30.9.08
APRENDER A CONTAR #14
Naquele dia, o Imperador Amarelo mostrou o seu palácio ao poeta. Foram deixando para trás, num longo desfile, os primeiros terraços ocidentais que, como degraus de um quase inabarcável anfiteatro, descem até um paraíso ou jardim cujos espelhos de metal e cujas intricadas cercas de zimbro prefiguravam já o labirinto. Alegremente nele se deixaram perder, a princípio como se condescendessem com um jogo e depois não sem inquietação, porque as suas rectas avenidas apresentam uma curvatura muito suave mas contínua e secretamente eram círculos. Por volta da meia-noite, a observação dos planetas e o oportuno sacrifício de uma tartaruga permitiram-lhes libertar-se dessa região que parecia enfeitiçada, mas não da sensação de se encontrarem perdidos, que os acompanhou até ao fim. Percorreram depois antecâmaras e pátios e bibliotecas e uma sala hexagonal com uma clepsidra, e uma manhã, do alto de uma torre, divisaram um homem de pedra, que logo perderam de vista para sempre. Muitos resplandecentes rios atravessaram em canoas de sândalo, ou um único rio muitas vezes. O séquito imperial passava e a gente prosternava-se, mas um dia arribaram a uma ilha onde alguém não se prosternou, por não ter visto nunca o Filho do Céu, e o verdugo teve de o decapitar. Negras cabeleiras e negras danças e complicadas máscaras de oiro viram com indiferença os seus olhos; o real confundia-se com o sonhado, ou melhor, o real era uma das configurações do sonho. Parecia impossível que a terra fosse outra coisa que não jardins, águas, arquitecturas e formas de esplendor. De cem em cem passos uma torre cortava o ar; para os olhos a cor era idêntica, mas a primeira de todas era amarela e a última escarlate, tão delicadas eram as gradações e tão comprida era a série.
Foi ao pé da penúltima torre que o poeta (como que alheado dos espectáculos que constituíam uma maravilha para todos) recitou a breve composição que hoje vinculamos indissoluvelmente ao seu nome e que, segundo repetem os historiadores mais elegantes, lhe proporcionou a imortalidade e a morte. O texto perdeu-se; há quem pretenda que constava de um verso; outros, de uma só palavra. O que é certo, o que é incrível, é que no poema estava inteiro e minucioso o palácio enorme, com cada ilustre porcelana e cada desenho em cada porcelana e as penumbras e as luzes dos crepúsculos e cada instante desditoso ou feliz das gloriosas dinastias de mortais, de deuses e de dragões que nele habitaram desde o interminável passado. Todos ficaram calados, mas o Imperador exclamou: Arrebataste-me o palácio. E a espada de ferro do verdugo cegou a vida do poeta.
Outros referem a história de outra maneira. No mundo não pode haver duas coisas iguais; bastou (dizem-nos) que o poeta pronunciasse o poema para que desaparecesse o palácio, como que abolido e fulminado pela última sílaba. Tais lendas, claro está, não passam de ficções literárias. O poeta era escravo do Imperador e morreu como tal; a sua composição caiu no esquecimento porque merecia o esquecimento, e os seus descendentes procuram ainda — e não a hão-de encontrar — a palavra do universo.
Jorge Luis Borges (1899-1986), Poemas Escolhidos, trad. Ruy Belo, Publicações Dom Quixote, pp. 71-74, 2.ª edição, Agosto de 1985.
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TEMPO PERDIDO
— vilão da vila, vilão da vila,
quem lhe fez figa?
espumando como
um cachorro louco,
a tarde morre muito
cedo no céu de amianto.
— vilão da vila, vilão da vila,
quem lhe fez figa?
e as primeiras estrelas de hoje
se perdem entre as nuvens negras,
pálidas de sono.
……………
a noite vai ser bem fria.
29.9.08
ENVELHECER
APRENDER A CONTAR #13
...Que desgraça! Parte uma perna num urinol.
Quem será ele? Um nervoso, com certeza um nervoso. Talvez um tímido. Atravessa-o então um pensamento. Mal a gente dá um passo em falso, fica logo com uma perna partida.
E isto, note-se, é apenas o encadear da desgraça...
Ele bem préga, mas a plataforma onde se encontra deixa de o suster e desmorona-se.
