31.12.05

Ano Novo
Chico Buarque
1967

O rei chegou
E já mandou tocar os sinos
Na cidade inteira
É pra cantar os hinos
Hastear bandeiras
E eu que sou menino
Muito obediente
Estava indiferente
Logo me comovo
Pra ficar contente
Porque é Ano Novo
Há muito tempo
Que essa minha gente
Vai vivendo a muque
É o mesmo batente
É o mesmo batuque
Já ficou descrente
É sempre o mesmo truque
E que já viu de pé
O mesmo velho ovo
Hoje fica contente
Porque é Ano Novo
A minha nega me pediu um vestido
Novo e colorido
Pra comemorar
Eu disse:
Finja que não está descalça
Dance alguma valsa
Quero ser seu par
E ao meu amigo que não vê mais graça
Todo ano que passa
Só lhe faz chorar
Eu disse:
Homem, tenha seu orgulho
Não faça barulho
O rei não vai gostar
E quem for cego veja de repente
Todo o azul da vida
Quem estiver doente
Saia na corrida
Quem tiver presente
Traga o mais vistoso
Quem tiver juízo
Fique bem ditoso
Quem tiver sorriso
Fique lá na frente
Pois vendo valente
E tão leal seu povo
O rei fica contente
Porque é Ano Novo

30.12.05

O Insónia deseja a todos os seus leitores um excelente 2006
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P.S.: o último post de 2005 será só amanhã. A obra de arte acima reproduzida é da autoria de John Latham.

Neste ano de 2005

A partir de Daniel Filipe

Um homem como qualquer outro escondeu-se da vida no limbo das palavras. Teve trabalho de horário variável, chamam-lhe frágil: recibos verdes, flexibilidade, ossos partidos para reforma improvável. O galo que cacareja quotidianamente nos nossos ouvidos cada vez mais electrónicos. Neste ano de 2005, semanas cheias de vazios escuros. Câmaras lentas, planos americanos de rostos desconexos: alunos, formandos, no interior de uma sala de aula por vezes fastidiosa por vezes consoladora. Cinema aos sábados à noite, intervalado com jogos de bola, jantares burgueses e má-língua. Mulher e filha ao colo dos domingos azuis. Neste ano de 2005, férias no campo: praias em ruínas, o mesmo pôr-do-sol de sempre. O gosto pelos livros de poesia, bebedeiras ocasionais, trinta por uma linha. A televisão, a aparelhagem avariada, guitarradas de angústia, um computador. Ecrãs para o mundo que corre apressadamente na direcção de um futuro abismal. Missão cumprida: nada de negativismos, quanto muito um certo optimismo no pessimismo. Neste ano de 2005, dizer mais do que uma vez: silêncio. Deitado sobre a cama logo após o jantar, mas em vigília: insone. Com a filha aos saltos e o cão latindo a fome do costume. Um homem? Um osso duro de roer.

Entanto, enquanto dói,
ouçamos folhetins (de rádio ou doutros):
(cavalgam pelo
écran fotogénicos potros
e a rapariga beija o seu cow-boy).

A solidão é chaga que rói, rói?
Não pode a vida suportar o mito?
(Devora as unhas o espectador aflito,
não vá morrer de tiro ou tédio o herói).

E há quem diga que o diabo foi
o responsável desta história toda.

(Nem fomos convidados para a boda
leia-se FIM – da moça e do cow-boy).

Daniel Filipe

Daniel Filipe nasceu na Ilha da Boavista, Cabo Verde, em 1925. Morreu novo, em 1960, mas deixou uma obra consistente marcada pelos sentimentos de solidão e exílio. Veio para Portugal ainda criança, onde acabaria por concluir o Curso Geral dos Liceus. Colaborador das revistas Távola Redonda e Notícias do Bloqueio, estreou-se em livro no ano de 1949 com Missiva. A sua obra mais conhecida é porventura A invenção do Amor e Outros Poemas, publicada em 1961, após a edição de uma novela, O manuscrito na garrafa, e o Prémio Camilo Pessanha, pelo livro a Ilha e a solidão (escrito sob o pseudónimo de Raymundo Soares), no ano de 1956. Combatente da ditadura salazarista, foi perseguido e torturado pela PIDE. Trabalhou na extinta Agência-Geral do Ultramar e na área jornalística. Grande parte da poesia de Daniel Filipe destaca-se pelo combate ideológico e pelo comprometimento social, o que lhe valeu o estigma de poeta neo-realista.

Ut pictura poesis # 68 – O filho

Imagem respigada aqui:

Michelangelo Caravaggio, Ceia em Emaús, 1601
Óleo s/tela, 141x196.2cm
Nacional Gallery, Londres, Inglaterra
Maria João

29.12.05

CAFÉ CEUTA

Um velho entra no Café Ceuta e senta-se. Outro faz o mesmo, alguns minutos depois, e tira da mala o jornal. Dois velhos conversam junto ao balcão e no espelho ao fundo estão mais dois. Estou cercado – penso – mas acalmo-me e eis que chega o café. Começo então a reparar no tecto, nas cadeiras, no tilintar da chávena quando bate na mesa sacudindo a colher. Consigo até achar alguma piada à imagem de uma sombra turva interposta pelo vidro. Passou-me por completo o tesão e vou começar a escrever o romance que me tornará imortal.
Rui Costa

Heresias insones

No Jardim de Luz fala-se (escreve-se) com paixão acerca de Jesus. À questão “Jesus, um homem bom?”, MC dá uma resposta de fé: «Jesus não é somente e apenas um homem bom. É o homem plenamente divinizado. É a natureza humana levada ao Absoluto.» Valha-me Deus Nosso Senhor pôr em causa a fé seja de quem for! Considero a fé dos homens um bem absoluto, não podendo porém afirmar o mesmo sobre a manipulação dessa mesma fé. Mas sem pretender entrar em questões demasiadamente polémicas, para as quais não sinto qualquer vocação, e defendendo-me previamente do tom irónico que as minhas palavras inadvertidamente possam conter, ao ler aquela interrogação confesso ter pensado de pronto: “Bom? Ele foi mas é parvo.” Perdoe-se-me a heresia. Apoio-me na incomensurável capacidade de perdoar dos cristãos para aqui revelar e praticar alguns dos meus pecados. É que um ateu confesso, por mais que se esforce, apenas consegue ver na figura de Jesus, seja no homem, seja na divindade, uma enorme falta de senso. Que fique muito claro que nada tenho contra os cristãos nem contra a mensagem de Jesus Cristo. Há até alguns recados com os quais simpatizo e, provavelmente, pratico mais piamente do que alguns cristãos (pelo menos alguns que conheço e como tal se afirmam). Por exemplo, agrada-me a promoção do arrependimento (já aqui expliquei por quê), o ecumenismo, a rebeldia de algumas acções e a índole filantrópica de certos ditos. Não suporto, por outro lado, o tom eleito e evangelizador da mensagem cristã, o elogio idiota da dor e do sacrifício (felizes os que choram, o tanas!), a promessa de recompensas pela prática da bondade (assim como é castigo do vício o próprio vício, também é recompensa da bondade a própria prática da bondade - não há necessidade de um suposto Reino dos Céus para premiar os que apenas são o que devem ser), também não aguento o carácter maniqueísta e insuportavelmente fatalista com que se procura adestrar os homens (quem obedecer é o maior, quem desobedecer é uma treta), assim como julgo absolutamente extravagante a ideia de que pelo amor nos salvaremos… Tenham amor aos vossos inimigos, terá pregado Jesus junto daqueles que o crucificaram. Isto denota uma enorme falta de senso. Primeiro, porque o amor absoluto e incondicional não reconhece inimigos; segundo, porque para chegarmos à ideia de inimigo é preciso julgarmos os outros (o que entra em contradição com a mensagem de que não deveremos julgar ninguém e assim Deus não nos julgará); terceiro, porque amar um inimigo é, digamos assim, entregar o ouro ao bandido, isto é, deitar pérolas a porcos, dar aos cães o que é santo. Para terminar, há uma outra máxima cristã que julgo pouco ajuizada. Refiro-me àquela que nos aconselha a fazer aos outros tudo o que desejamos que eles nos façam. Começo a pensar no que isto significará do ponto de vista de um masoquista. Se eu desejar que a minha mulher me bata, deverei eu bater à minha mulher? Cala-te boca, antes que dês ideias.

