30.9.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /15


Jorge Aguiar Oliveira

APRENDER A CONTAR #14

PARÁBOLA DO PALÁCIO

Naquele dia, o Imperador Amarelo mostrou o seu palácio ao poeta. Foram deixando para trás, num longo desfile, os primeiros terraços ocidentais que, como degraus de um quase inabarcável anfiteatro, descem até um paraíso ou jardim cujos espelhos de metal e cujas intricadas cercas de zimbro prefiguravam já o labirinto. Alegremente nele se deixaram perder, a princípio como se condescendessem com um jogo e depois não sem inquietação, porque as suas rectas avenidas apresentam uma curvatura muito suave mas contínua e secretamente eram círculos. Por volta da meia-noite, a observação dos planetas e o oportuno sacrifício de uma tartaruga permitiram-lhes libertar-se dessa região que parecia enfeitiçada, mas não da sensação de se encontrarem perdidos, que os acompanhou até ao fim. Percorreram depois antecâmaras e pátios e bibliotecas e uma sala hexagonal com uma clepsidra, e uma manhã, do alto de uma torre, divisaram um homem de pedra, que logo perderam de vista para sempre. Muitos resplandecentes rios atravessaram em canoas de sândalo, ou um único rio muitas vezes. O séquito imperial passava e a gente prosternava-se, mas um dia arribaram a uma ilha onde alguém não se prosternou, por não ter visto nunca o Filho do Céu, e o verdugo teve de o decapitar. Negras cabeleiras e negras danças e complicadas máscaras de oiro viram com indiferença os seus olhos; o real confundia-se com o sonhado, ou melhor, o real era uma das configurações do sonho. Parecia impossível que a terra fosse outra coisa que não jardins, águas, arquitecturas e formas de esplendor. De cem em cem passos uma torre cortava o ar; para os olhos a cor era idêntica, mas a primeira de todas era amarela e a última escarlate, tão delicadas eram as gradações e tão comprida era a série.
Foi ao pé da penúltima torre que o poeta (como que alheado dos espectáculos que constituíam uma maravilha para todos) recitou a breve composição que hoje vinculamos indissoluvelmente ao seu nome e que, segundo repetem os historiadores mais elegantes, lhe proporcionou a imortalidade e a morte. O texto perdeu-se; há quem pretenda que constava de um verso; outros, de uma só palavra. O que é certo, o que é incrível, é que no poema estava inteiro e minucioso o palácio enorme, com cada ilustre porcelana e cada desenho em cada porcelana e as penumbras e as luzes dos crepúsculos e cada instante desditoso ou feliz das gloriosas dinastias de mortais, de deuses e de dragões que nele habitaram desde o interminável passado. Todos ficaram calados, mas o Imperador exclamou: Arrebataste-me o palácio. E a espada de ferro do verdugo cegou a vida do poeta.
Outros referem a história de outra maneira. No mundo não pode haver duas coisas iguais; bastou (dizem-nos) que o poeta pronunciasse o poema para que desaparecesse o palácio, como que abolido e fulminado pela última sílaba. Tais lendas, claro está, não passam de ficções literárias. O poeta era escravo do Imperador e morreu como tal; a sua composição caiu no esquecimento porque merecia o esquecimento, e os seus descendentes procuram ainda — e não a hão-de encontrar — a palavra do universo.

Jorge Luis Borges (1899-1986), Poemas Escolhidos, trad. Ruy Belo, Publicações Dom Quixote, pp. 71-74, 2.ª edição, Agosto de 1985.

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TEMPO PERDIDO

— vilão da vila, vilão da vila,
quem lhe fez figa?

espumando como
um cachorro louco,
a tarde morre muito
cedo no céu de amianto.

— vilão da vila, vilão da vila,
quem lhe fez figa?

e as primeiras estrelas de hoje
se perdem entre as nuvens negras,
pálidas de sono.
……………

a noite vai ser bem fria.



Andityas Soares de Moura nasceu em 1979, na cidade de Barbacena, Estado de Minas Gerais (Brasil). É poeta, tradutor, ensaísta e professor universitário, além de mestre em Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Publicou o Jornal Cultural Cânticos do Albatroz entre 1995 e 1997, ano da estreia em livro com a colectânea de poemas Ofuscações. Tradutor de poetas como Rosalía de Castro, Juan Gelman, Joan Brossa, entre outros, organizou uma edição da Lírica de Luís de Camões e colaborou com várias revistas - entre as quais a portuguesa Saudade, onde fomos copiar o poema aqui reproduzido.

29.9.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /14


Jorge Aguiar Oliveira

ENVELHECER

Num artigo que publiquei no número 4 da revista Callema, subordinado ao tema “Reescrever a Juventude, Aquela e Agora”, não foi por acaso que comecei por falar de “um jovem nascido há praticamente 100 anos, um jovem cineasta ainda no activo”, de seu nome Manoel de Oliveira. Fi-lo não por concordar com a ideia feita de que a juventude está no espírito e na atitude, como se alguma coisa fosse possível para lá do corpo, mas por estar convencido de que a oposição da juventude à velhice é geralmente enganadora. Quando recentemente se falava de novíssimos poetas portugueses, também não resisti a comentar com um amigo que os novíssimos, por vezes, parecem bastante velhos. Aliás, basta olhar para os jotinhas que ambicionam fazer carreira política. Não obstante, a velhice está na passagem do tempo pelo corpo. Se olharmos apenas para o aspecto físico, dizemos que determinada pessoa tem esta ou aquela idade com um grau de falibilidade reduzido. Mas se não tivermos o aspecto físico à mão dos olhos, por exemplo no que lemos nos weblogs, em mensagens trocadas pela Internet, etc., a possibilidade de falharmos a idade de alguém aumenta vertiginosamente. Comigo acontece invariavelmente julgarem-me mais velho. Mas por que sucede tal fenómeno? Talvez por termos ideias preconceituosas quanto ao tipo de discurso que se adequa a esta ou àquela idade. São esses mesmos preconceitos que nos levam a dizer que este indivíduo, apesar dos seus 100 anos, tem um “espírito” jovem. Mas não pode esse espírito, no sentido de inteligência, engenho, atitude, ser considerado próprio da velhice? Claro que pode. Pensei nisto quando vi recentemente o editor Vítor Silva Tavares e o poeta Alberto Pimenta no Câmara Clara. É próprio da velhice ter mais anos, o que significa apenas ter vivido mais; as expectativas que se criam quanto à experiência vivida podem muitas vezes sair defraudadas, mas a verdade é que a idade proporciona saber. Por isso, parece-me fazer todo o sentido esta pergunta: não é muito mais interessante um velho ou velha luminoso e sábio que um jovem azeiteiro e trinca-espinhas que só parasita o mundo? Claro que sim. Embora a inversa também seja válida. Isto é, um jovem luminoso e inteligente será sempre mais interessante que um velho labrego e parasita. Embora isto dependa muito dos interesses de cada um. Contudo, onde pretendo chegar é à dificuldade do convívio com a erosão física. O nosso mundo vive demasiado, e isso não é de hoje, da imagem, do culto do corpo, da capacidade de dar resposta física às exigências do olhar. Quem faz do corpo profissão viverá de forma muito mais acentuada a angústia da degradação, da ruína, do envelhecimento físico. Daí as plásticas, os tratamentos, as limpezas, os implantes, por vezes com resultados macabros. No tempo de Machado de Assis, uma rapariga da minha idade – tenho 33 anos – dizia-se velha. A velhice é um estado bonito, li numa caixa de comentários. Bem, eu não vi beleza alguma nos lares de idosos que visitei até hoje. E não me refiro às condições dos lares. Refiro-me ao estado de vulnerabilidade que ataca a grande maioria das pessoas idosas, refiro-me ao convívio permanente com a doença, refiro-me às algálias, às fraldas, à baba, aos tremores, ao cansaço, aos corpos entrevados e caquécticos, refiro-me a tudo aquilo que se opõe a uma vida feliz tal como a entendo, uma vida hedonista no sentido mais puro do termo. Mas nada de confusões. Não é a velhice ou a juventude que são belas em si, é o que possa haver de belo na velhice e na juventude. A velhice não é nem deixa de ser um estado belo. Ela é bela quando significa sabedoria e serenidade, quando nos ensina uma forma de convivência com o tempo que está para lá das urgências ridículas com que vamos ocupando as horas quotidianas, quando ainda nos permite viver. Claro está que estes ensinamentos podem ser adoptados e praticados na juventude. São eles que conferem beleza, não às idades, mas às pessoas. Porque tudo depende das pessoas, na medida em que estas possam e saibam não estar dependentes da idade. As senhoras das imagens são, de baixo para cima, Brigitte Bardot, Elizabeth Taylor e Sophia Loren. Perdoem-me as leitoras por ter preferido senhoras a senhores.