Quer continuar a prégar, mas cai e arrancam-no da água como peixe e vendem-no ao quilo, triste fim para um prégador.
Não desiste de prégar, mas põem-no a cozer num tacho; o ruído do tacho adormece-o, distraindo-o de quaisquer projectos. E o mundo, que pretendia pô-lo a marcar passo, ri-se, formando-se ali uma assembleia que se felicita.
Mas ei-lo, não abatido de todo, que esboça um gesto vago, como quem vai expulsar a desgraça do peito, ao mesmo tempo que lentamente começa a cozer. E depois disso já não parece lá muito bom para a prégação, não, já não parece lá muito bom.
Henri Michaux (1899-1984), O Retiro pelo Risco, trad. Júlio Henriques, Fenda, p. 26, Fevereiro de 1999.
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CAIXAS DE FÓSFOROS
Colecção Estrelas da Sétima Arte
l Anthony Hopkins
Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
o sopro doente das marés.
O que nos resta vale os dias?
Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.
2 Gene Hackman
Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
flores murchas, outras secas,
gases em jarras de plástico.
Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.
3 August Strindberg
Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
o lento dilúvio dos crimes
dos espelhos da ambição.
Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.
4 Brian Dennehy
Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
rezas peçonhentas ao céu
ao ser que vai chegar.
Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.
5 Paul Newman
Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
animais electrónicos
os beijos nos vídeos.
Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.
6 Rainer Werner Fassbinder
Continuas em chamas
debruçado à janela
a ver passar
línguas venenosas cuspindo:
as filosofias estão desertas.
Voltemos ao aconchego
dos nossos braços
o pouco que nos resta.
Jorge Aguiar Oliveira
in Homens sem Soutien, Vila Real, 1994, ed. Autor.
28.9.08
A VORAGEM DO TEMPO
APRENDER A CONTAR #12
A sua lua-de-mel foi um longo arrepio. Loura, angelical e tímida, o duro carácter do seu marido gelou as suas sonhadas criancices de noiva. Ela amava-o muito, no entanto, por vezes sentia um ligeiro estremecimento quando, ao passear juntos, de noite, pela rua, deitava um olhar furtivo à elevada estatura de Jordán, mudo há mais de uma hora. Por sua parte, ele amava-a profundamente, sem lho dar a conhecer.
Durante três meses — tinham-se casado em Abril — viveram uma felicidade especial.
Sem dúvida, ela teria desejado menos severidade nesse rígido céu de amor, uma mais expansiva e incauta ternura; mas o impassível semblante de seu marido continha-a sempre.
A casa em que viviam influenciava um pouco os seus estremecimentos. A brancura do silencioso pátio — frisos, colunas e estátuas de mármore — produzia uma outonal impressão de palácio encantado. Dentro, o brilho glaciar do estuque, sem a mais leve fresta nas altas paredes, acentuava aquela sensação de desaprazível frio. Ao ir de uma sala para outra, os passos ecoavam em toda a casa, como se um longo abandono tivesse sensibilizado a sua ressonância.
Nesse estranho ninho de amor, foi onde Alicia passou todo o Outono. Não obstante, tinha acabado por deitar um véu sobre os seus antigos sonhos e continuava a viver adormecida na casa hostil, sem querer pensar em nada, até que o marido chegava.
Não é de estranhar que emagrecesse. Teve um ligeiro ataque de influenza que se arrastou insidiosamente, dias e dias; Alicia nunca mais se recompunha. Por fim, numa tarde pôde sair ao jardim apoiada no braço do seu marido. Olhava indiferente para um e para outro lado. De súbito, Jordán, com uma profunda ternura, passou-lhe lentamente a mão pela cabeça e Alicia começou imediatamente a soluçar, lançando-lhe os braços ao pescoço. Chorou longamente todo o seu calado pavor, redobrando as lágrimas à menor tentativa de carícias. Depois os soluços foram diminuindo, mas ainda ficou longo tempo escondida no seu pescoço, sem se mexer nem pronunciar palavra.
Esse foi o último dia em que Alicia esteve levantada. No dia seguinte amanheceu esvaecida. O médico de Jordán examinou-a com extrema atenção, ordenando-lhe cama e descanso absoluto.