TRINTA

Hoje aconteceu-me mais um cabelo branco
(não sei se tinhas dado com este:)
fica
mesmo ao lado da risca entre os
vinte e nove e
os trinta. O
dia de amanhã já existe ora
(a hora nas agendas)
lembra uma camisa limpa que
drapeja ao secar
(cada dia que me aceita
propõe
novo recomeço).
Todos temos uma alma gémea
frente ao espelho
tinha feito 15 anos
(hoje acatei outros quinze)
foi sempre no gesso da idade
que
assinei o poema.

João Luís Barreto Guimarães
João Luís Barreto Guimarães nasceu no Porto a 3 de Junho de 1967. Médico de profissão, estreou-se como escritor no ano de 1989 com o livro Há Violinos na Tribo, publicado em edição de autor. Seguiram-se os livros de poemas Rua Trinta e Um de Fevereiro (Limiar, 1991), Este Lado Para Cima (Limiar, 1994), Lugares Comuns (Mariposa Azual, 2000) e Rés-do-Chão (Gótica, 2003). Em 2001 reuniu os seus três primeiros livros sob o título 3, na editora Gótica. Vencedor de um prémio para jovens autores atribuído em 1992 pelo Centro de Informação das Nações Unidas, Casa de Imprensa e Sociedade Portuguesa de Autores, tem colaboração dispersa por várias revistas (Ler, Hífen, Relâmpago). Depois da aventura blogosférica inicial no extinto Quartzo, Feldspato & Mica, regressa agora a solo no Poesia & Lda.

Ut pictura poesis # 67- O Pai

El Greco
Imagem respigada aqui:

EL GRECO (1541-1614), A Trindade
óleo s/tela, 300x179cm
Museu do prado, Madrid, Espanha
Maria João

28.12.05

HERMAN

herman josé

Herman, o da mãozinha gorda. Os dedinhos redondos saboreando o mel. O relógio de luz a extravasar dos pulsos, avariando as luzinhas doidas na cabecinha cada vez mais gordinha. Enquanto a tua cera sai e entra no corpo, digo, porco, do ministro teu amigo. Aquele (mas quantos são?) que aumentou o jardim de propósito para tu caberes, mais os amigos jornalistas do Soares - com sua vozinha doce estabelecendo, como tu, a network portuguesa dos primos que te obram. Tens guito e restauração. Tens lambedores a postos mas és sempre tu quem lambe mais. Um dia votei em ti. A TV Guia trazia uma grelha para pormos uma cruz na melhor canção do festival RTP da canção. Assim: como é possível eu ter mudado tanto?

Rui Costa

27.12.05

As melhores ideias vêm-me quando o
telefone toca sem parar. Não tem graça
sentires-te louco – quando o teu
amor parte. Mais um problema para a minha cabeça:
A posse. Fabrico a minha própria espada
de Damasco. Nada fiz c/ o tempo.
Uma criança pequena salta pelo palco brincando
c/ a Revolução. Enquanto lá fora o
Mundo espera infestado de duros bandos
de assassinos & loucos de verdade. Suspensos
das janelas como que a dizer: sou forte –
amas-me? Só esta noite.
Amor de Uma Noite. Um cão uivando & ganindo
junto à porta de correr em vidro (porque não posso
estar lá dentro?) Um gato mia. O motor de um carro
embala com dificuldade – protesto
seco e áspero do carbono. Pouso
este livro - & começo o meu próprio livro.
Amor pela rapariga gorda.
Quando chegará ELA?

James Douglas Morrison

James Douglas Morrison nasceu em Melbourne, Florida, em 1943. Mais conhecido como vocalista dos The Doors, Morrison é autor de uma obra poética que iniciou ainda antes do seu interesse pela música. Estudante de teatro e cinema, as suas influências literárias fizeram-se notar em muitas das composições da banda de The End, When The Music's Over, The Soft Parade ou The Celebration Of The Lizard. De certo modo, pode-se mesmo afirmar que a música foi para James Douglas Morrison um veículo de expressão da sua poesia. O consumo exacerbado de drogas afectaram fatalmente o percurso de Jim Morrison, acabando este por falecer em Paris, em 1971, onde se tinha recolhido com o intuito de se dedicar a uma carreira exclusivamente literária. O seu primeiro livro, Os Mestres e as Criaturas Novas, foi publicado em 1971 e encontra-se traduzido para português, por Paulo da Costa Domingos, na colecção Rei Lagarto, n.º 14, da editora Assírio & Alvim. Em 1970 Morrison havia já editado em plaquete, numa edição de 200 exemplares, Uma Oração Americana, texto editado em Portugal na mesma colecção, n.º 1, juntamente com outros escritos como, por exemplo, a Ode a L.A. com o pensamento no falecido Brian Jones, poema distribuído pelo público em alguns concertos dos The Doors pouco depois da morte do mítico membro dos Rolling Stones, em 3 de Julho de 1969. A maior parte da sua obra poética foi editada postumamente.

26.12.05

CATARINA, A DAMA DAS FAVELAS

Catarina Furtado

É giro. Os pobres, como é óbvio, são felizes. Ela convoca, ela acena o bâton de sua boca e o ar enxota mosquitos para o lado incalculado do écran. Se não estivesse prometida à iguana, seus filhos seriam assim: brancos de seus dentes ou pele negra e suja e os dias metidos nos dedos. Catarina, quero dizer, contaminada de bondade em progressão, estaca. Vai ter que repetir; desta vez os meninos não saudaram (não sabiam?) Pelo menos não morreram, isso não: ser impossível tamanha falta de gosto. Eu ser Catarina, a branca. Eu gostar de pobre, do cheiro a merda dos poemas.
Rui Costa

Confiar

Eu não consigo viver sem confiar nas pessoas. Confiar nas pessoas é, para mim, parte substancial da razão de estar vivo. Por isso mesmo não me apresso nas amizades, desconfio sempre de elogios e apenas dou abraços com pelos menos 5 anos de relação ininterrupta. Eu gosto das pessoas que me dizem olhos nos olhos: és uma merda. Até porque não me dão novidade alguma. Não tenho paciência para atalhos, subterfúgios, jogos de linguagem nas relações humanas. Falta-me o gosto na obscuridade, aquele maná dos cínicos que dá pelo nome de «indirectas». Talvez porque leia muita poesia, quando estou com uma pessoa aprecio que ela seja o menos poética possível. Dispenso metáforas à hora do café, hipérboles a acompanhar tremoços. Ter um weblog ajudou-me, entre outras coisas, a aprender a não confiar em tudo o que está do outro lado. Este meu ano de 2005 vai-me ficar marcado também por isso. Fiz implodir um weblog onde investi muito do meu tempo durante dois anos e tal, sobretudo porque cheguei à conclusão que neste meio não há lugar para weblogs de confiança. O Insónia é um weblog de desconfiança, assume-se como tal desde o início. No entanto, há coisas que continuam afectar-me. Mesmo que eu não quisesse, elas afectar-me-iam: o que poderá levar alguém a atribuir tanta importanticidade ao que se escreve num weblog? Eu só vejo uma razão para isso: a verdadeira dimensão da nossa mesquinhez. A nossa, de todos, cainheza. É claro que há os que ladram mais alto e os que ladram mais baixo, mas isso não impede que não sejamos todos incomensurável e inevitavelmente caninos.