APRENDER A CONTAR #13

PRÉGAR

...Que desgraça! Parte uma perna num urinol.
Quem será ele? Um nervoso, com certeza um nervoso. Talvez um tímido. Atravessa-o então um pensamento. Mal a gente dá um passo em falso, fica logo com uma perna partida.
E isto, note-se, é apenas o encadear da desgraça...
Ele bem préga, mas a plataforma onde se encontra deixa de o suster e desmorona-se.
Quer continuar a prégar, mas cai e arrancam-no da água como peixe e vendem-no ao quilo, triste fim para um prégador.
Não desiste de prégar, mas põem-no a cozer num tacho; o ruído do tacho adormece-o, distraindo-o de quaisquer projectos. E o mundo, que pretendia pô-lo a marcar passo, ri-se, formando-se ali uma assembleia que se felicita.
Mas ei-lo, não abatido de todo, que esboça um gesto vago, como quem vai expulsar a desgraça do peito, ao mesmo tempo que lentamente começa a cozer. E depois disso já não parece lá muito bom para a prégação, não, já não parece lá muito bom.

Henri Michaux (1899-1984), O Retiro pelo Risco, trad. Júlio Henriques, Fenda, p. 26, Fevereiro de 1999.

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CAIXAS DE FÓSFOROS

Colecção Estrelas da Sétima Arte



l Anthony Hopkins

Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
o sopro doente das marés.
O que nos resta vale os dias?

Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.


2 Gene Hackman

Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
flores murchas, outras secas,
gases em jarras de plástico.

Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.


3 August Strindberg

Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
o lento dilúvio dos crimes
dos espelhos da ambição.

Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.


4 Brian Dennehy

Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
rezas peçonhentas ao céu
ao ser que vai chegar.

Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.


5 Paul Newman

Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
animais electrónicos
os beijos nos vídeos.

Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.


6 Rainer Werner Fassbinder


Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
línguas venenosas cuspindo:
as filosofias estão desertas.

Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.



Jorge Aguiar Oliveira
in Homens sem Soutien, Vila Real, 1994, ed. Autor.

28.9.08

BOA TARDE

Serge Gainsbourg e Jane Birkin.

A VORAGEM DO TEMPO


O desaparecimento de Paul Newman fez-me pensar nas musas da adolescência, actrizes com lugar reservado na memória por razões que não têm que ver necessariamente com a qualidade dos filmes em que participaram. Tem muito mais que ver com a qualidade das suas performances individuais. Lembrei-me da Kim Basinger de Nine 1/2 Weeks (1986), filme que vi no cinema de Rio Maior, sentado ao lado de uma mãe levada por engano, numa sala onde era frequente ouvirem-se bocas foleiras a cada cena mais acalorada. Curiosamente não me recordo de ter escutado uma única boca, foleira ou não, durante a exibição daquele filme. Outra moçoila de quem me lembrei foi a "desaparecida" Carré Otis de Wild Orchid (1990), mais uma vez com Mickey Rourke no papel de homem de sorte. Maria Schneider foi uma das tais que me proporcionou mementos de fantasiosa felicidade quando a vi contracenar com Marlon Brando em Ultimo tango a Parigi (1972). Sharon Stone é um lugar comum nos rapazes da minha geração, não só pela flexibilidade plástica demonstrada em Basic Instinct (1992) mas também pelo mais desconhecido, ainda que não menos entusiasmante, Sangre y arena (1989). Já não sou do tempo de Brigitte Bardot e Sophia Loren, mas gosto muito. Também não desgostei de Jane Birkin em Je t'aime moi non plus (1976), do genial Serge Gainsbourg (escandaloso, o duelo filmado com a filha Charlotte no filme Charlotte for Ever (1986)). Meg Ryan e Elisabeth Shue são dois fetiches muito cá de casa por razões que uma réstia de vergonha na cara me impede de revelar. Mas esta conversa toda serve apenas para recordar a esquecida Kathleen Turner, cujo tom de voz me colava ao ecrã como… sei lá como! Quem se lembrar dela em Crimes of Passion (1984) sabe do que estou a falar, principalmente no que concerne ao tom de voz. Aliás, nesse filme entrava um outro actor injustamente esquecido de seu nome Anthony Perkins. China Blue, metade da personagem interpretada por Kathleen, é um falso mito que seria pertinente recordar neste tempo de putas finas e doutores Jekyll. Veio-me ainda à memória Giulia e Giulia (1987), desta feita com o cantor Sting no papel de homem de sorte, onde Kathleen Turner encarnava uma Júlia assaltada, mais uma vez, embora involuntariamente, pela dupla personalidade. É a imagem de Kathleen Turner, esse ícone sexual da minha adolescência, que se reproduz ao alto. Dir-me-ão que o tempo não perdoa. Tudo dependerá das memórias que acompanharem a inexorável voragem do tempo.