— Não sei — disse o médico a Jordán, na porta da rua e ainda em voz baixa. — Está extremamente débil e eu não encontro nenhuma razão para isso. Sem vómitos, nada... Se amanhã acordar como hoje, chame-me imediatamente.
No outro dia Alicia estava pior. Houve consulta. Constatou-se uma anemia com desenlace agudíssimo, completamente inexplicável. Alicia não voltou a desmaiar, mas corria de forma visível para a morte. Durante todo o dia, o quarto tinha as luzes acesas e em total silêncio. Passavam-se horas sem que se ouvisse o menor ruído. Alicia dormitava. Jordán vivia na sala, também com todas as luzes acesas. Passeava sem cessar de um extremo ao outro da sala, com incansável obstinação. A carpete abafava os seus passos. De vez em quando entrava no quarto e prosseguia o seu mudo vaivém ao longo da cama, detendo-se um momento em cada extremidade a observar a sua mulher.
Alicia rapidamente começou a te alucinações, a princípio confusas e flutuantes, que depois desceram ao nível do chão. A jovem, com os olhos desmesuradamente abertos, não fazia outra coisa senão olhar para os tapetes a ambos os lados da cabeceira da cama. De repente, uma noite ficou assim, a olhar fixamente. Pouco depois abriu a boca para gritar e as suas narinas e lábios encheram-se de pérolas de suor.
— Jordán! Jordán! — clamou, rígida de espanto, sem deixar de olhar para o tapete.
Jordán correu para o quarto e, ao vê-lo aparecer, Alicia lançou um grito de horror.
— Sou eu, Alicia, sou eu!
Alicia olhou-o desorientada, olhou para o tapete, voltou a olhar para o marido e depois de algum tempo de estupefacta confrontação, serenou-se. Sorriu e tomou entre as suas a mão do marido, acariciando-a durante meia hora, a tremer.
Entre as suas alucinações mais teimosas, havia uma em que um antropóide, apoiado sobre os dedos, no tapete, tinha fixos nela os seus olhos.
Os médicos voltaram inutilmente. Havia ali, à frente deles, uma vida que se acabava, dessangrando-se dia a dia, hora a hora, sem que se percebesse absolutamente como. Na última consulta, Alicia jazia em estado de estupor, enquanto eles lhe tomavam o pulso inerte, ora um ora outro. Observaram-na longo tempo em silêncio, e a seguir foram para a sala de jantar.
— Hum... — aquele que era o seu médico encolheu os ombros desalentado. — É um caso sério... Há pouco que fazer.
— Só me faltava isso! — bufou Jordán. E bateu bruscamente com os nós dos dedos na mesa.
Alicia foi-se extinguindo no seu delírio de anemia, mais grave à tarde, mas que perdia a intensidade nas primeiras horas. Durante o dia a sua doença não avançava, mas todas as manhãs acordava lívida, quase em síncope. Era como se a vida abalasse unicamente à noite em novas golfadas de sangue. Ao acordar, tinha sempre a sensação de estar atirada na cama, com um milhão de quilos em cima. Desde o terceiro dia que este abatimento não a abandonou mais. Quase não podia mexer a cabeça. Não quis que lhe tocassem na cama, nem que lhe arranjassem o almofadão. Os seus terrores crepusculares tinham agora a forma de monstros que se arrastavam até à cama e trepavam com dificuldade pela colcha.
Depois perdeu o conhecimento. Nos dois últimos dias delirou sem cessar, a meia voz. As luzes continuavam funebremente acesas no quarto e na sala. No agónico silêncio da casa não se ouvia senão o monótono delírio que saía da cama e o surdo retumbar dos eternos passos de Jordán.
Por fim, Alicia morreu. Depois, quando a criada entrou, para desfazer a cama, já vazia, olhou admirada para o almofadão.
— Senhor! — chamou Jordán em voz baixa. — No almofadão há manchas que parecem de sangue.
Jordán aproximou-se rapidamente e dobrou-se sobre ele. Efectivamente, sobre a fronha, de ambos os lados da cova deixada pela cabeça de Alicia, viam-se pequenas manchas escuras.
— Parecem picadas — murmurou a criada depois de um momento de imóvel observação.
— Levante-o para a luz — disse-lhe Jordán.
A criada levantou-o, mas imediatamente o deixou cair e ficou a olhá-lo, lívida e a tremer. Sem saber porquê, Jordán sentiu que os cabelos se lhe eriçavam.