24.12.05

etanol said...

Acho que esta Diva é perfeita para a consoada. Imagina-a cantando para a virgem e os burrinhos, com a vaca e um bacalhau na mão, um peru maricas a fazer glu-glu, as pastorinhas do deserto seguindo a estrela do curral, uns reis baixos profundos em cânticos litúrgicos, ortodoxos, os reis têm de ser graves e como diz o grande César, a Roma o que é de Roma, eclesia sancta catolica apostolica; a virgem tinha 15 anos e Belém não era assim tão frio, não tinha neve como o Marquês de Pombal graças ao BES; e quanto a anjos, eles andam por aí a tocar instrumentos, estão de serviço nas missas do galo, com órgãos barrocos, Bach e coiso e tal, os anjos substituem este ano os jovens catequistas com as suas guitarradas, que estão de greve reivindicando o retorno à sagrada família; por amor à arte, permanecemos assim na verdadeira graça de deus.Santo insone Carnaval para todos vós.
Maria João Lopes Fernandes
PS - aproveitem bem porque vem aí uma longa Quaresma.

NATAL

Que nos trazes a não ser
lágrimas cada vez mais,
natal eterno a nascer
de outros natais…
Ligeira esperança que toca
os nossos olhos molhados
e o sangue da nossa boca,
amordaçados…

Ah bruxuleante luz
acenando ao longe em vão
e que a dor nos reproduz
em ilusão…
Ternura dum breve instante
que o próprio instante desterra,
morta no facto constante
de tanta guerra…

António Salvado

António Salvado nasceu em Castelo Branco a 20 de Fevereiro de 1936. Licenciado em Letras pela Universidade Clássica de Lisboa, desempenhou diversas funções, das quais se destacam as de professor do ensino liceal e superior politécnico e director-conservador do Museu Francisco Tavares Proença Jr. Foi distinguido com vários prémios e medalhas de mérito. A sua obra poética iniciou-se em 1955 com o título A Flor e a Noite. A maior parte dos seus livros encontra-se reunida em três volumes editados pela A Mar Arte. Publicou ainda vários ensaios, antologias e algumas traduções.

23.12.05

O Fatalista

O Fatalista, de João Botelho, ia conseguindo uma coisa que 1001 medicamentos não conseguiram até agora: pôr-me a dormir. Inspirado numa obra de Diderot, que não li, limita-se a ter de bom o que, em parte, não é seu: os textos. Os textos são, de facto, muito pertinentes. Parábolas certeiras das relações amorosas, das relações de poder, das relações com o divino. Como não li «Jacques, O Fatalista», não posso pronunciar-me sobre o que possa haver ou não de Diderot na adaptação de João Botelho. A isto se resumirá o mérito do filme: abrir o apetite para o livro. O resto é uma modorra insuportável onde, não fossem as prestações de Rogério Samora e Suzana Borges, teria sido fatal como o destino: uma grande ressonadela do princípio ao fim. Para ter piada, não tem ritmo; para ter ritmo, não tem fôlego; para ter fôlego, não tem humildade. Presunçosas encenações teatrais, onde alguns excelentes actores acabam por desfalecer num fastio insuportável. Para o final, João Botelho arrisca uma montagem que, não fosse a sensação de pretensiosismo experimental para o qual já não tenho pachorra, até poderia resultar. Não resulta, porque o facto da linguagem estar de tal forma elaborada torna quase hermética a compreensão dos intentos finais. Estavam duas pessoas na sala. Eu, mais uma outra que, por acaso ou talvez não, por quatro vezes puxou do telemóvel para fazer telefonemas. Em qualquer outra circunstância, eu levaria a falta de educação a mal. Mas ali, nem queiram saber, aquele desrespeito aliviou-me do tédio que o filme me estava a causar. Fica-me uma dúvida: por que razão o patrão, depois de ter partido o joelho, nunca coxeou? Hipótese a: o patrão é coxo por natureza; hipótese b: o patrão não partiu o joelho; hipótese c: o filme coxeia pelo patrão.

ÁRVORE DO MÊS

É com grande prazer que anunciamos a premiada do mês de Dezembro, este plátano do Largo da Parada em Campo de Ourique, tenaz, firme exemplo de dedicação e amor à nossa grande cidade de Lisboa. Pedimos à premiada o favor de se dirigir às nossas instalações a fim de receber o merecido prémio.
Rui Costa

GÉNESIS

E eu disse falo e ela fê-lo.
Rui Costa

CORAÇÃO A PRÉMIO

Eu cá faço sempre questão de dizer às miúdas que conheço que ganhei um prémio de poesia. É que assim quase as consigo convencer de que não passo a vida a pensar só em sexo.
Rui Costa

Ut Pictura Poesis #66 - auto-retrato feminino nº 9

Imagem respigada aqui:

Artemisia Gentileschi, Auto-retrato como alegoria à pintura, 1630
Óleo s/tela, 96,5x73,7cm
Castelo de Windsor, Inglaterra
Maria João

21.12.05

A PÁTRIA

A dor de feridas. A sede nas areias do deserto,
a fome nos castelos sitiados, a morte no campo
de batalha. Dizem, isto é a pátria, a tua pátria.
Mas também te podem dizer
és novo, és velho e a dor das feridas percorre-
-te, feroz, o anódino corpo. A fome leva-te ao
roubo em plena cidade e é tão difícil encontrar o
que pear, como acalmar a sede no deserto. A morte
pode vir numa cama de hospital, sozinho, a meio
da abandonada noite. Dizem
isto é a tua vida, a quadra dos teus belos dias
passageiros. Isto é ainda a tua pátria. E tudo
parece trair-te
deus, os amigos, os deuses. Palavras, todas elas,
de fria e morta expressão. Mais vale
que nos crave o rosto e o peito e nos esmague os
colhões
a garra de um lince e que nos devore no fogo
de quem descobre um segredo que não temos, que
não, que nunca existiu.