APRENDER A CONTAR #12

O ALMOFADÃO DE PENAS

A sua lua-de-mel foi um longo arrepio. Loura, angelical e tímida, o duro carácter do seu marido gelou as suas sonhadas criancices de noiva. Ela amava-o muito, no entanto, por vezes sentia um ligeiro estremecimento quando, ao passear juntos, de noite, pela rua, deitava um olhar furtivo à elevada estatura de Jordán, mudo há mais de uma hora. Por sua parte, ele amava-a profundamente, sem lho dar a conhecer.
Durante três meses — tinham-se casado em Abril — viveram uma felicidade especial.
Sem dúvida, ela teria desejado menos severidade nesse rígido céu de amor, uma mais expansiva e incauta ternura; mas o impassível semblante de seu marido continha-a sempre.
A casa em que viviam influenciava um pouco os seus estremecimentos. A brancura do silencioso pátio — frisos, colunas e estátuas de mármore — produzia uma outonal impressão de palácio encantado. Dentro, o brilho glaciar do estuque, sem a mais leve fresta nas altas paredes, acentuava aquela sensação de desaprazível frio. Ao ir de uma sala para outra, os passos ecoavam em toda a casa, como se um longo abandono tivesse sensibilizado a sua ressonância.
Nesse estranho ninho de amor, foi onde Alicia passou todo o Outono. Não obstante, tinha acabado por deitar um véu sobre os seus antigos sonhos e continuava a viver adormecida na casa hostil, sem querer pensar em nada, até que o marido chegava.
Não é de estranhar que emagrecesse. Teve um ligeiro ataque de influenza que se arrastou insidiosamente, dias e dias; Alicia nunca mais se recompunha. Por fim, numa tarde pôde sair ao jardim apoiada no braço do seu marido. Olhava indiferente para um e para outro lado. De súbito, Jordán, com uma profunda ternura, passou-lhe lentamente a mão pela cabeça e Alicia começou imediatamente a soluçar, lançando-lhe os braços ao pescoço. Chorou longamente todo o seu calado pavor, redobrando as lágrimas à menor tentativa de carícias. Depois os soluços foram diminuindo, mas ainda ficou longo tempo escondida no seu pescoço, sem se mexer nem pronunciar palavra.
Esse foi o último dia em que Alicia esteve levantada. No dia seguinte amanheceu esvaecida. O médico de Jordán examinou-a com extrema atenção, ordenando-lhe cama e descanso absoluto.
— Não sei — disse o médico a Jordán, na porta da rua e ainda em voz baixa. — Está extremamente débil e eu não encontro nenhuma razão para isso. Sem vómitos, nada... Se amanhã acordar como hoje, chame-me imediatamente.
No outro dia Alicia estava pior. Houve consulta. Constatou-se uma anemia com desenlace agudíssimo, completamente inexplicável. Alicia não voltou a desmaiar, mas corria de forma visível para a morte. Durante todo o dia, o quarto tinha as luzes acesas e em total silêncio. Passavam-se horas sem que se ouvisse o menor ruído. Alicia dormitava. Jordán vivia na sala, também com todas as luzes acesas. Passeava sem cessar de um extremo ao outro da sala, com incansável obstinação. A carpete abafava os seus passos. De vez em quando entrava no quarto e prosseguia o seu mudo vaivém ao longo da cama, detendo-se um momento em cada extremidade a observar a sua mulher.
Alicia rapidamente começou a te alucinações, a princípio confusas e flutuantes, que depois desceram ao nível do chão. A jovem, com os olhos desmesuradamente abertos, não fazia outra coisa senão olhar para os tapetes a ambos os lados da cabeceira da cama. De repente, uma noite ficou assim, a olhar fixamente. Pouco depois abriu a boca para gritar e as suas narinas e lábios encheram-se de pérolas de suor.
— Jordán! Jordán! — clamou, rígida de espanto, sem deixar de olhar para o tapete.
Jordán correu para o quarto e, ao vê-lo aparecer, Alicia lançou um grito de horror.
— Sou eu, Alicia, sou eu!
Alicia olhou-o desorientada, olhou para o tapete, voltou a olhar para o marido e depois de algum tempo de estupefacta confrontação, serenou-se. Sorriu e tomou entre as suas a mão do marido, acariciando-a durante meia hora, a tremer.
Entre as suas alucinações mais teimosas, havia uma em que um antropóide, apoiado sobre os dedos, no tapete, tinha fixos nela os seus olhos.
Os médicos voltaram inutilmente. Havia ali, à frente deles, uma vida que se acabava, dessangrando-se dia a dia, hora a hora, sem que se percebesse absolutamente como. Na última consulta, Alicia jazia em estado de estupor, enquanto eles lhe tomavam o pulso inerte, ora um ora outro. Observaram-na longo tempo em silêncio, e a seguir foram para a sala de jantar.
— Hum... — aquele que era o seu médico encolheu os ombros desalentado. — É um caso sério... Há pouco que fazer.
— Só me faltava isso! — bufou Jordán. E bateu bruscamente com os nós dos dedos na mesa.
Alicia foi-se extinguindo no seu delírio de anemia, mais grave à tarde, mas que perdia a intensidade nas primeiras horas. Durante o dia a sua doença não avançava, mas todas as manhãs acordava lívida, quase em síncope. Era como se a vida abalasse unicamente à noite em novas golfadas de sangue. Ao acordar, tinha sempre a sensação de estar atirada na cama, com um milhão de quilos em cima. Desde o terceiro dia que este abatimento não a abandonou mais. Quase não podia mexer a cabeça. Não quis que lhe tocassem na cama, nem que lhe arranjassem o almofadão. Os seus terrores crepusculares tinham agora a forma de monstros que se arrastavam até à cama e trepavam com dificuldade pela colcha.
Depois perdeu o conhecimento. Nos dois últimos dias delirou sem cessar, a meia voz. As luzes continuavam funebremente acesas no quarto e na sala. No agónico silêncio da casa não se ouvia senão o monótono delírio que saía da cama e o surdo retumbar dos eternos passos de Jordán.
Por fim, Alicia morreu. Depois, quando a criada entrou, para desfazer a cama, já vazia, olhou admirada para o almofadão.
— Senhor! — chamou Jordán em voz baixa. — No almofadão há manchas que parecem de sangue.
Jordán aproximou-se rapidamente e dobrou-se sobre ele. Efectivamente, sobre a fronha, de ambos os lados da cova deixada pela cabeça de Alicia, viam-se pequenas manchas escuras.
— Parecem picadas — murmurou a criada depois de um momento de imóvel observação.
— Levante-o para a luz — disse-lhe Jordán.
A criada levantou-o, mas imediatamente o deixou cair e ficou a olhá-lo, lívida e a tremer. Sem saber porquê, Jordán sentiu que os cabelos se lhe eriçavam.
— O que é? — murmurou com voz rouca.
— Pesa muito — articulou a criada, sem deixar de tremer.
Jordán levantou-o; pesava extraordinariamente. Saíram com ele e, sobre a mesa da sala de jantar, Jordán cortou a fronha e o invólucro com um só golpe. As penas superiores voaram e a criada deu um grito de horror, com a boca toda aberta, levando as mãos crispadas às têmporas. No fundo, entre as penas, mexendo lentamente as peludas patas, havia um animal monstruoso, uma bola vivente e viscosa. Estava tão inchado que apenas se lhe via a boca.
Noite após noite, desde que Alicia caíra à cama, o bicho tinha aplicado sigilosamente a sua boca — ou melhor, a sua tromba — às têmporas dela, chupando-lhe o sangue. A picada era quase imperceptível. Sem dúvida que ao princípio, a remoção diária do almofadão tinha impedido o seu desenvolvimento; mas desde que a jovem deixou de se poder mexer, a sucção foi vertiginosa. Em cinco dias, em cinco noites, tinha esvaziado Alicia.
Estes parasitas das aves, diminutos no seu meio habitual, em certas condições chegam a adquirir proporções enormes. O sangue humano parece que lhes é particularmente favorável e não é raro encontrá-los em almofadões de penas.

Horacio Quiroga (1878-1937), Contos de Amor, Loucura e Morte, trad. Ana Santos, Cavalo de Ferro, pp. 61-64, Fevereiro de 2003.

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27.9.08

PAUL NEWMAN (1925-2008)



Na morte do actor, mostram-se velhas imagens de um homem novo. Mas o actor não morreu novo, morreu velho. Morreu com a pele manchada de memórias, calvo, enrugado, com os músculos flácidos e o corpo devorado por um cancro. As imagens mais recentes tentam disfarçar o homem velho, mas nenhuma imagem logra disfarçar a escultura do tempo. O actor morreu velho. Deixem-no ser velho, dêem-lhe descanso.

APRENDER A CONTAR #11

A SESTA

Pierrot escondido por entre o amarelo dos girassóis espreita em cautela o sono dela dormindo na sombra da tangerineira. E ela não dorme, espreita também de olhos descidos, mentindo o sono, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silêncios por entre o amarelo dos girassóis. E porque Ele se vem chegando perto, Ela mente ainda mais o sono a mal-ressonar.
Junto d'Ela, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos e lisos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ela acordou cansada de tanto sono fingir.
E Ele ameaça fugida, e Ela furta-lhe a fuga nos braços nus estendidos.
E Ela, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ela dormisse outra vez.