— O que é? — murmurou com voz rouca.
— Pesa muito — articulou a criada, sem deixar de tremer.
Jordán levantou-o; pesava extraordinariamente. Saíram com ele e, sobre a mesa da sala de jantar, Jordán cortou a fronha e o invólucro com um só golpe. As penas superiores voaram e a criada deu um grito de horror, com a boca toda aberta, levando as mãos crispadas às têmporas. No fundo, entre as penas, mexendo lentamente as peludas patas, havia um animal monstruoso, uma bola vivente e viscosa. Estava tão inchado que apenas se lhe via a boca.
Noite após noite, desde que Alicia caíra à cama, o bicho tinha aplicado sigilosamente a sua boca — ou melhor, a sua tromba — às têmporas dela, chupando-lhe o sangue. A picada era quase imperceptível. Sem dúvida que ao princípio, a remoção diária do almofadão tinha impedido o seu desenvolvimento; mas desde que a jovem deixou de se poder mexer, a sucção foi vertiginosa. Em cinco dias, em cinco noites, tinha esvaziado Alicia.
Estes parasitas das aves, diminutos no seu meio habitual, em certas condições chegam a adquirir proporções enormes. O sangue humano parece que lhes é particularmente favorável e não é raro encontrá-los em almofadões de penas.
Horacio Quiroga (1878-1937), Contos de Amor, Loucura e Morte, trad. Ana Santos, Cavalo de Ferro, pp. 61-64, Fevereiro de 2003.
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27.9.08
PAUL NEWMAN (1925-2008)
Na morte do actor, mostram-se velhas imagens de um homem novo. Mas o actor não morreu novo, morreu velho. Morreu com a pele manchada de memórias, calvo, enrugado, com os músculos flácidos e o corpo devorado por um cancro. As imagens mais recentes tentam disfarçar o homem velho, mas nenhuma imagem logra disfarçar a escultura do tempo. O actor morreu velho. Deixem-no ser velho, dêem-lhe descanso.
APRENDER A CONTAR #11
Pierrot escondido por entre o amarelo dos girassóis espreita em cautela o sono dela dormindo na sombra da tangerineira. E ela não dorme, espreita também de olhos descidos, mentindo o sono, as vestes brancas do Pierrot gatinhando silêncios por entre o amarelo dos girassóis. E porque Ele se vem chegando perto, Ela mente ainda mais o sono a mal-ressonar.
Junto d'Ela, não teve mão em si e foi descer-lhe um beijo mudo na negra meia aberta arejando o pé pequenino. Depois os joelhos redondos e lisos, e já se debruçava por sobre os joelhos, a beijar-lhe o ventre descomposto, quando Ela acordou cansada de tanto sono fingir.
E Ele ameaça fugida, e Ela furta-lhe a fuga nos braços nus estendidos.
E Ela, magoada dos remorsos de Pierrot, acaricia-lhe a fronte num grande perdão. E, feitas as pazes, ficou combinado que Ela dormisse outra vez.
José de Almada Negreiros (1893—1970), Poemas, p. 17, Assírio & Alvim, Setembro de 2001.
#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10
o sol rasga por entre as árvores
o sol rasga por entre as árvores
um tigrado exótico no chão do jardim
pombos pavões patos passos de flor
e de dentro de um arbusto móvel
sai uma coisa qualquer viva de sangue
se ficam pegadas neste chão tão ido
é porque alguém lhes segue a sombra
as folhas aconchegam-se e quebram-se
é esse o amor que fazem com os insectos
jorro de um húmus que não nos passa
pela cabeça sem que morramos a vida toda
sob as diárias mortes de pétala uma última noite
as árvores já assobiam a rubra canção
26.9.08
ALIVIAR O ESPÍRITO… PESSOALMENTE
Fiquei a saber, através do Daedalus, que o Visconde da Apúlia foi o grande vencedor do Prémio Capitão Moura (Liga dos Últimos). Fica bem entregue, embora Joaquim de Cavez também merecesse. Parabéns aos vencedores. Votos de saúde aos vencidos.
P.S.: Há algo de incoerente neste prémio que não pode passar despercebido. Estou em crer que para ser concordante com o espírito do programa, o Prémio Capitão Moura deveria ser atribuído não ao mais votado mas ao menos votado dos “cromos” a concurso. E então poderíamos dizer: glória aos vencidos, paz aos vencedores.
