e viaja muito pelo estrangeiro. Em 1975 foi-lhe atribuído o Prémio Nobel da Literatura. Faleceu no dia 12 de Setembro de 1981.
Ut pictura poesis # 13 – Biblioteca amarela
1 9 8 7
Em 1987 apareceu tudo isto:
- 1979-1987 (Doce);
- Os Dias da Madredeus (Madredeus);
- Coisas que fascinam (Mler If Dada);
- Free Pop (Pop dell`Arte);
- Prima Donna (Radar Kadafi);
- O Elevador da Glória (Rádio Macau);
- Mar d`Outubro (Sétima Legião)
e o grande Kiss me Kiss me Kiss me (The Cure):
19.9.05
BALADA DO PAÍS QUE DÓI
o barco vem
português vai
português vem
o corpo cai
o corpo dói
português vai
português cai
o barco vai
o barco vem
português vai
português vem
o país cai
o país dói
o tempo vai
o tempo dói
português cai
português vai
português sai
português dói
CALADOS
Bateu à porta o agente
mostrou o cartão e disse
fomos informados.
Ana Hatherly nasceu no Porto em 1929. Poeta, romancista, ensaísta e tradutora, iniciou a carreira literária em 1958. A si se deve aquele que é considerado o primeiro poema concreto publicado em Portugal (poema que apareceu no Diário de Notícias de 17-9-1959). Tendo sido um dos principais elementos do grupo de Poesia Experimental nos anos 60 e 70, o seu trabalho está representado nas mais importantes Antologias e Histórias da Literatura Contemporânea de Portugal, Brasil, Espanha, Inglaterra, Alemanha, Estados Unidos, Dinamarca, Suécia, Holanda, e República Checa. É também autora de várias traduções para português de obras inglesas, francesas, italianas e espanholas. Durante as últimas duas décadas, tem-se dedicado ao estudo da literatura portuguesa e espanhola do Siglo d'Oro, tendo publicado vários ensaios e comunicações sobre o tema em várias das mais conceituadas publicações literárias de Portugal e do estrangeiro. Licenciada pela Universidade de Lisboa e Doutorada em Literaturas Hispânicas pela Universidade de Berkeley (U.S.A.), é actualmente Professora Catedrática de Literatura Portuguesa na Universidade Nova de Lisboa e Presidente do Instituto de Estudos Portugueses da mesma Universidade. É ainda membro da Direcção do PEN Club, de que já foi Presidente. *
TRIPS À MODA DO PORTO I (Sonata)
Afanancei-lhe o gatanhunço
de mãozinha leve o petróleo labarava
a modos de vergunhácia.
Carmélia entrincheirada no pódio
da virtudôncia a macacar o juízo
cá do mantras. já expectava.
doidivas da romantécia
por entre nuvens a galope, tá-se a ouvir,
nadenhas e mais vamos namorandar,
gosto-te bitaites-punga e coisa do género.
Dei-lhe chofagem de po-ema mais
po-ema mais po-ema, libertanou-se
a posta do pecado foi um atavias
tanglónico.
o mantras satisfeitou-se
e Carmélia entrou na universidade
com as letras todas.
Rui Costa
18.9.05
GERADOR DE TEXTO
ó resplandescentes águas ó espelho lembradiço
das mercadorias
um telhão que se translucida e acasala rectilíneo
ó argolada da cidra ó embrulhador franjado do estalo
onde a radiodifusão das receptividades brilha derramando-se
sobre o afixo
que na dulcineia do acirrante deísmo engravida
lúbrico de companheirismo e sintetização
a tua platónica negrura volumosa
a tua minguante toma de folheio
a tua celebridade exótica sempre eruptiva
.
Por ti eu corto a preexistente antiguidade de um regresso
que tremula e provém a sua coincidência
que se barateia e rastilha ao teu magnete de microscópio
ou é goiabada das tuas imediações de novidade
.
Se remasco algum engate não o emboto
porque quero oferecer-te a supersticiosidade de um petróleo interplanetário
que chie e escarna nas tuas produtividades inexplicáveis
e seja um tom ou um milhafre um contragolpe concernente
.
Ofereço-te esta estupidificante aeronáutica esta toxicidade de carnagem
para que expludas a enchente fortidão
de um satanismo de plenas hospedarias
porque é por ti que espalho é por ti que malfaço
porque espalho o traquejo resfriador do teu janelo
.
.
A. Ares Redutível
[vi]
quem presta alguma atenção
à sintaxe das coisas
nunca há-de beijar-te por inteiro;
por inteiro ensandecer
enquanto a Primavera está no mundo
o meu sangue aprova,
e beijos são melhor fado
que sabedoria
senhora eu juro por toda a flor. Não chores
- o melhor movimento do meu cérebro vale menos que
o teu palpitar de pálpebras que diz
somos um para o outro: então
ri, reclinada nos meus braços
que a vida não é um parágrafo
E a morte julgo nenhum parêntesis
e. e. cummings, Edward Estlin Cummings, nasceu no dia 14 de Outubro, em Cambridge, Massachusetts. Entre 1911 e 1915 estudou na Harvard University, especializando-se em literatura grega. Em 1917 aparecem os primeiros versos de e. e. cummings na antologia Eight Harvard Poets. Entretanto os Estados Unidos entram na I Grande Guerra e o poeta participa como voluntário no corpo de ambulâncias norte-americano. Preso, por falsa acusação de traição, durante três meses, no campo de concentração de La Ferté-Macé, em Orne, é libertado em Dezembro. Em 1918 casa com Elaine Orr, de quem se divorciou pouco tempo depois. Após a guerra, estabelece-se em França, aonde regressa nos anos 20 e 30, décadas em que estende a sua criatividade aos domínios da pintura e do desenho, do bailado e do teatro, e em que estabelece um contacto directo com o vanguardismo literário europeu. Em 1923 publica o seu primeiro livro de poemas: Tulips and Chimneys. Em 1924 intala-se em Greenwich Village, vivendo da sua poesia e pintura, de leituras e conferências, e da ajuda familiar. Em 1927 casa com Anne Barton. Em 1932 conhece Marion Morehouse, que será a sua terceira e definitiva mulher. Em 1935 publica, a expensas da sua mãe, no thanks, livro recusado por treze editoras, a quem o poeta dedica o volume. A 3 de Setembro de 1962, em New Hampshire, é vitimado mortalmente por um ataque cardíaco.
17.9.05
A minha infância é a felicidade da minha vida
a minha melhor bala encovando-me. O acabado
vira lentamente os cantos amarelados coxeando. É isto - o meu
Fim... jazendo na pedra, espalhando um fedor nas minhas costas - deixando a felicidade da minha vida, que é a minha infância.
Ermenonville 1959
Tradução de Anabela Moura.
(a partir de versão encontrada aqui)
16.9.05
JESUS NUM BAR
e o vício do vinagre
te afeiçoou aos bares
onde homem te fizeste
com a ruga celeste
de chegares sempre tarde.
O encontro seria
a noite em que nasceras,
borboleta de açúcar
no palato das feras.
Entanto do Natal
despetalando vamos
o malmequer de rum.
E existes porque faltas
ó tanto de nenhum!
Ut pictura poesis # 9– Apocalipse
El Greco, Abertura do quinto selo do Apocalipse, 1608
Óleo s/tela 224.5,5x192,8cm
Sobre o pintor:
15.9.05
Desabafo à pressa
O CARRINHO DE MÃO VERMELHO
de
um carrinho de mão
vermelho
reluzente de gotas de
chuva
ao lado das galinhas
brancas.