José de Almada Negreiros (1893—1970), Poemas, p. 17, Assírio & Alvim, Setembro de 2001.

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ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /13


Jorge Aguiar Oliveira

o sol rasga por entre as árvores

o sol rasga por entre as árvores
um tigrado exótico no chão do jardim
pombos pavões patos passos de flor
e de dentro de um arbusto móvel
sai uma coisa qualquer viva de sangue
se ficam pegadas neste chão tão ido
é porque alguém lhes segue a sombra
as folhas aconchegam-se e quebram-se
é esse o amor que fazem com os insectos
jorro de um húmus que não nos passa
pela cabeça sem que morramos a vida toda
sob as diárias mortes de pétala uma última noite
as árvores já assobiam a rubra canção


Pedro Afonso nasceu em Faro no ano de 1979. É um dos membros fundadores do Sulscrito, Círculo Literário do Algarve e faz parte da direcção editorial da revista de literatura com o mesmo nome. Está representado em algumas antologias, das quais destacamos Antologia de Novos Peotas Algarvios - Do Solo ao Sul (2006) e Antologia de Poesia Portuguesa Actual - Poema Poema (2006). Estreou-se recentemente em livro com ainda aqui este lugar (Junho de 2008). É autor do blog a pedra.

26.9.08

ALIVIAR O ESPÍRITO… PESSOALMENTE


Fiquei a saber, através do Daedalus, que o Visconde da Apúlia foi o grande vencedor do Prémio Capitão Moura (Liga dos Últimos). Fica bem entregue, embora Joaquim de Cavez também merecesse. Parabéns aos vencedores. Votos de saúde aos vencidos.

P.S.: Há algo de incoerente neste prémio que não pode passar despercebido. Estou em crer que para ser concordante com o espírito do programa, o Prémio Capitão Moura deveria ser atribuído não ao mais votado mas ao menos votado dos “cromos” a concurso. E então poderíamos dizer: glória aos vencidos, paz aos vencedores.

NÃO SABIA


APRENDER A CONTAR #10

*

Tinha uma memória tão má que se esqueceu que tinha má memória e começou a lembrar-se de tudo.

*

Ramón Gómez de la Serna (1888–1963), Greguerías, trad. Jorge Silva Melo, p. 91, Assírio & Alvim, Julho de 1998.

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25.9.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /12


Jorge Aguiar Oliveira

Fragmento #64 – Ruínas

Os quintais da vizinhança, entre os quais está um pequeno pedaço que aparentemente me pertence, vivem o abandono total; a velha do rés-do-chão morreu e aquilo agora é uma verdadeira selva, a trepadeira invade-me a janela do atelier, por vezes tenho de cortá-la para não tapar a luz, para não interferir na luz necessária para pintar; há muito que prometi construir um jardim naquele pedaço, não o fiz, sei agora que nada me pertence e estou de passagem, mesmo quando circulo no mesmo sítio. Cada dia sinto mais que estou de partida, o que me prende é nada e a ideia de construir um jardim não passa de uma boa ideia. Estou triste, nem escrevo, resta-me alguma energia para pintar, procuro outros mundos onde possa habitar, porque o que se passa em meu redor está a perder o sentido. Não entendo quando comecei a sentir-me assim, talvez desde que a pintura me invadiu, ela está a interferir em tudo. Acordo por vezes de madrugada, sem despertador e vou pintar, nunca pensei que a luz da manhã se tornasse tão importante. A Lua segue-me com o seu precioso silêncio. Estive anos enleada e agora preencho espaços com rastros labirínticos, à medida que me liberto apenas me distancio, é como se tudo em meu redor fossem apenas memórias, vidas onde já não estou no momento presente, vidas que não me dizem respeito. Retomei o trabalho e as actividades sociais habituais no início de Setembro, não me preenchem, faço apenas o que pode ser feito para depois poder pintar. Nada me encanta. Sinto que em torno de mim habitam três ruínas que se estão a desmoronar: tentei que duas delas se fortalecessem contra as agressões do meio ambiente, mas não consegui nada, elas agora estão a destruírem-se uma à outra. Quanto à terceira, é muito bela, mas está fechada, queixa-se que eu não faço a mínima ideia do que se passa com o seu corpo e alma. Não me sinto culpada por isso, não sou responsável por uma ruína invisível fechada sobre si própria, não vou arruinar-me por algo que me é exterior, já quase me desmoronei por outras razões, mas depois das obras na casa, sinto que vou ter de habitar outro espaço. Não consegui sequer construir um jardim nos quintais da vizinhança, confesso que me atrai ver aquele pequeno mato no centro da cidade, o jardim era uma boa ideia, mas não o vou construir aqui. Não consigo fazer quase nada onde estou, apenas exorcizar enleios nas telas, vou libertar-me apenas.

Maria João

APRENDER A CONTAR #9

OS PENSAMENTOS DE UM VELHO ARTISTA

Envelheceu o escritor. Tem oitenta anos. Está atordoado pela glória das suas obras em prosa e dos seus poemas, e pela velhice. A sua muita confiança interior e a aprovação das pessoas contribuem para embotar-lhe o juízo. Mas não o embotam inteiramente. Observa que sob a admiração oficial de muitos, existe uma leve frieza de poucos. As suas obras não são tão admiradas por alguns dos jovens. A escola deles não é a sua escola, e o estilo deles não é o seu estilo. Pensam e sobretudo escrevem de modo diferente. O velho artista lê e estuda conscienciosamente as obras deles e acha-as abaixo das suas, e considera a nova escola inferior, pelo menos não superior, à sua. Julga que se quisesse, poderia escrever desse modo. Mas, por certo, não imediatamente. Precisaria de 8, 10 anos para entrar no espírito do novo estilo — e agora aproxima-se o tempo de morrer.
Há momentos em que despreza as novidades. Que importância têm? Um pequeno número de jovens que não gosta tanto dele! São, porém, milhões os que o admiram. Mas sente que diz sofismas a si próprio. Ele também começara dessa maneira. Era um desses mais ou menos cinquenta jovens que fizeram nova escola, escreveram num estilo diferente e mudaram a opinião de milhões que honravam alguns dos antepassados e alguns velhos artistas. Os últimos facilitaram muito a vitória dele com a sua morte. Disso deduz o velho escritor que é coisa vã fazer arte com as suas vogas que mudam frequentemente. Por certo também a obra destes jovens será provisória como a sua — mas isso não o consola.
Na evolução dos seus pensamentos e elucubrações, observa com amargura que o Entusiasmo e o Poético de cada escritor, quando envelhecem 40 ou 50 anos, começam a parecer bizarros ou ridículos. Talvez — isto é uma esperança — deixem de ser bizarros ou ridículos quando envelhecem 150 ou 200 anos — quando, em vez de serem démodés, são antigos.
E também dele se apodera alguma dúvida sobre o valor absoluto ou abstracto de muitas das suas críticas. Aqueles escritores que criticava quando era jovem e a quem substituiu, talvez os criticasse porque não os entendia — não por falta de génio, mas provavelmente porque a força do entendimento se corrompe pelas conjunturas de uma época ou se calhar pelas vogas. O exterior da sua crítica era em tudo parecido com a crítica que lhe fazem os jovens de hoje. Não mudou de opinião — pelo menos na maioria dos casos. A maior parte daqueles velhos artistas critica-a hoje como há 60 anos. Mas isso por certo não é grande prova de que a crítica que lhes faz seja correcta. É prova de que, psiquicamente, é o mesmo jovem de então.

Konstandinos Kavafis, Poemas e Prosas, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Relógio D’Água, pp. 142-143, 1994.