25.9.08
Fragmento #64 – Ruínas
Maria João
APRENDER A CONTAR #9
Envelheceu o escritor. Tem oitenta anos. Está atordoado pela glória das suas obras em prosa e dos seus poemas, e pela velhice. A sua muita confiança interior e a aprovação das pessoas contribuem para embotar-lhe o juízo. Mas não o embotam inteiramente. Observa que sob a admiração oficial de muitos, existe uma leve frieza de poucos. As suas obras não são tão admiradas por alguns dos jovens. A escola deles não é a sua escola, e o estilo deles não é o seu estilo. Pensam e sobretudo escrevem de modo diferente. O velho artista lê e estuda conscienciosamente as obras deles e acha-as abaixo das suas, e considera a nova escola inferior, pelo menos não superior, à sua. Julga que se quisesse, poderia escrever desse modo. Mas, por certo, não imediatamente. Precisaria de 8, 10 anos para entrar no espírito do novo estilo — e agora aproxima-se o tempo de morrer.
Há momentos em que despreza as novidades. Que importância têm? Um pequeno número de jovens que não gosta tanto dele! São, porém, milhões os que o admiram. Mas sente que diz sofismas a si próprio. Ele também começara dessa maneira. Era um desses mais ou menos cinquenta jovens que fizeram nova escola, escreveram num estilo diferente e mudaram a opinião de milhões que honravam alguns dos antepassados e alguns velhos artistas. Os últimos facilitaram muito a vitória dele com a sua morte. Disso deduz o velho escritor que é coisa vã fazer arte com as suas vogas que mudam frequentemente. Por certo também a obra destes jovens será provisória como a sua — mas isso não o consola.
Na evolução dos seus pensamentos e elucubrações, observa com amargura que o Entusiasmo e o Poético de cada escritor, quando envelhecem 40 ou 50 anos, começam a parecer bizarros ou ridículos. Talvez — isto é uma esperança — deixem de ser bizarros ou ridículos quando envelhecem 150 ou 200 anos — quando, em vez de serem démodés, são antigos.
E também dele se apodera alguma dúvida sobre o valor absoluto ou abstracto de muitas das suas críticas. Aqueles escritores que criticava quando era jovem e a quem substituiu, talvez os criticasse porque não os entendia — não por falta de génio, mas provavelmente porque a força do entendimento se corrompe pelas conjunturas de uma época ou se calhar pelas vogas. O exterior da sua crítica era em tudo parecido com a crítica que lhe fazem os jovens de hoje. Não mudou de opinião — pelo menos na maioria dos casos. A maior parte daqueles velhos artistas critica-a hoje como há 60 anos. Mas isso por certo não é grande prova de que a crítica que lhes faz seja correcta. É prova de que, psiquicamente, é o mesmo jovem de então.
Konstandinos Kavafis, Poemas e Prosas, trad. Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis, Relógio D’Água, pp. 142-143, 1994.
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24.9.08
MUDAR DE CANAL
P.S.: a imagem no topo reproduz a capa do meu livro Estórias Domésticas (E Outros Problemas), o qual pode ser adquirido nas melhores livrarias do país ou encomendado directamente ao editor. Quiçá a leitura do mesmo não seja uma boa alternativa à estupidificação televisionada. Uns dirão que não, outros dirão que sim. Eu sugiro-lhe que experimente. Vai ver que custa menos do que mudar de canal.
LIDOS OU RELIDOS EM 2008 (3)
2. A casa-fialho é uma casa-corpo, isto é, uma casa-macaco, o mais longínqua possível dos seres que nos visitam e se deixam entrever nas alucinações motivadas por insuficiência alcoólica. Fialho é fialho e não gosta de cyborgs, a menos que se chamem, por exemplo, moura ou guerreiro ou quitéria.
3. Existir é representar mais uma vez a corrupção do corpo, castigá-lo até ao esquecimento. Esquecimento é uma palavra-órgão do corpo-fialho e daí a insónia, porque a insónia resulta do terror do sono onde não haja mais nada para esquecer. Não haver nada para esquecer é igual a perder o corpo. É como não haver mais álcool pra beber ou cigarros pra fumar, quase tão mau como, por exemplo, ter uma obra ou conquistar a santidade.