João Miguel Fernandes Jorge

João Miguel Fernandes Jorge nasceu no Bombarral em 1943. Poeta, ficcionista, ensaísta e crítico de arte, licenciado em Filosofia pela Universidade de Lisboa, foi professor do ensino secundário e professor de Estética na Escola de Cinema do Conservatório Nacional. Pode-se dizer que foi a partir da publicação do seu primeiro livro, Sob Sobre Voz (1971), que a geração de 70 passou a ser identificada como tal. E com ela aquilo a que foi chamado, com maior ou menor propriedade, o “regresso ao real”, por oposição ao formalismo da linguagem verificado na década precedente. Autor de uma obra extensa, as colectâneas de poemas começaram em 1987 a ser coligidas em volumes de Obra Poética. Outra constante é a actividade ensaística no domínio das artes plásticas e da fotografia, com intervenção regular na imprensa (A Capital, O Independente, Semanário, Expresso, etc.) e em diversas revistas da especialidade. Poemas seus encontram-se dispersos por revistas como O Tempo e o Modo, Colóquio-Letras, Nova, Sema, Raiz & Utopia, Belém, Europe, etc. *

O PEOPLE

"People are exasperated by poetry which they do not understand and contemptuous of poetry which they understand without effort."
T.S. Eliot
Rui Costa

"RIMA POBRE"

"Há poetas que vão directamente em demanda da visão: não acreditam na presença da idealidade em vocábulos demasiado próximos do banal e em construções que surjam como demasiado evidentes aos hábitos da verbalização. A matéria surge-lhes como inimiga do espírito."
Joaquim Manuel Magalhães, "Rima Pobre"
Rui Costa

MIL E UMA FOLHAS

É impressão minha ou no Mil Folhas o pessoal quase todo passa o tempo quase todo a falar das proezas dos amigos?
Rui Costa

19.12.05

A opacidade das leituras

Rui Manuel Amaral já tem chamado a atenção para alguns dos vícios menos suportáveis na nossa crítica literária que se dedica mormente à poesia. É curioso que o tenha feito, por mais do que uma vez, enviando-nos para textos do crítico e também poeta Jorge Gomes Miranda. Digo que é curioso porque esta semana, no suplemento Mil Folhas, com o qual o referido poeta colabora amiúde, acontece algo, quanto a mim, ainda mais extraordinário. Eduardo Prado Coelho, crítico de monta, escreve um texto de opinião (A Transparência das Palavras) sobre a mais recente colectânea de poemas do autor de A Hora Perdida (esse mesmo: Jorge Gomes Miranda). Não está aqui em causa o livro de Miranda, que ainda não li mas vou ler (tal como tenho feito com todos os outros da sua autoria). Está em causa um texto supostamente crítico do mais inútil que se possa imaginar. Digo, sublinho, repito: inútil. Eduardo Prado Coelho não diz absolutamente nada de substancial sobre o livro, limitando-se a citá-lo 21 vezes. 21 vezes! Se nos dermos ao trabalho de sublinhar as citações, ficam, do punho de Eduardo Prado Coelho, meia dúzia de frases cuja substância se pode resumir a isto: «Jorge Gomes Miranda escreve com palavras quase transparentes, mas ele próprio nos diz a meio do livro: “Quanto mais a palavra é transparente / mais a morte aí vive.” Sim, porque a morte também vive.» E pronto. Fica o leitor a saber que o poeta escreve com palavras transparentes e que a morte também vive. Não há pachorra!!! Mais valia fazer como em tempos se fez no Independente: uma ou duas páginas com os poemas, para utilizar linguagem grata a Prado Coelho, na vertical.

CREDO

As infinitas

pequenas coisas. Por uma vez respirar tão-só
na luz das infinitas

pequenas coisas
que nos rodeiam. Ou nada
pode escapar

ao encanto desta escuridão, o olhar
descobrirá que somos apenas
o que nos fez
menos do que somos. Nada a dizer. Dizer:
as nossas vidas mesmas

dependem disso.


Tradução de Rui Lage.

Paul Auster
Paul Auster nasceu a 3 de Fevereiro de 1947, em Newark, New Jersey. Entre 1969 e 1970 estuda literatura na Universidade de Columbia. Publica artigos sobre livros e cinema. Em 1971 parte para Paris; trabalhos ocasionais, por entre a escrita e um mês no México, como assistente de um projecto de livro falhado. Volta a Nova Iorque em 1974. Casa com Lydia Davis. Publica o primeiro livro de poemas. Sobrevive de traduções e de artigos para a imprensa. Em 1975, uma bolsa permite-lhe ficar oito meses a escrever (é nesta fase que surge a peça Blackouts, embrião do romance Fantasmas). O seu filho Daniel nasce em 1977. Dificuldades financeiras graves levam-no a tentar concursos e venda de jogos e a fazer uma história de detectives (assinada Paul Benjamin). Durante 1978 não escreve. O casamento desfaz-se. Um ensaio de dança a que assiste por acaso inspira uma pequena ficção no princípio de 1979. O pai morre, deixando uma herança que lhe permite escrever durante algum tempo. Regressa às traduções de Mallarmé, conhece Samuel Beckett, um dos escritores que mais admira, e a quem enviara umas traduções de poemas franceses – Beckett aprova-as. Em 1980 publica o último volume de poemas. Instala-se em Brooklyn. No ano seguinte, encontra Siri Hustvedt, uma escritora de origem norueguesa (com quem continua casado, e de quem tem uma filha, Sophie). Trabalha em A Cidade de Vidro, o seu primeiro romance, publicado em 1985. Em 1986 começa a dar aulas na Universidade de Princeton.

18.12.05

Triste quem ama, cego quem se fia
Da feminina voz na vã promessa!
Aspira a vê-la estável! Mais depressa
O facho apagará, que espalha o dia.

Alada exalação, que na sombria
Tácita noite os ares atravessa,
Foi comigo a paixão volúvel de essa
Que o peito me afagava e me feria.

Do desengano o bálsamo lhe aplico,
E a teus laços, Amor, sem medo exponho
Dos benéficos céus o dom mais rico.

Vejo mil Circes, plácido, risonho;
E se fé me prometem, ouço, e fico
Com quem despertou de aéreo sonho.

Bocage

Bocage
nasceu em Setúbal a 15 de Setembro de 1765. Foi o maior poeta português do século XVIII, que se irmana com Camões no destino do estro e nas desventuras de uma existência repartida entre Portugal e a Índia. Manuel Maria l’ Hedois de Barbosa du Bocage - de seu nome completo - era filho de um advogado e de uma senhora francesa de ascendência normanda. Órfão de mãe desde os dez anos, assentou praça em Setúbal em 1781, tendo-se alistado dois anos depois na recém-fundada Academia dos Guardas-Marinhas, em Lisboa. Conheceu então a boémia lisboeta, os botequins, o Nicola, onde o seu génio poético se afirmou no improviso e lhe ganhou aplausos. Após estada na Índia, Bocage aderiu à Nova Arcádia, onde assumiu o pseudónimo literário de Elmano Sadino. Em 10 de Agosto de 1797 foi preso por ordem do intendente Pina Manique, acusado de ser "autor de papéis ímpios e sediciosos". Consumido por um quotidiano desregrado, contraiu um aneurisma, que o forçou ao recolhimento e o levou a reconciliar-se com as normas convencionais da existência e com os inimigos. Reduzido a extrema penúria, foi graças aos esforços de um amigo, José Pedro da Silva, que lhe recolheu os poemas compostos durante a enfermidade e os publicou, vendendo-os pela rua, que o poeta auferiu alguns recursos com que manteve o modesto lar. Morreu a 21 de Dezembro de 1805.*

(seja)

< Pena que este Diário não possa ser mais frequente, mais diário... porque se a minha vida é um romance isto daria, involuntariamente embora e tendo-me como único cúmplice leitor, um romance.
Luiz Pacheco, Diário Remendado, 24/11/73.

inês said...

POEMA ADVENTÍCIO

para o "Insónia"

As minhas palavras não
têm aposento, nem sequer
são as minhas palavras. Habitam
ao relento, evadidas dum léxico
insurrecto que não visa livros
adoptados ou a indizível ausência
que as renega: o silêncio. Romper
o silêncio, para que uma nova Ordem
advenha. Nem que seja
a soletrar um verso.

I. L.

16.12.05

4 x 4 = 0

Por namorado dos impulsos
que os nervos tensos consentiam,
foi-se a reserva dos soluços,
foi-se o motivo de alegria.