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24.9.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /11


Jorge Aguiar Oliveira

MUDAR DE CANAL


Um dos argumentos mais vulgares quando se discute a qualidade dos programas de televisão é o de que só vê quem quer. Reduzido ao absurdo, este argumento aparece geralmente enunciado da seguinte forma: podes sempre mudar de canal. A possibilidade é inegável, mas o argumento é falacioso. Revela ingenuidade, quando não estupidez. Vamos pensar um exemplo extremo que nada tenha que ver com televisão. É verdade que as pessoas podem sempre evitar a vida se não gostarem de viver, podem sempre desviar o olhar dos cancros se pela degradação dos cancros não se quiserem deixar ferir, podem sempre precaver-se de todo o tipo de agressões recolhendo-se num mosteiro, fazendo casa num deserto, enterrando a cabeça na areia. São sempre possibilidades em aberto e inegavelmente tentadoras neste mundo em que vivemos. A mim, por exemplo, chateia-me imenso a publicidade. Eu podia não ter e-mail, podia não ter caixa de correio postal, podia não andar na rua, evitando, desse modo, os inúmeros outdoors que se me impõem à vista, podia prescindir do telemóvel, dos meios de comunicação social, podia tornar-me eremita, anacoreta. A verdade é que a publicidade invade o meu espaço todos os dias, a toda a hora, de todas e mais algumas maneiras. A luta é inglória. Eu nunca invadi o espaço da publicidade mas ela invade o meu sem que me seja possível proteger-me dessa invasão. Posso sempre mudar de canal, claro. Posso sempre fechar-me no quarto e definhar. Mas se quiser viver, ambição e direito que ninguém me pode negar, tenho que aprender a viver com a publicidade. Sou eu quem cede. Passemos agora o mesmo problema para a televisão. Eu já cedi à publicidade, pelo que tento tornar-me indiferente às horas de publicidade que a televisão me impinge entre os meus programas preferidos. São cada vez menos, é certo. Por isso raramente vejo televisão. Além disso, tenho apenas 4 canais. Não tenho dinheiro que sustente o luxo que é poder mudar de canal as vezes que se quiser, quando se quiser, como se quiser. Eu só tenho 4 canais e pago para isso. Se num canal está a ser exibido um programa que fere a minha sensibilidade, eu posso tentar outros três. O problema é se nesses outros três canais estão a dar programas que ferem igualmente a minha sensibilidade. Suponhamos que não gosto de tourada. Mudo da SIC, onde está a dar um programa chamado “O Momento da Verdade”, para a RTP 1, onde está a ser transmitida, em directo, uma tourada. Resolvo então experimentar a TVI, onde passa mais um episódio de uma dessas telenovelas portuguesas intragáveis. Finalmente, passo pela RTP2. Nada feito. Na 2 estão a transmitir notícias que eu já vi, comentadas por fazedores de opinião que eu não quero ver nem ouvir. Bem, posso sempre desligar a televisão e ler um bom livro. Posso vir para o computador escrever um post sobre os meus dilemas. Posso alugar um filme, ouvir um bom disco, posso ir dormir. Ou talvez não. Eu estou de visita aos meus sogros, estou no café onde vou beber a bica, estou em casa de uns amigos, estou, como aconteceu ontem, num restaurante a comemorar uma porrada de anos de casados dos meus pais. Parece algo pretensioso, mesmo impertinente, exigir-lhes que mudem de canal ou apaguem a televisão só porque eu sou um rapaz sensível à estupidez. Eles vão achar-me arrogante, vão pagar-se da minha arrogância, mais tarde ou mais cedo, atirando-me à cara o meu carácter altivo. Que fazer? Um tipo cede. Posso evitar o restaurante que tem a televisão ligada. Mas não posso. Estou ali a convite de pessoas que muito estimo. Já cedi à publicidade, que mal fará ceder a um programa obtuso? Isto prova a existência de circunstâncias em que mudar de canal não chega. Talvez a pensar nisso mesmo, ou talvez não, nunca passou pela cabeça de ninguém liberalizar radicalmente a programação das televisões. Que mal haveria em transmitir um bom filme pornográfico em vez de um programa como “O Momento da Verdade”? Por que não um programa com criancinhas diabólicas a abaterem animais indefesos? Que tal um concurso de arrotos, peidos e escarradelas? Suicídios em directo? Por que não? O mercado que ditasse as regras. Quem não quisesse ver, isso mesmo, mudaria de canal. Ou talvez não.

P.S.: a imagem no topo reproduz a capa do meu livro Estórias Domésticas (E Outros Problemas), o qual pode ser adquirido nas melhores livrarias do país ou encomendado directamente ao editor. Quiçá a leitura do mesmo não seja uma boa alternativa à estupidificação televisionada. Uns dirão que não, outros dirão que sim. Eu sugiro-lhe que experimente. Vai ver que custa menos do que mudar de canal.

APRENDER A CONTAR #8

MEDITAÇÕES SOBRE O PECADO, O SOFRIMENTO, A ESPERANÇA E O VERDADEIRO CAMINHO

16 - Uma gaiola partiu à procura de um pássaro.

Franz Kafka (1883-1924), Antologia de Páginas Íntimas, trad. Alfredo Margarido, Guimarães Editores, 3.ª edição, p. 145, Março de 2002.

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OBRIGADINHO


LIDOS OU RELIDOS EM 2008 (3)

“Estórias Domésticas”, Henrique Manuel Bento Fialho, Ovni (2006)




1. “Estórias Domésticas” é uma casa-fialho, antítese da casa-televisão que aparece na capa, metáfora inversa e desligada porque vinda do futuro, como um ovni ou aquela pedra negra do filme do Kubrick que tanto perturba os macacos.

2. A casa-fialho é uma casa-corpo, isto é, uma casa-macaco, o mais longínqua possível dos seres que nos visitam e se deixam entrever nas alucinações motivadas por insuficiência alcoólica. Fialho é fialho e não gosta de cyborgs, a menos que se chamem, por exemplo, moura ou guerreiro ou quitéria.

3. Existir é representar mais uma vez a corrupção do corpo, castigá-lo até ao esquecimento. Esquecimento é uma palavra-órgão do corpo-fialho e daí a insónia, porque a insónia resulta do terror do sono onde não haja mais nada para esquecer. Não haver nada para esquecer é igual a perder o corpo. É como não haver mais álcool pra beber ou cigarros pra fumar, quase tão mau como, por exemplo, ter uma obra ou conquistar a santidade.

4. A salvação – essa puta – é tornarmo-nos, pela primeira vez na nossa epopeia azul, mortais. O corpo-fialho não quer ser Travolta, quer ser um “Travolta qualquer” (p 86), esse mesmo que diria “cozi-me por dentro” (p 25), “cortar-me todo” (p 35), “até desfazer retinas” (p 44) ou “estive perto de me afogar” (p 34); Travolta, como um verdadeiro herói, ter-se-ia afogado.

5. Claro que o autor-fialho depois (de fechar o livro) liga a televisão. Faz dieta durante alguns minutos, respira fundo três vezes, preocupa-se com não desiludir o editor. Sabendo que as estórias domésticas são apenas quase verdadeiras, voltamos a lê-las mais um ror de vezes.


Rui Costa

23.9.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /10


Jorge Aguiar Oliveira

UM ARQUIVO

Aqui.

