GRANDE GAITA
Acorrentaram-me ao pau e chicotearam-me
a alma com terços de pedrinhas em plástico
fabricados numa exploração infantil algures na China.
Elas sabem-no. Elas já são por si uma caixa registadora
dum negócio obscuro cheiroso a tráfego de influências
e armas do reino à deriva entre as brumas
do estado falsificando o direito.
A alcateia das irmãs não me perdoavam andar
pelo santuário a desafiar a calmaria dos olhares
e dos desejos sexoados, dos enxames de peregrinos
segurando uma vela de cera numa mão
e com os outros cinco dedos acendendo
a que crescia debaixo das calças.
Os peregrinos rezam para os prazeres da carne
não se sobreporem à fé e ao terço. E lá vão percorrer
a Via Sacra sem o desejo se evaporar no espaço
indo entre uma oliveira e uma nuvem.
Cruzámo-nos de novo, agora em Valinhos, e ele
escorregou de novo no olhar e foi bater uma
punheta entre o perfume dos eucaliptos. Eu vi
o descuido. Que culpa tive ò rançosas?
Para estas mulherzinhas que passam o tempo em luta
com o demónio dentro de si, o pecador fui eu.
E cercando-me de ladainhas marianas, atiraram-me
picos e pingos de sangue do corpo do filho do outro
que também é pai delas. Ao benzerem-se,
anestesiaram o meu olhar. Ficando presa fácil,
entreguei-me ao gang de pinguins amestrados.
E na cilada acorrentaram-me ao pau do desejo
de despir a batina do padre, ressuscitando o desejo
da carne num sonífero cântico, minutos antes,
na catedral, e passar-lhe a piça pela água benta
e depois – Olé Maria!
Ninguém precisaria saber. Seria mais um segredo
em Fátima. Talvez um dia viesse a figurar no museu
uma pia baptismal com dois pénis lá dentro
em cera com o título: Alegre Aparição.
Dissolvido o estrume levantam âncora, rumo
ao oceânico eco das mentiras crónicas.
O altar está às escuras. Quem quiser luz,
coloca uma moeda na caixa de esmolas e
os holofotes farão de si uma vidente. Vinda a luz
chega a imagem da senhora numa das suas múltiplas
roupagens tipo barbi, onde se travesti de remédios,
em dores, dos prazeres e da graça, ou luzia
maminha de fora, ou do leite. E mazinha surge
com facas espetadas em seu peito, amedrontando
criancinhas ou com anjos decapitados ao redor
da sua coroa, mais mórbida que uma sadomasoquista.
Como numa sexshop, o negócio é deixarem
uma moeda numa qualquer ranhura de esmolas
para espreitar o show, com velas ou luzes
eléctricas. O cheiro do horror de pensar que as velas
de cera reciclada já serviram para a reciclagem de milhões
de promessas de entes queridos no crematório numa
algazarra de arrependimentos inúteis, dá vómitos.
Também só vai ao espectáculo quem quer.
E entram em cena as mamas, os braços, as pernas,
pés e crânios em cera. Só o Anjo de Portugal é de pedra.
Uma pedra rolando no precipício do divino. Avançam
os exércitos agora e sempre. Galinhas, carneiros
embalsamados depois da Lúcia em cera, encarcerada
num aquário de vidro, donde sempre disse
o que lhe permitiram que dissesse. As palavras
presas ao texto gravado na cassete em pescadinha
de rabo na boca, lembra uma louca moribunda
numa rua qualquer sem saída. É uma trovoada
de revolta de quem vê as moedas lançadas à terra
pelo povo, eternamente doente na sua anorexia
dos seus saberes mais profundos. E dói ver
tanta miséria por ali, por aí.
E se já queimaram nas fogueiras homens,
mulheres e crianças, é porque a atracção pelo fogo
lhes está nas células do sangue. Venha São João,
as alcachofras e as danças, numa noite num quarto
dum seminário onde numa labareda arde um grito
infantil violado que mais tarde, desculpará cristo
por nada poder fazer para o acudir porque
estando presente na cruz pregada na parede,
sob a cama, mas, nada pôde ver pois era noite
e a lua estava encadeada de néons
e o quarto entregue à escuridão.
São dolorosas visões, pesadelos em espiral
quase no fim. Restam-me três
bombons para a morte ferida.
A manta na cama é falsa como a língua padreca.
Como são falsos os lençóis, as fronhas, os terços,
as panelas, os ramos de flores. E dizem que por ali
descansaram os corpos do Francisco, da Jacinta,
da Lúcia e dos pais e mais... e a multidão acredita.
O povo sempre adorou teatro. E o Vaticano sempre
soube levar à cena grandes manipulações de palco,
onde o espectador faz parte integrante da companhia.
Mas, quando uma ovelha se afasta do guião do rebanho
na pastagem e parte à descoberta dos bastidores,
corre o risco de ser encontrada, enforcada – dizem
por engano – com uma corda do cenário aparece
parecia um lobo! Dizem.
Parecia um ovni pingando pus
por cima das pegadas dos dinossauros
deixando um rasto de luz roxa no firmamento
e um carneiro nasceu com duas cabeças ontem.
No terreiro desse tempo esbocei
um ramo de pensamentos em cada mão
e enviei um sms a um desconhecido.
Quero o direito de abandonar este corpo na sucata
quando entender e não ficar à mercê da ditadura
da democrática sopita deslavada de cotovelinhos
empacotada por vilões. Quero mais sal e comer
à hora que quiser. Quero a folha de hortelã
da eutanásia no meu prato, porque eu não sou
do vosso amarrotado mundo,
da vossa ordem brutal e sanguinária.
Quem quiser ajoelhar para broxar, ajoelhe.
E ajoelhe quem quiser rezar. Mas deixem andar
e voar quem quiser. Deixem as barcas atravessarem
os céus e os pássaros construírem os ninhos
na sombra do beijo do trovão, na galáxia
enamorada por sonhos desvairados de doçura,
longe dos tormentos e das infecções da alma.
Sem tempo de se lançarem no espaço, já vi
línguas de ajoelhados serem crucificadas
por não se reverem na cruz e na sua lei.
Como gostava de poder escolher
meu amigo
entre o silêncio e a solidão.
Jorge Aguiar Oliveira