Só o café com seu negrume
sugere ardente luta obscura:
o traço obsceno sobre o muro
e a aristocrática voluta.

Passeiam passos e chapéus
com seu odor a vida velha
e o poema (cão inquieto)
lá foge à trela de uma estrela.

Quanto às palavras evocadas
para união pura e secreta
resignaram-se abstractas
a não ser mais do que etc.

 António Manuel Couto Viana

António Manuel Couto Viana nasceu em Viana do Castelo em 1923. Poeta, dramaturgo e encenador, foi director artístico do Teatro do Gerifalto. Foi, com David Mourão-Ferreira, um dos directores da revista Távola Redonda, nela tendo surgido vários dos seus poemas. Esteve ainda ligado a diversas publicações de literatura e cultura surgidas nos anos 50, com destaque para a Graal (1956-1957, que dirigiu também), a Colóquio-Letras, O Diabo e O Tempo e o Modo. Na obra de António Manuel Couto Viana confluem várias tendências, desde o presencismo a correntes alternativas como o surrealismo, ou o existencialismo, numa visão frequentemente irónica e lúdica de si mesmo. Numa fase mais tardia, são ainda de notar influências do pensamento messiânico e sebastianista, num sentimento de declínio do país e da vida actual, em geral. Estreou-se, em 1948, com a obra de poesia O Avestruz Lírico. Com vasta obra publicada, foram-lhe atribuídos os prémios Antero de Quental (1949), nacional de Poesia (1965) e Camilo Pessanha (1993).*

14.12.05

Livre de Reclamações

Se bem escutei, o governo apresta-se para alargar o número de entidades obrigadas a possuir livro de reclamações. Sobre isto, duas coisas. A primeira consiste numa desconfiança congénita para com este tipo de “remedeios” sociais. Se o governo está realmente preocupado com o exercício da cidadania, deve começar por educar as pessoas. Temo que, porque tal não esteja a ser realizado, grande parte dos cidadãos consumidores não se sinta sequer apto a reclamar por escrito. A segunda nota, prende-se a um facto comigo ocorrido há coisa de cinco anos. Vai assim de jorro e com a maior brevidade possível: há 5 anos acompanhei a minha actual companheira à central rodoviária de Rio Maior; comprámos bilhete para Lisboa e, como ainda nos restava cerca de ¼ de hora, resolvemos ir beber um café a uma pastelaria nas imediações; quando regressámos à central, qual não foi o nosso espanto, o autocarro já havia partido (faltavam, segundo o relógio da central, 5 minutos para a hora de partida); tentámos resolver ali a situação, o que se revelou impossível dado o carácter obtuso do chefe da central; pedimos livro de reclamações; após insistência nossa, e visível atrapalhação do sr., foi-nos revelada a inexistência de livro de reclamações na dita; telefonei para a GNR , de onde me informaram não lhes ser possível deslocarem-se ao local; foi-me assim solicitado que fosse eu a dirigir-me ao posto da GNR, o que fiz, de modo a poder apresentar queixa; passado cerca de um ano, recebi em casa uma carta do tribunal de Rio Maior a informar-me do arquivamento da queixa por motivos de procedimento indevido. Queira lá isto dizer o que quiser, a verdade é que fiquei a sentir a inutilidade do livro de reclamações. Por isso afirmo: antes de se optar pelo livro de reclamações, julgo que seria importante não só certificarmo-nos de que os cidadãos sabem reclamar por escrito como também informá-los sobre o que deverão fazer se o mesmo não for facultado ou se não existir de todo no estabelecimento em causa. Assim se preveniria que procedimentos indevidos não servissem para deixar impunes alguns imbecis.

E esta no intervalo?

< Não por acaso, decerto, comecei a escrever contos depois do choque de ouvir o Herberto Helder e dos longos meses, anos, de contacto com Tchekov. >
Luiz Pacheco, Diário Remendado, 6/6/73.

A VERDADE ERA BELA

A verdade era bela,
como vinha nos livros.
À beirinha das águas
a verdade era bela.

Os que deram por ela
abriram-se e contaram
que a verdade era bela,

Quase todos se riram.
Os que punham nos livros
que a verdade era bela,
muito mais do que os outros.

A verdade era bela
mas doía nos olhos
mas doía nos lábios
mas doía no peito
dos que davam por ela.

Sebastião da Gama
Sebastião da Gama nasceu no dia 10 de Abril de 1924 em Vila Nogueira de Azeitão. Licenciado em Filologia Românica, pela Faculdade de Letras de Lisboa, foi professor do Ensino Técnico Profissional. Estreou-se nas letras no ano de 1945, com o livro Serra-Mãe. Colaborador de revistas como Mundo Literário, Árvore e Távola Redonda, realizou também algumas palestras e conferências. A sua carreira foi abruptamente interrompida pela morte, causada pela tuberculose, decorria o ano de 1952.

13.12.05

Perdão, eu é que tenho andado a sofrer da técnica do empata.

< O pior ainda não é o literário, é o humano. Na verdade, os créditos do Pessoa perante a posteridade eram apenas literários e em super-força e grandeza. Os meus quero-os humanos porque a posteridade merece-se ou não por obras e não apenas as literárias mas as humanas. E eu tento que sejam estas a fazerem-no. >

Luiz Pacheco, Diário Remendado, 29/4/73.

Ut pictura poesis# 65 – Auto-retrato feminino nº 8

Imagem respigada aqui:

Judith Leyster, Autoretrato, 1630
Óleo s/tela, 74.61 x 65.09 cm
National Gallery of Art, Washington , EUA

Sobre a artista:
Maria João

12.12.05

A PONTE

Entre instante e instante,
entre eu sou e tu és,
a palavra ponte.

Entras em ti mesma
ao entrar nela:
como um anel
o mundo fecha-se.

De uma margem à outra
há sempre um corpo que se estende,
um arco-íris.

Eu dormirei sob os seus arcos.

Octavio Paz

Octavio Paz nasceu no México no dia 31 de Março de 1914. Diplomata durante vários anos, o que lhe proporcionou o contacto com múltiplas culturas e múltiplos sistemas de valores, abandonou a carreira em 1968, quando era embaixador na Índia, como forma de protesto contra o massacre de estudantes mexicanos pelo Governo do seu país. Seguidamente, viveu em Paris e foi professor em Cambridge, tendo regressado ao México em 1971, onde fundou e dirigiu a revista Plural, uma das mais prestigiadas publicações do género em toda a América Latina. A atribuição, aos setenta e seis anos de idade, do Prémio Nobel da Literatura, veio coroar uma longa série de distinções internacionais. Escritor humanista aberto a todas as formas de expressão, a sua obra sintetiza admiravelmente a herança cultural do México com o saber contemporâneo numa reflexão sobre os limites do tempo e as raízes do Homem em que «a sua poesia apaixonada, de horizontes amplos» surge como a forma suprema de liberdade. Faleceu em 1998. (A partir de Antologia Poética [1935-1987], organizada por Luís Pignatelli)