DAS FLATULÊNCIAS

Nunca li nada de Abel que me interessasse. Também nunca procurei ler nada do autor. Tudo o que lhe li veio parar às minhas mãos por mero acaso. Umas crónicas em jornais e revistas, uns posts. Foi um dos autores do weblog que mais esteve para a blogosfera portuguesa como Dani para o futebol nacional: uma eterna promessa adiada. Procurei no Google e fiquei a saber que Abel é doutor, especialista e professa. Escreveu inúmeros ensaios, um livro de ficção a meias, outro em co-autoria, organizou e prefaciou muita coisa. Mais uma vez por mero acaso, leio-lhe a cólica. Começa assim: «O desânimo incurável caracteriza uma casta de escribas. Distraem-se, e a gente apanha-os a dizer que vão deixar de escrever porque ninguém os lê. Eu próprio já me distraí assim várias vezes.» É um bom começo. O cronista faz-se incluir numa suposta “casta de escribas” apanhados pelo desânimo. O problema é o que vem a seguir, pois Abel fala dos outros como se não estivesse a falar de si próprio. O leitor fica confuso. Afinal Abel revela-se Caim, quando tudo fazia prever o contrário. O dedo é apontado aos “rebentos” de uma tal “casta” incrementados pelos blogs. É apontado mas nunca chega a tocar na ferida, deixando-nos na expectativa sobre quem possam ser tais rebentos. Costume saborosamente português: apontar o dedo sem tocar nas feridas, deixar o boi mugir sem lhe dar nome. O que parece chatear Caim, perdão, Abel, é os blogs que acabam para recomeçar, no mesmo ou noutro lado. «Patético, caraças! Mas inocente.» Desabafa o escriba. O problema será um certo anseio de atenção, a falta de carinho, a desmotivação… no fundo, aquilo que, com as devidas variáveis, terá transformado a casmurrice num fantasma colectivo que pariu várias assombrações individuais. O pior, reflecte o escriba desanimado, é a casta (e ele a dar-lhe!) «dos que deixam transparecer em cada linha a noção engastada de que certo número de pessoas, de todo indeterminadas (como convém ao público), anseiam pelo que escrevem. E então chegam-se à frente a fazer habilidades. Um tédio.» Desânimo e tédio são o abismo do escriba. Mas pior ainda é o próprio Caim, perdão, Abel, que com a cólica enfadada e confusa nada mais faz senão chegar-se «à frente a fazer habilidades». E eu também, a postar sobre a crónica, embora animado e dando graças ao senhor pelo que ainda há de humano nos blogs – são diários, senhores, são diários! -, esse meio que certa outra casta provavelmente gostaria de ver transformada em coisa intelectual, enfadonha, reduzida a intuitos de auto e heteropromoção, coisa lá para a tertúlia que se reúne de quando em vez à mesa dos projectos, ou seja, mais um dos asfixiantes círculos fechados que há muito pululam no país. O resto não importa. São diários, senhores. São diários. Que raio de mania esta de censurar o pato por se limitar a ser pato. Nem o galo pode ser censurado por não pôr ovos nem o burro por não ser esperto. Os diários abrem-se com a mesma facilidade com que se fecham. Basta ler o de Pavese, que ainda há tão poucos dias fez anos. E os de agora até têm uma vantagem: fazem muito bem às cólicas. Sobretudo às verbais.

ESTÉTICA FOTOGRÁFICA



O Mário Pires está a promover um curso de estética fotográfica e pede-nos que o divulguemos. Com todo o gosto. O Mário é autor do Retorta. Toda a informação sobre o curso pode ser obtida em http://esteticafotografica.org. É só clicar.

APRENDER A CONTAR #7

TRÊS TESOUROS PERDIDOS

Uma tarde, eram quatro horas, o sr. X... voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.
Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe:
— Senhor, eu sou F..., marido da senhora Dona E...
— Estimo muito conhecê-lo, responde o sr. X...; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E...
— Não a conhece! Não a conhece!... quer juntar a zombaria à infâmia?
— Senhor!...
E o sr. X... deu um passo para ele.
— Alto lá!
O sr. F..., tirando do bolso uma pistola, continuou:
— Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!
— Mas, senhor, disse o sr. X..., a quem a eloquência do sr. F... tinha produzido um certo efeito, que motivo tem o senhor?...
— Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?
— A corte à sua mulher! não compreendo!
— Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira.
— Creio que se engana...
— Enganar-me! É boa!... mas eu o vi... sair duas vezes de minha casa...
— Sua casa!
— No Andaraí... por uma porta secreta... Vamos! ou...
— Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo...
— Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer... Escolha!
Era um dilema. O sr. X... compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo.
Surgiu, porém, uma objecção.
— Mas, senhor, disse ele, os meus recursos...
— Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um marido previdente.
E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe:
— Aqui tem dois contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta! Parta imediatamente. Para onde vai?
— Para Minas.
— Oh! a pátria do Tiradentes! Deus o leve a salvamento... Perdoo-lhe, mas não volte a esta corte... Boa viagem!
Dizendo isto, o sr. F... desceu precipitadamente a escada, e entrou no cabriolé, que desapareceu em uma nuvem de poeira.
O sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dois contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranquilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga, deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.
No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o sr. F... para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora.
Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete:
“Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. — Tua E…”
Desesperado, fora de si, o sr. F... lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às oito horas.
— Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao menos não percamos os dois contos! Tornou a meter-se no cabriolé e dirigiu-se à casa do sr. X..., subiu; apareceu o moleque.
— Teu senhor?
— Partiu para Minas.
O sr. F... desmaiou.
Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido!
Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso: — Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras!...
Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.

Machado de Assis (1839-1908), O Alienista e Outras Raridades, org. João Camilo, p. 17, OVNI, 2007.

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PETIÇÃO


Maria João

LIDOS OU RELIDOS EM 2008 (2)

“A MOBILIZAÇÃO INFINITA”, Peter Sloterdijk, Relógio d´Água (2002)



1. Sloterdijk começa por distinguir uma idade pré-moderna, em que as coisas acontecem de maneira diferente do plano que possamos ter, da idade moderna, em que se põe em marcha a “utopia cinética”, resultado de uma vontade de poder que crê poder realizar a Natureza/sonho que há a fazer.

2. Mas logo nos lembra que a criação que se põe em marcha na modernidade produz um movimento que gera alguma coisa que é sempre imprevista. As teorias da acção optimistas da idade moderna dão lugar ao mal-estar pós-moderno, quando percebemos que quem faz história faz sempre algo mais, produz ou acrescenta um (tipo de) movimento que nos arrasta em automatismos, anonimatos, produção de sucessos comerciais e lucrativos.

3. A modernidade - que inclui uma tendência para a motorização, outra para aligeirar as funções do sujeito mais sensíveis, lentas ou orientadas para a verdade, e outra ainda que diz respeito à logística (“apropriação estratégica do alheio”), ao volatilizar as tradições devido à progressiva “mobilização”, suscita uma importância crescente do “renascimento asiático” no Ocidente moderno: o “ser-para-o-movimento” da modernidade descamba num “ser-para-a-auto-aniquiliação”, o que requer uma mudança de sinal ontológico que alerte para um sentido do Ser como “ser-para-a-quietude-no-movimento” do pensamento asiático antigo.

4. E como ultrapassar o turbilhão de imagens em que o mundo se vê enredado, e como ultrapassar a catástrofe (Tchernobyl) e o pânico? Temos, para lidar com a desigualdade e a morte, a Metafísica, que parece ser o lugar da “pedra”, da pureza, porque somente o imóvel nos pode parecer alternativa à tal mobilidade que nos leva em direcção ao fim através da avidez e da violência. E neste ponto a interrogação de Sloterdijk é: Haverá outra alternativa para a fugacidade da vida que não tenha que ir parar à pedra metafísica?