4. A salvação – essa puta – é tornarmo-nos, pela primeira vez na nossa epopeia azul, mortais. O corpo-fialho não quer ser Travolta, quer ser um “Travolta qualquer” (p 86), esse mesmo que diria “cozi-me por dentro” (p 25), “cortar-me todo” (p 35), “até desfazer retinas” (p 44) ou “estive perto de me afogar” (p 34); Travolta, como um verdadeiro herói, ter-se-ia afogado.
5. Claro que o autor-fialho depois (de fechar o livro) liga a televisão. Faz dieta durante alguns minutos, respira fundo três vezes, preocupa-se com não desiludir o editor. Sabendo que as estórias domésticas são apenas quase verdadeiras, voltamos a lê-las mais um ror de vezes.
Rui Costa
23.9.08
DAS FLATULÊNCIAS
ESTÉTICA FOTOGRÁFICA
O Mário Pires está a promover um curso de estética fotográfica e pede-nos que o divulguemos. Com todo o gosto. O Mário é autor do Retorta. Toda a informação sobre o curso pode ser obtida em http://esteticafotografica.org. É só clicar.
APRENDER A CONTAR #7
Uma tarde, eram quatro horas, o sr. X... voltava à sua casa para jantar. O apetite que levava não o fez reparar em um cabriolé que estava parado à sua porta. Entrou, subiu a escada, penetra na sala e... dá com os olhos em um homem que passeava a largos passos como agitado por uma interna aflição.
Cumprimentou-o polidamente; mas o homem lançou-se sobre ele e com uma voz alterada, diz-lhe:
— Senhor, eu sou F..., marido da senhora Dona E...
— Estimo muito conhecê-lo, responde o sr. X...; mas não tenho a honra de conhecer a senhora Dona E...
— Não a conhece! Não a conhece!... quer juntar a zombaria à infâmia?
— Senhor!...
E o sr. X... deu um passo para ele.
— Alto lá!
O sr. F..., tirando do bolso uma pistola, continuou:
— Ou o senhor há de deixar esta corte, ou vai morrer como um cão!
— Mas, senhor, disse o sr. X..., a quem a eloquência do sr. F... tinha produzido um certo efeito, que motivo tem o senhor?...
— Que motivo! É boa! Pois não é um motivo andar o senhor fazendo a corte à minha mulher?
— A corte à sua mulher! não compreendo!
— Não compreende! oh! não me faça perder a estribeira.
— Creio que se engana...
— Enganar-me! É boa!... mas eu o vi... sair duas vezes de minha casa...
— Sua casa!
— No Andaraí... por uma porta secreta... Vamos! ou...
— Mas, senhor, há de ser outro, que se pareça comigo...
— Não; não; é o senhor mesmo... como escapar-me este ar de tolo que ressalta de toda a sua cara? Vamos, ou deixar a cidade, ou morrer... Escolha!
Era um dilema. O sr. X... compreendeu que estava metido entre um cavalo e uma pistola. Pois toda a sua paixão era ir a Minas, escolheu o cavalo.
Surgiu, porém, uma objecção.
— Mas, senhor, disse ele, os meus recursos...
— Os seus recursos! Ah! tudo previ... descanse... eu sou um marido previdente.
E tirando da algibeira da casaca uma linda carteira de couro da Rússia, diz-lhe:
— Aqui tem dois contos de réis para os gastos da viagem; vamos, parta! Parta imediatamente. Para onde vai?
— Para Minas.
— Oh! a pátria do Tiradentes! Deus o leve a salvamento... Perdoo-lhe, mas não volte a esta corte... Boa viagem!
Dizendo isto, o sr. F... desceu precipitadamente a escada, e entrou no cabriolé, que desapareceu em uma nuvem de poeira.
O sr. X... ficou por alguns instantes pensativo. Não podia acreditar nos seus olhos e ouvidos; pensava sonhar. Um engano trazia-lhe dois contos de réis, e a realização de um dos seus mais caros sonhos. Jantou tranquilamente, e daí a uma hora partia para a terra de Gonzaga, deixando em sua casa apenas um moleque encarregado de instruir, pelo espaço de oito dias, aos seus amigos sobre o seu destino.