Comentário ao comentário # 2

A Maria João deixou-se espicaçar por este post. Ainda bem. Mostra, entre outras coisas, um sentido de indignação que é cada vez mais raro num país de gente amorfa e passiva, de gente tá-se bem. As questões por ela levantadas merecem-me alguns esclarecimentos: Ponto 1: A intenção do post intitulado Na Companhia do Mil Folhas é chamar a atenção para o despropósito da publicidade atribuída à iniciativa em causa. A Maria João começou logo por revelar, e fez muito bem, que dá aulas de iniciação à pintura na Companhia do Eu. Ora bem, pergunto eu então: por que não um texto no Mil Folhas sobre as várias iniciativas da Companhia do Eu em vez daquela publicidade a uma iniciativa específica (por acaso) de um dos colaboradores do suplemento em causa? Parece-me, no mínimo, pouco ética, do ponto de vista jornalístico, a opção feita. Ponto 2: Nada me move, antes pelo contrário, contra projectos como a Companhia do Eu (o que seria um contra-senso, dado já termos aqui divulgado a mesma). Mais fossem eles (os projectos) e, não duvido, melhor andaria este mundo. No entanto, há qualquer coisa que me move, isto é, que me indigna: os privilegiados. Consigo imaginar as dificuldades que o Pedro Sena-Lino deverá sentir em erigir a Companhia do Eu. Digo mais, o trabalho dele seria desnecessário se tivéssemos uma política de ensino artístico como deve de ser. Mas com tanta iniciativa, porquê privilegiar, do ponto de vista da divulgação, a do Pedro Sena-Lino? Só por isso me referi aos que não necessitam bater a portas para que elas lhes sejam abertas. Sei muito bem como as coisas funcionam, como as simpatias e as atençõezinhas ajudam a abrir portas. Agora não me peçam que não considere isso injusto relativamente aos que não merecem as mesmas atençõezinhas. Ponto 3: Apesar de me considerar tacanho em muitas matérias, não me considero o suficiente para pôr em causa o ensino das artes (sejam elas quais forem) por razões anti-mercantilistas. Repito: eu não me revejo nessa atitude, mas sobretudo não me arrogo no direito de julgar quem se reveja. Vivemos num país livre, felizmente, cuja riqueza fundamental é a liberdade de pensamento e a liberdade de iniciativa. A remuneração é um direito de quem trabalha, de quem presta um serviço. O que é trabalho e serviço é relativo a quem o avalia. Ponto 4: Termino então desculpando-me pela minha tacanhez assumida no que respeita a outras matérias: o ensino da poesia. Consigo imaginar Van Gogh a ter aulas de pintura, mas não consigo imaginar, perdoem-me, Pessoa a ter aulas de poesia. Isto prende-se a um velho preconceito, muito meu (mas não só), que não consigo combater: a intransmissibilidade do sentido do poético. Não se trata de considerar divinas coisas que o não são. Era o que mais faltava! Logo num ateu incorrigível… Nem se trata de negar a existência de aspectos técnicos na feitura de um poema. Trata-se de olhar para a poesia de uma forma simplista, ou seja, como eu julgo que ela deve de ser olhada. Poesia = Respiração. Talvez o Pedro Sena-Lino pretenda ser um instrutor de respiração, talvez ele, e os outros que se dedicam à mesma actividade, não pretendam outra coisa que não seja praticarem respiração assistida. Digo-o, sem ponta de ironia. Mas eu julgo que só a solidão pode ensinar alguém a respirar. E que essa solidão não é, em nenhum caso, substituível por um mentor, instrutor, formador, encaminhador, o que seja... São estes os meus dogmas. Estão confessados...

Comentário ao comentário # 1

O post intitulado A carreira mereceu de alguém que se "identifica" como sendo O/0 o seguinte comentário: «Enunciar imperfeições ou enumerar defeitos é o modo mais banal de... desejo. À falta de as pessoas terem coragem para afirmar que se julgam melhores que «este» ou «aquele», insinuam-no, de forma (supostamente) modesta, e, assim, sobressaem sobre eles.» Se bem compreendi, o comentário pretende dar a entender que eu sofro de falsa modéstia. Ponto 1: o post em causa é sobre o meu recorrente desencanto. O que eu pretendi com aquele desabafo foi, de uma forma irónica, provocar a ideia de que o conhecimento e a formação académica em Portugal não servem para nada, são desaproveitados, inúteis. Repare-se que o remate do post remete para questões monetárias. Ora, sabemos bem que não são as carreiras académicas o que mais contribui para boas reformas. Ponto 2: Ao contrário do que se insinua no comentário ao post em causa, eu não pretendo enunciar as imperfeições de ninguém. Sendo licenciado (por acaso na mais inútil das disciplinas), seria, no mínimo, incoerente achar que o conhecimento académico, mais ou menos aprofundado, é uma imperfeição. Ainda assim, creio, por defeito de formação, que ele não é outra coisa senão a ânsia duma menor imperfeição. Ponto 3: Parece-me assim evidente que o referido post não é sobre mais ninguém que não eu próprio, como, aliás, a maior parte dos posts que aqui tenho vindo a publicar (mesmo quando assim não parece). Permitam-me então concluir revelando o por quê do dito textozito: o ter experimentado, após uma discussão sobre o sentido de uma vida de trabalho, aquela sensação, que por certo muitos de nós vamos experimentando, de que andamos a desperdiçar as nossas vidas. Ou seja, morreremos “sábios” e mais ou menos “ricos” mas, muito provavelmente, pouco vividos ou, se quiserem, pouco experimentados na vida. Já agora, termino com uma citação que outra coisa não me leva a pensar/sentir que não seja o que acabei de tentar explicar: «…falta-me a língua, isto é, a bagagem filosófica. Sobra-me, porém, a experiência…» (Luiz Pacheco, in Diário Remendado) Haverá por aí alguém que consiga, como eu, invejar essa experiência e não outra coisa qualquer?

Ut pictura poesis# 64 - Auto-retrato feminino nº7

Imagem respigada aqui:

Angelica Kauffman, Auto-retrato hesitando entre a música e a pintura, 1791
Óleo s/tela, 147x216cm
Colecção Privada

Sobre a artista:
Maria João

11.12.05

A carreira

A maior parte das licenciaturas não serve para nada. Assim como a parte maior das pós-graduações. Já quanto a mestrados, não podemos afirmar o mesmo. Eles não servem de todo para nada. São uma pura inutilidade. E os doutoramentos? Bem, os doutoramentos não servem de nada para todo. Mas é claro que há que ter na mira a reforma. A reforma é que há-de servir para alguma coisa. Velhos e podres, mas de bolsos cheios! Não saltaremos nós, saltarão as moedas nos nossos bolsos forrados.

I don't give a fuck about the FBI
I don't give a fuck about the CIA
I don't give a fuck about LSD
I don't give a fuck about anything
Butthole Surfers

10.12.05

Na Companhia do Mil Folhas

No Mil Folhas desta semana, página 3, uma nota com direito a fotografia sobre a Oficina do poema que será dirigida pelo respeitável crítico literário e poeta Pedro Sena-Lino. Lembramos que o mesmo Pedro Sena-Lino vem exercendo trabalho crítico no supracitado suplemento, o que aliás pode ser constatado no presente número com uma entrevista a Mário Cláudio e uma recensão a Os Sonetos Italianos de Tiago Veiga. Já me encarreguei de fazer notar que nada me move contra este tipo de negócio (a palavra não é exagerada, pois os 145€ que é preciso desembolsar para aprender a escrever poemas com Pedro Sena-Lino não deixam margem para dúvidas). Mas resumo: se houver alguém que queira pagar para aprender a escrever poemas, então faz todo o sentido que o negócio exista. Sou pelas liberdades individuais, desde que não prejudiquem terceiros. E para mais, há por aí tanto desemprego e tanta gente desesperada sem nada que fazer que todas as ideias que combatam o flagelo são bem vindas. É certo que não me revejo minimamente neste tipo de mercantilismo do poético, mas, sobretudo pela liberdade de cada um, estou-me nas tintas se houver quem se reveja (confesso que em tempos pensei em abrir uma loja de poemas a metro; por desaconselho familiar, virei-me para a poesia no Metro). O anedótico da situação está, quanto a mim, na publicidade que a iniciativa merece no suplemento para o qual o crítico literário e poeta contribui com o seu labor. Não haverá outras iniciativas a merecerem tal destaque? Merece esta iniciativa o destaque que lhe é dado? Mas, já agora, (re)acrescento: será possível ensinar a escrever poemas? Quem determina o que possa haver a alterar num poema? A técnica? O autor? Um professor de poesia? Quem está habilitado a ensinar poesia?