5. Há uma alternativa que está sob o signo da natalidade: a Poiese. Criação, fabricação, acção, poesia. Poiese distingue-se de técnica porque “produz algo, isto é, o leva-em-frente-para-o-aberto, é a assimilação da produtividade natural pelo sujeito humano excêntrico”, enquanto que a “técnica técnica é uma consumpção demolidora (...), uma mobilização agressiva (...), uma procriação de monstros por monstros.”

6. A metáfora (que não é metáfora) da “natalidade” está na base de tudo, porque “o sabor do ser encontra-se (...) naquilo que consegue “existir”, naquilo, portanto, que participa no êxtase do ser-trazido-para-fora.” É assim que a filosofia se transforma aqui numa “ginecologia filosófica.”

7. Slotedijk preocupa-se com a política e a tão falada falta de credibilidade dos políticos. Afasta, no entanto, o que seria uma ingénua defesa dos princípios, revelando um entendimento das formações da consciência como agentes do salvamento do real. Quer dizer, é o mundo em perigo que faz nascer em nós os princípios que o possam salvar do perigo. E os políticos podem deixar de ser maus contemporâneos se se preocuparem com o urgente.

8. Certo é que já não podemos continuar a pretender desenhar a grande história universal e a transcendência. É preciso substituir a auto-realização do espírito (Hegel) pela ecologia, porque o nosso frágil planeta não suporta mais as continuadas agressões. A busca da verdade trouxe sempre o machado que fende. Temos a sensação de que já sabíamos. Fazer é mais difícil.


Rui Costa

22.9.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /09


Jorge Aguiar Oliveira

ABJECTO

Vi ontem cerca de 5 minutos de um programa chamado O Momento da Verdade. Já tinha visto cerca de 5 minutos na semana passada. Não consegui ver mais do que 10 minutos na totalidade. O programa enoja-me. Não sei porquê, mas enoja-me. Tento perceber porquê. Certamente não será por as pessoas dizerem verdades, nem por as dizerem à frente de quem as queira ouvir, nem por as revelarem em troco de dinheiro, nem por confiarem a verdade a uma máquina que ajuíza da verdade ou da mentira das respostas dadas. Estou-me nas tintas para tudo isso. O que me revolve o estômago naquele programa não é a verdade nem a mentira, não é a completa perversão de valores que considero tão fundamentais como o valor da intimidade. Que alguém queira prescindir da intimidade é lá consigo. Que alguém não queira ter segredos, algo que me faz, no mínimo, suspeitar da veracidade daquelas verdades, é lá consigo. O que eu não suporto, o que eu não suporto de todo, é a ideia de que a verdade pode ser respondida com um sim ou com um não, como se fosse uma coisa linear, mecânica, robótica. As pessoas que se sentam naquele programa saberão se estão a dizer a verdade ou a mentir quando confessam traições, revelam desejos ou declaram frustrações comprometedoras de terceiros. Provavelmente conhecem-se a si próprias como nem o mais sábio dos filósofos se conhece. O que me irrita, enoja, o que me faz acreditar menos em todas aquelas e noutras verdades é a presunção de que a verdade pode ser resumida a um sim ou um não. Badamerda mais essas verdades.

A MÚSICA FOI AO CINEMA

Após a estreia de Singles (1992), uma comédia sobre a então muito em voga onda de Seattle, com a ajuda de bandas tais como Soundgarden, Pearl Jam e Mudhoney, um jornalista perguntou aos Nirvana se se sentiam parte do grupo de bandas caricaturadas no filme de Cameron Crowe. A resposta foi negativa, tendo Kurt Cobain sugerido que nunca vira um filme ou documentário satisfatório sobre rock'n'roll bands. Abriu duas excepções: Don’t Look Back (1967), de D.A. Pennebaker – a digressão de Bob Dylan, por terras de sua majestade, em 1965 - e This Is Spinal Tap (1984), de Rob Reiner – sátira às bandas de hard-rock. Não vi nenhum deles, mas fui sempre um entusiasta de filmes que tivessem compositores, músicos, movimentos musicais como tema central. Amadeus (1984), de Milos Forman, e Bird (1988), de Clint Eastwood, respectivamente sobre Mozart e Charlie Parker, são excelentes filmes. Há, no entanto, que distinguir o documentário do filme biográfico, o filme biográfico da ficção com conexões mais ou menos evidentes à realidade. Singles, tal como Velvet Goldmine (1998), de Todd Haynes, são ficções. Este último, quanto a mim, funciona igualmente como um excelente retrato do movimento glam rock, sendo as ligações a David Bowie e Iggy Pop mais do que evidentes. The Doors (1991), de Oliver Stone, e Shine (1996), de Scott Hicks, são filmes biográficos. O primeiro, por sinal, muito fraco. Talvez por se ter colado em demasia aos aspectos grotescos da vida do vocalista da banda em causa. O segundo, sobre a vida do pianista David Helfgott, é bastante comovente e consegue fazer esquecer as insuficiências que corrompem algumas fitas do mesmo tipo. Documentários… há muitos. Seria exaustivo enumerá-los. Acontece que mais recentemente tem surgido um conjunto de filmes do género que me parecem francamente razoáveis. 24 Hour Party People (2002), de Michael Winterbottom, faz com a vaga pop de Madchester o que Singles não logrou fazer com a moda grunge. No centro das atenções está Tony Wilson – que voltaremos a ver no filme de Anton Corbijn sobre os Joy Division -, o homem que revolucionou a indústria da musica pop britânica com a sua Factory Records. É um filme ágil, divertido, com um senso abertamente lúcido da ausência de lucidez que caracterizou a maior parte das bandas que passaram pela Factory Records. Em 2005, Gus Van Sant ensaiou os últimos dias de Kurt Cobain em Last Days. É uma das películas mais melancólicas de Van Sant, mas também uma das mais belas, em planos lentos que contrastam com a música acelerada saída do corpo da personagem central. Não há-de ser fácil, e será sempre arriscado, viajar ao interior da mente de um suicida, viajar por dentro de uma personalidade auto-destrutiva e captar-lhe os dramas sem os tornar absurdamente trágicos. Last Days fá-lo muito bem. Será que o vocalista dos Nirvana teria gostado? Walk the Line (2006), de James Mangold, é um magnífico registo da história de amor que uniu Johnny Cash & June Carter. Joaquin Phoenix interpreta o músico norte-americano numa recriação mais que perfeita. Está lá tudo: a relação mal resolvida com o pai, os dramas do divórcio num meio conservador, a insistência num amor que parecia impossível, os excessos, o sentimento de culpa, etc. Por acaso, ou talvez não, algo muito parecido se passa em Control (2007), de Anton Corbijn. Dedicado à vida efémera de Ian Curtis, o vocalista dos Joy Division, que aparece aqui retratado como um frágil rapaz dividido entre o amor da mulher e da filha e uma paixão pela amante, Control é um filme esteticamente perfeito. Isto apesar dos dramas que levaram o protagonista a um final trágico não terem sido filmados com a destreza vislumbrada em Last Days. Não admira, tratando-se, segundo sei, da primeira longa-metragem de Corbijn. Também no ano passado, o francês Olivier Dahan ofereceu-nos La Môme, onde Edith Piaf aparece surpreendentemente recriada por Marion Cotillard. Trata-se de um registo biográfico que vai das privações da infância aos excessos da vida adulta, dando especial enfoque à relação da cantora francesa com o pugilista marroquino Marcel Cerdan. Radicalmente diferente é I'm Not There (2008), de Todd Haynes: Bob Dylan interpretado por seis personagens distintas que nos propõem outros tantos ângulos diversos sobre a vida do songwriter norte-americano. É um filme algo confuso que, ainda assim, capta bem as inúmeras contradições na vida do autor de Blowin' in the wind. João Lopes chamou-lhe antibiografia. Se o género pega…

TRÊS CADEIRAS NO ALENTEJO

Aprestos, e deusas, de Atavio,
O culto em cima é de perfil
Porém, Todavia, e Contudo. Um
Pouco de barro na noite, fria
Como se chama? Diz que escondido

No meio das mulheres, o deus
Da Empena. À força de uns períodos
Castelos protegidos de antigas
Batalhas servem agora p’ra mudar o penso
E por Espanha três cadeiras nos deixa.