No dia seguinte, pelas onze horas da manhã, voltava o sr. F... para a sua chácara de Andaraí, pois tinha passado a noite fora.
Entrou, penetrou na sala, e indo deixar o chapéu sobre uma mesa, viu ali o seguinte bilhete:
“Meu caro esposo! Parto no paquete em companhia do teu amigo P... Vou para a Europa. Desculpa a má companhia, pois melhor não podia ser. — Tua E…”
Desesperado, fora de si, o sr. F... lança-se a um jornal que perto estava: o paquete tinha partido às oito horas.
— Era P... que eu acreditava meu amigo... Ah! maldição! Ao menos não percamos os dois contos! Tornou a meter-se no cabriolé e dirigiu-se à casa do sr. X..., subiu; apareceu o moleque.
— Teu senhor?
— Partiu para Minas.
O sr. F... desmaiou.
Quando deu acordo de si estava louco... louco varrido!
Hoje, quando alguém o visita, diz ele com um tom lastimoso: — Perdi três tesouros a um tempo: uma mulher sem igual, um amigo a toda prova, e uma linda carteira cheia de encantadoras notas... que bem podiam aquecer-me as algibeiras!...
Neste último ponto, o doido tem razão, e parece ser um doido com juízo.
Machado de Assis (1839-1908), O Alienista e Outras Raridades, org. João Camilo, p. 17, OVNI, 2007.
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LIDOS OU RELIDOS EM 2008 (2)
1. Sloterdijk começa por distinguir uma idade pré-moderna, em que as coisas acontecem de maneira diferente do plano que possamos ter, da idade moderna, em que se põe em marcha a “utopia cinética”, resultado de uma vontade de poder que crê poder realizar a Natureza/sonho que há a fazer.
2. Mas logo nos lembra que a criação que se põe em marcha na modernidade produz um movimento que gera alguma coisa que é sempre imprevista. As teorias da acção optimistas da idade moderna dão lugar ao mal-estar pós-moderno, quando percebemos que quem faz história faz sempre algo mais, produz ou acrescenta um (tipo de) movimento que nos arrasta em automatismos, anonimatos, produção de sucessos comerciais e lucrativos.
3. A modernidade - que inclui uma tendência para a motorização, outra para aligeirar as funções do sujeito mais sensíveis, lentas ou orientadas para a verdade, e outra ainda que diz respeito à logística (“apropriação estratégica do alheio”), ao volatilizar as tradições devido à progressiva “mobilização”, suscita uma importância crescente do “renascimento asiático” no Ocidente moderno: o “ser-para-o-movimento” da modernidade descamba num “ser-para-a-auto-aniquiliação”, o que requer uma mudança de sinal ontológico que alerte para um sentido do Ser como “ser-para-a-quietude-no-movimento” do pensamento asiático antigo.
4. E como ultrapassar o turbilhão de imagens em que o mundo se vê enredado, e como ultrapassar a catástrofe (Tchernobyl) e o pânico? Temos, para lidar com a desigualdade e a morte, a Metafísica, que parece ser o lugar da “pedra”, da pureza, porque somente o imóvel nos pode parecer alternativa à tal mobilidade que nos leva em direcção ao fim através da avidez e da violência. E neste ponto a interrogação de Sloterdijk é: Haverá outra alternativa para a fugacidade da vida que não tenha que ir parar à pedra metafísica?
5. Há uma alternativa que está sob o signo da natalidade: a Poiese. Criação, fabricação, acção, poesia. Poiese distingue-se de técnica porque “produz algo, isto é, o leva-em-frente-para-o-aberto, é a assimilação da produtividade natural pelo sujeito humano excêntrico”, enquanto que a “técnica técnica é uma consumpção demolidora (...), uma mobilização agressiva (...), uma procriação de monstros por monstros.”
6. A metáfora (que não é metáfora) da “natalidade” está na base de tudo, porque “o sabor do ser encontra-se (...) naquilo que consegue “existir”, naquilo, portanto, que participa no êxtase do ser-trazido-para-fora.” É assim que a filosofia se transforma aqui numa “ginecologia filosófica.”
7. Slotedijk preocupa-se com a política e a tão falada falta de credibilidade dos políticos. Afasta, no entanto, o que seria uma ingénua defesa dos princípios, revelando um entendimento das formações da consciência como agentes do salvamento do real. Quer dizer, é o mundo em perigo que faz nascer em nós os princípios que o possam salvar do perigo. E os políticos podem deixar de ser maus contemporâneos se se preocuparem com o urgente.