O meu Natal não vai ser igual ao teu

No JL, esta pérola: «A poesia não foi dos géneros de maior produção editorial nos últimos tempos, ao contrário do que pode já ter acontecido noutros tempos». Dos últimos tempos, referem-se: O’Neill, Pound, Kavafis, Ramos Rosa a meias com Isabel Aguiar Barcelos, Gastão Cruz, Régio, Camilo, Eça e Ramalho Ortigão. Tem toda a razão o autor do textozinho. Doutros tempos são já, assim que me lembre, os livros editados ou reeditados este ano de Ana Luísa Amaral, António Graça de Abreu, Armando Silva Carvalho, Blaise Cendrars, Carlos Mota de Oliveira, Daniel Jonas, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Edward Lear, Fernando Alves dos Santos, Fernando Tavares Rodrigues, Gerrit Komrij, Hélder Moura Pereira, Heliodoro Baptista, Inês Lourenço, Isabel de Sá, João Miguel Henriques, Goethe, José Ángel Cilleruelo, José-Augusto de Carvalho, José Tolentino Mendonça, José Viale Moutinho, Manuel de Freitas (para aí uns 4), Oscar Wilde, Paulo da Costa Domingos, Pedro Sena-Lino, Rui Costa, Rui Pires Cabral, Eliot, Vasco Gato, Vasco Graça Moura, Yves Namur, só para citar alguns.

Eu, quem?

Fernando Pessoa simboliza o virtual melhor do que qualquer Playstation. O virtual, digo já, sempre existiu, porque a primeira coisa (suponho que tenha sido assim) já era outra coisa. A sofisticação crescente do universo é um movimento de virtualização (a invenção da linguagem e do livro são dois passos significativos deste «movimento»: falar é dizer mais do que o que sou (ainda que me saiba a pouco o que consigo exprimir) e ler é poder tomar conta de ideias de alguém que apesar de não estar ali se torna meu. O virtual gera muitas vezes reacções do tipo: as pessoas deviam ser mais simples, estar mais perto da natureza. Ora, não podemos esquecer-nos que sentir «saudades» de alguém (por exemplo) só é possível por causa desse gesto de virtualização que consiste em tornar presente algo que não está no aqui e no agora. Só somos o que somos, sentindo, pensando, porque nos virtualizámos constantemente até chegarmos ao que somos hoje (mas claro que se podem criticar as formas sociais que levam a que se contacte mais por telemóvel ou email do que «ao vivo»…)
E se digo tudo isto é porque: Pessoa percebeu, como muito poucos, que escrever é ser outro (porque ser já é ser outro). Percebido isto, dedicou-se a ser outro exuberantemente (porque o era e tinha a consciência disso, e tinha também a consciência de estar tendo a consciência disso).
A literatura (e não só) tende à despersonalização. Os textos do futuro serão colectivos e portanto sem autoria nomeável. Seremos textos hiperlincados uns dos outros, lugares de passagem, rizomas. Circularemos pela memória de outros sem identidade (fixa).
A despersonalização que Fernando Pessoa conseguiu foi tímida: ele ainda sentiu necessidade de identificar os vários heterónimos, de os nomear. Isto tornou a traição à unidade aceitável aos seus olhos e aos olhos dos leitores. Não era preciso tanto nome: bastava-lhe ter assinado Fernando ou não ter assinado nada.
Finalmente, Fernando Pessoa caiu num relativismo ontológico que não lhe permitiu extrair lições significativas no plano ético: o que fazer se no Infinito todos os comportamentos se equivalem? Quando tudo é igualmente bom e mau? Por que é que tu estares aqui há-de ser melhor do que tu não estares aqui? E precisamente por causa disto foi capaz de dizer (ou dar a dizer): « Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo»…
Rui Costa, in JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, Ano XXV / N.º 918, de 7 a 20 de Dezembro de 2005.

the United States is without doubt the greatest show on the road

A justificação para a invasão do Iraque era o facto de que Saddam Hussein possuía um perigoso arsenal de armas de destruição em massa, algumas das quais podiam ser disparadas em prazo de apenas 45 minutos e seriam capazes de causar chocante devastação. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque tinha um relacionamento com a rede Al Qaeda e era co-responsável pela atrocidade de 11 de Setembro de 2001 em Nova York. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade. Fomos informados de que o Iraque representava uma ameaça para a segurança do mundo. Garantiram-nos que isso era verdade. Não era verdade.
A invasão do Iraque foi um acto de banditismo, um acto de gritante terrorismo de Estado, e demonstrou completo desprezo pelo conceito de lei internacional. A invasão foi uma acção militar arbitrária inspirada por uma série de mentiras e mais mentiras, por absurda manipulação dos media, e portanto do público; um acto cujo objectivo é consolidar o controle económico e militar norte-americano sobre o Médio Oriente, disfarçado de acção de último recurso, já que todas as demais justificações não conseguiram defender a ideia de que se trataria de um acto de libertação. Uma formidável afirmação de poderio militar, responsável pela morte e mutilação de milhares e mais milhares de pessoas inocentes.
O que aconteceu à nossa sensibilidade moral? Será que algum dia existiu? O que quer dizer essa expressão? Refere-se a um termo raramente empregado nos nossos dias, a consciência? Uma consciência que se relaciona não apenas aos nosso actos mas à responsabilidade de que compartilhamos pelos actos alheios? Será que isso tudo morreu? Pensem na baía de Guantánamo. Centenas de pessoas detidas sem acusação por mais de três anos, sem direito a representação legal, sem direito a processos justos, tecnicamente detidas para sempre. Essa estrutura totalmente ilegítima é mantida em flagrante desafio à Convenção de Genebra. É não apenas tolerada mas raramente comentada pelo que costumamos designar como "comunidade internacional". Esse ultraje criminoso está a ser cometido por um país que se declara "líder do mundo livre".
Excertos da leitura de Harold Pinter
na entrega do Prémio Nobel da Literatura.

9.12.05

da hipocrisia

< Desconfiar dos homens (começando por nós próprios) mas não desesperar deles. Esta máxima, que descobri (?) ainda adolescente e venho praticando com insucessos estrondosos (sempre que confiei demasiado ou precipitadamente) obriga a uma feia coisa que é a hipocrisia. Lidar com uma pessoa, diariamente, e esconder o que pensamos dela, das suas ambições, possibilidades confessadas ou arrogantes, da sua mitomania exacerbada. Obrigar a mentiras piedosas ou a silêncios reservados ou a troças pequeninas, ironias benevolentes e, talvez por isso, ainda mais cruéis. Fingir não ver, não perceber. Enfiar o barrete (todos os que o Outro queira) com um à-vontade de estupidez risonha. >
Luiz Pacheco, Diário Remendado, 24/2/73.