(foto de Luiz Carvalho, in Actual, Expresso)

Gil de Carvalho nasceu em Lisboa em 1954. Publicou livros de poesia e prosa. Reuniu recentemente a sua poesia no volume Viagens 1978-2008 (Assírio & Alvim). O poema Três Cadeiras no Alentejo faz parte do livro De Quatro e Cinco (2004).

21.9.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /08


Jorge Aguiar Oliveira

BRANCOS, PRETOS, MULATOS E BRASILEIROS

A Isabela disse algumas verdades e os leitores caíram-lhe… na caixa de comentários. Continuou aqui. Curiosamente, é um tema que me parece em amena relação com este outro. A ler.

BONS EM QUÊ?



Por mais que me esforce, não consigo entender este slogan. Afinal somos bons em quê? A andar de cadeira de rodas? Em paralisias? A nadar? A ganhar medalhas? Seremos campeões na deficiência? No politicamente correcto? Sabemos que a GALP é boa a roubar os clientes. Mas em que mais seremos bons? Na língua portuguesa? Escreve-se “paralímpicos” (soa a pirilampo) ou “paraolímpicos”?

APRENDER A CONTAR #6

O MESTRE

Naqueles tempos, em que a escuridão dominava a terra, José de Arimateia, acendeu uma tocha feita de pinho e desceu das colinas até ao vale. Tinha algo que fazer na sua própria casa.
E viu, ajoelhando-se sobre as duras pedras do Vale da Desolação, um jovem nu que se lamentava. Os seus cabelos eram da cor do mel e o seu corpo como uma flor branca, mas tinha-se ferido e colocado cinzas no cabelo, como se de uma coroa se tratasse.
Ele, o que tanto possuía, disse para o jovem que estava nu, a chorar: «Não me surpreendo que o teu desgosto seja tão imenso, pois Ele era certamente um homem justo».
Nesse instante, o rapaz respondeu: «Não é por Ele que choro mas por mim próprio. Eu também transformei água em vinho e curei o leproso e dei vista ao cego. Caminhei sobre as águas, e dos túmulos que tinham por esconderijos, expulsei demónios. Alimentei esfomeados em desertos onde nada existia que se pudesse comer, e ressuscitei mortos das suas estreitas habitações, e à minha ordem, diante de uma grande multidão, uma figueira estéril frutificou. Todas as coisas que esse homem fez, também eu as fiz. E, contudo, ninguém me crucificou.»

Oscar Wilde (1854-1900), Poemas em prosa, trad. Possidónio Cachapa, p. 19, Cavalo de Ferro, 2002.

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20.9.08

ASSALTO AO TESOURO DE MADAME MM /07


Jorge Aguiar Oliveira

Fragmento # 63 - Pastelaria Marginal

Tive o prazer de participar esta madrugada no 1º Grandioso Encontro de Pastelaria Marginal Portuguesa. Sou uma adepta feroz desta arte maior e era impensável recusar o desafio lançado pelos anfitriães, dar corpo e voz a iguarias poéticas no Manel Bar na praia de Sta Cruz. Na realidade, sou uma adepta que vive com uma banda gástrica desde Março de 2006 e já perdeu 50kg, a relação que estabeleço com estas coisas agora é muito diferente e tem limites no que diz respeito ao prazer de comer. O encontro teve início na Cervejaria Imperial, onde cheguei com os companheiros Sara e Rodrigo da Big Ode; degustei então uma bela açorda de mariscos, a minha drástica não gostou de todas as texturas dos mariscos, mas o possível foi acompanhado por vinho regional em ambiente caloroso. Aviso desde já o Henrique e o Mário Calado Pedro que esta cervejaria às terças-feiras faz promoções nas caranguejolas recheadas até ao mês de Maio de 2009, não provei, mas pelo aspecto devem ser belíssimas. Na Cervejaria conheci o Pedro Lopes, que também iria ler um texto dele, tal como eu, e o Mário Lisboa Duarte, um dos grandes anfitriões do evento, acalmou-me dizendo que o ambiente era familiar; eu estava um pouco nervosa porque tinha escolhido A cozinha, mas ele já me tinha dito que faria sentido até em castelhano. Depois apareceu o Rui Almeida, que gosto sempre de encontrar nestas ocasiões e fomos todos para o Manel Bar: a ementa era composta por textos de Pedro Lopes, Luís Graça, Luís Filipe Cristóvão, Golgona Anghel, Mário Lisboa Duarte, Mário Cesariny, José do Carmo Francisco, Alexandre O’Neill, Inês Leitão, a que vos escreve aqui, António Lobo Antunes, Mário Henrique Leiria, Rui Laje, Murillo Mendes, Jorge Sousa Braga e Armando Silva Carvalho. Devido à ausência da Raquel Sousa nas leituras, fiquei encarregue de dar voz à “ bola de Berlim” de Inês Leitão e “Sonho com a filha do padeiro” de Golgona Anghel , ou seja, fui a voz feminina da ementa ao lado do Pedro Lopes, Luís Filipe Cristóvão, Mário Lisboa Duarte e Formiga. A sessão teve piada, foi alternada com a projecção de vídeos que em breve estarão presentes aqui, eu apenas senti uma ligeira falta de folgo a meio da leitura de cozinha, mas sinto que de resto correu bem. Para mim, o ponto alto da noite foi o Mário Duarte Lisboa a ler poemas do Luís Graça, não conhecia as suas iguarias, o poeta estava presente no evento e ofereceu-me o seu livro A Mulher que fazia recados às putas e mais contos preversos que estou a ler e me está a deixar sem palavras, coisa rara. Como não tenho nenhum registo vídeo ou fotográfico do que se passou ontem, deixo-vos aqui um vídeo para abrir o apetite em relação às iguarias de Luís Graça:


Haja saúde
Maria João

BAIRROS BAIXOS

Contratei-me como detective de mim mesmo
para me perseguir pelas ruas interiores,
e tomo nota de infidelidades e movimentos falsos,
de cada traição que faço à minha pessoa.
Farejo o caixote do lixo como um cão
procurando pistas sobre os meus vícios,
perscruto em gestos e trejeitos acumulados,
entre palavras com as quais não disse o que penso.
Infiltro-me discretamente nas paixões baixas
que não me atrevo a confessar nem aos meus amigos
e tiro fotos comprometidas onde jazo
com homens e mulheres que não existem:
documentos esclarecedores que demonstram
uma dupla contabilidade de mim.
Não procuro aliviar a minha consciência
nem libertar-me dos meus pecados,
mas é impossível tocar na água sem revelar o lodo do fundo.
A gama não está completa se faltam as cores escuras,
e no seu caderno o investigador também anota
dias em que o sol resplandeceu.
Espio-me em silêncio pelas ruas
e desejo não resolver este caso.
A morte para um detective de si mesmo
é saber tudo do homem que persegue.


Versão de HMBF.

Rafael Camarasa nasceu em Valência em 1963. Estreou-se em 1987, com o livro Irreverentes goces menores. Além de poesia, publicou contos. Os seus livros mais recentes são Cromos (2007) e El sitio justo (2008). O poema aqui divulgado foi mudado para português a partir da versão original publicada no n.º 2 da revista Sulscrito. O autor publica o weblog Propositos de un Pez.