8. Certo é que já não podemos continuar a pretender desenhar a grande história universal e a transcendência. É preciso substituir a auto-realização do espírito (Hegel) pela ecologia, porque o nosso frágil planeta não suporta mais as continuadas agressões. A busca da verdade trouxe sempre o machado que fende. Temos a sensação de que já sabíamos. Fazer é mais difícil.
Rui Costa
22.9.08
ABJECTO
A MÚSICA FOI AO CINEMA
TRÊS CADEIRAS NO ALENTEJO
Aprestos, e deusas, de Atavio,
O culto em cima é de perfil
Porém, Todavia, e Contudo. Um
Pouco de barro na noite, fria
Como se chama? Diz que escondido
No meio das mulheres, o deus
Da Empena. À força de uns períodos
Castelos protegidos de antigas
Batalhas servem agora p’ra mudar o penso
E por Espanha três cadeiras nos deixa.
21.9.08
BRANCOS, PRETOS, MULATOS E BRASILEIROS
BONS EM QUÊ?
Por mais que me esforce, não consigo entender este slogan. Afinal somos bons em quê? A andar de cadeira de rodas? Em paralisias? A nadar? A ganhar medalhas? Seremos campeões na deficiência? No politicamente correcto? Sabemos que a GALP é boa a roubar os clientes. Mas em que mais seremos bons? Na língua portuguesa? Escreve-se “paralímpicos” (soa a pirilampo) ou “paraolímpicos”?
APRENDER A CONTAR #6
Naqueles tempos, em que a escuridão dominava a terra, José de Arimateia, acendeu uma tocha feita de pinho e desceu das colinas até ao vale. Tinha algo que fazer na sua própria casa.
E viu, ajoelhando-se sobre as duras pedras do Vale da Desolação, um jovem nu que se lamentava. Os seus cabelos eram da cor do mel e o seu corpo como uma flor branca, mas tinha-se ferido e colocado cinzas no cabelo, como se de uma coroa se tratasse.
Ele, o que tanto possuía, disse para o jovem que estava nu, a chorar: «Não me surpreendo que o teu desgosto seja tão imenso, pois Ele era certamente um homem justo».
Nesse instante, o rapaz respondeu: «Não é por Ele que choro mas por mim próprio. Eu também transformei água em vinho e curei o leproso e dei vista ao cego. Caminhei sobre as águas, e dos túmulos que tinham por esconderijos, expulsei demónios. Alimentei esfomeados em desertos onde nada existia que se pudesse comer, e ressuscitei mortos das suas estreitas habitações, e à minha ordem, diante de uma grande multidão, uma figueira estéril frutificou. Todas as coisas que esse homem fez, também eu as fiz. E, contudo, ninguém me crucificou.»
Oscar Wilde (1854-1900), Poemas em prosa, trad. Possidónio Cachapa, p. 19, Cavalo de Ferro, 2002.
#1 / #2 / #3 / #4 / #5
20.9.08
Fragmento # 63 - Pastelaria Marginal
Haja saúde
Maria João
BAIRROS BAIXOS
Contratei-me como detective de mim mesmo
para me perseguir pelas ruas interiores,
e tomo nota de infidelidades e movimentos falsos,
de cada traição que faço à minha pessoa.
Farejo o caixote do lixo como um cão
procurando pistas sobre os meus vícios,
perscruto em gestos e trejeitos acumulados,
entre palavras com as quais não disse o que penso.
Infiltro-me discretamente nas paixões baixas
que não me atrevo a confessar nem aos meus amigos
e tiro fotos comprometidas onde jazo
com homens e mulheres que não existem:
documentos esclarecedores que demonstram
uma dupla contabilidade de mim.
Não procuro aliviar a minha consciência
nem libertar-me dos meus pecados,
mas é impossível tocar na água sem revelar o lodo do fundo.
A gama não está completa se faltam as cores escuras,
e no seu caderno o investigador também anota
dias em que o sol resplandeceu.
Espio-me em silêncio pelas ruas
e desejo não resolver este caso.
A morte para um detective de si mesmo
é saber tudo do homem que persegue.
Versão de HMBF.