Fragmento # 23- Ícaro

O pianista portou-se muito mal quando me acompanhou a mim e ao coro no casamento, fartou-se de meter pregos. Foi arrogante, ainda teve a lata de dizer que não tinha estudado as peças, mesquinho mesmo. No primeiro ensaio mandou vir comigo, resmungou porque ia trabalhar com “amadores”, armou-se em esperto, pediu mais dinheiro para a viagem; eu a pensar que estava a contratar um profissional, confiei nele, dei-lhe as partituras com antecedência. Ele deve ter pensado que ia acompanhar uns membros do coro de S. Amaro de Oeiras... afinal, profissional foi o coro, todos sabiam e tinham estudado as peças e ele a meter pregos por todo o lado. É claro que quem assistiu adorou, agora nós que estávamos a cantar ali ao lado dele, que pastelão, o Gloria de Vivaldi devagar para não se enganar? Telefonei-lhe para lhe chamar a atenção, que se devia ter empenhado mais e ele a resmungar que lhe tinham pago pouco. Expliquei-lhe que foi pago com o preço habitual para estas coisas, o dinheiro não era meu, eu tinha era ficado encarregue de tratar da música para o evento. Disse-lhe que se ele se tivesse empenhado mais, ainda o chamavam para trabalhar noutra ocasião, mas assim... e a dizer em alto e bom som que não tinha estudado as peças para quê, puxar os galões da leitura à primeira vista? Deve achar que tem dons divinos... Ai estes católicos, dizem que são cristãos antes de mais nada, não admitem ser humanos com falhas, como todos os humanos, ainda acham que os outros são estúpidos... a muito custo admitiu que devia ter estudado mais, mas continuou a resmungar. Depois, telefonou-me e fomos beber café. Dei-lhe muita pancada, ele a custo caiu em si, disse que devia ter estudado mais e que tinha estado no Algarve em banhos, por isso não praticou. Mas também criticou o facto de não ter ensaiado com o coro aqui em Lisboa, defendeu-se dizendo que houve má vontade do coro em relação a ele, porque ganhou mais – estava a tentar mandar a culpa para cima de mim, que tinha organizado o evento. As pessoas alteram-se quando existe dinheiro à mistura, porque será? E este Ícaro foi teimoso até dizer chega. Levou dois textos dele para eu ler - devia ter em mente converter-me, um dos textos era sobre o filho pródigo. Fez também um comentário estranho sobre um casal homossexual presente no casamento, eu perguntei-lhe logo se havia algum problema com isso. Ai estes católicos, ele não fez comentários prejurativos mas deixou-me desconfiada de que... e disfarçou dizendo que a noiva era jeitosa. Também isso é lá com ele, chicoteie-se à vontade. Eu feita parva ainda me armei em boa samaritana, emprestei-lhe A Palavra do Carl Dreyer, visto que ele não conhecia o filme.
Só voltei a ver este Ícaro no Outono, combinou entregar-me o filme e vinha tão agitado que se esqueceu dele em casa. Conversámos mais uma vez sobre deus e outros afins e ele insistia na importância da audição da palavra, eu respondi-lhe que não lhe chamo deus, não tenho imagem para isso, mas tenho os meus contactos com o transcendente, que recebo sinais, tal como ele, só não uso o mesmo vocabulário. Respondi-lhe que o filme não queria vir ter comigo, porque queria falar com ele, por isso tinha ficado em casa e ele estava ali de mãos a abanar. O ditado bem o diz: deus escreve por linhas tortas. Depois marcou comigo num domingo, dia do senhor, no intervalo entre duas missas onde ia tocar órgão, dar-me A Palavra, finalmente. Foi então que o anjo ou Ícaro se evaporou de vez. Despedi-me dele e acho que só o volto a encontrar se o destino quiser, ou deus como ele lhe chama.
Maria João

TAEDIUM VITAE

Cravar com punhais crus meus anos juvenis,
Vestir libré faceiro em tempo inoportuno,
Deixar que infames mãos me mexam na fortuna,
Meu espírito enlear em pêlos feminis,
E ser mero lacaio do Destino – Não
Gosto, juro! e dá-me menos que pensar
Do que a ténue espuma inquieta sobre o mar,
Do que um lenhoso cardo em brisa de Verão
Sem ter semente; mais me quero afastado
Dos maldicentes todos que troçam de mim
E me não conhecem; mais quero o parco abrigo
Do mais servil campónio; mais quero assim
Do que voltar ao antro rude dessa briga
Que fez minha alma branca beijar o pecado.

Oscar Wilde

Oscar Wilde nasceu no dia 16 de Outubro de 1854 em Dublin, filho de um cirurgião dos olhos e ouvidos e de uma activista da causa da independência irlandesa. Em 1874 ingressou com uma bolsa no Magdalen College, em Oxford. Viaja por Itália e Grécia, terminando, no ano de 1878, o seu curso com louvor e distinção. No mesmo ano o seu poema Ravenna é premiado com o Newdigate Prize. Um ano depois instala-se em Londres com o pintor Frank Miles. Em 1881 publica Poems. Viaja pelos Estados Unidos, Canadá, França, proferindo conferências sobre a Renascença inglesa e a arte decorativa. Em 1884 casa com Constance Lloyd, de quem terá dois filhos. Inicia uma carreira de jornalista e conhece Robert Ross, de quem veio a ser amante, e que seria o seu amigo mais constante. Em 1891 conhece Lord Alfred Douglas, seu amante, filho do marquês de Queensberry com quem Wilde viria a travar e perder uma batalha judicial no ano de 1895. Condenado nesse ano por indecência, Wilde foi preso durante dois anos. Aquando da libertação, abandona a Inglaterra para sempre, vivendo então em França, Itália e Suíça. Convertido ao catolicismo, Wilde morre, vítima de meningite, no dia 30 de Novembro de 1900. (segundo cronologia biográfica de Margarida Vale de Gato, in Oscar Wilde, Poemas, Relógio D'Água, Setembro de 2005)

8.12.05

O poema é a forma vertical por excelência

(Eduardo Prado Coelho)

Pois, pois. Cá por mim, os melhores
poemas escrevi-os sempre deitado…

Rui Costa

MAMAS


Rui Costa

Essa jogada era minha, estava marcada na p. 47

< Não é aqui na cama nem com estas masturbações de leituras, memórias, fantasias de sonhos que poderei ir longe. (...) Tenho que arrastar e pagar o preço. Ou é tudo uma trampa a fingir de vida. Luxúria mental já chega. >
Luiz Pacheco, Diário Remendado, 2/2/72.

Identidade, discriminação e combate

Num post de antologia, o Afonso afirma que os heterossexuais raramente se declaram enquanto tal, preferindo a afirmação pela ilustração, ou seja, o heterossexual nunca se afirma heterossexual, diz que gosta de gajas. Não creio que isso seja necessária e somente assim, até porque o que vou constatando é cada vez mais a afirmação da identidade pela negação do seu oposto. Isto é, a afirmação da identidade, em quem sente necessidade de a afirmar, faz-se frequentemente pela inferiorização do pólo identitário oposto. Assim, o heterossexual não é apenas aquele que gosta de gajas como é também aquele que odeia gays. Este tipo de fenómeno, bem mais frequente do que se julga, tem-me sido especialmente constatável junto dos adolescentes. Num tempo em que estas questões já deveriam estar ultrapassadas, o que eu vou notando é uma afirmação da masculinidade (confundida com heterossexualidade) pela enfatização da repulsa que o comportamento homossexual causa. É frequente ter alunos/formandos que me dizem, aquando da discussão de matérias relacionadas com tipos de discriminação, coisas do género: «Pretos ainda vá que não vá, agora gays e ciganos é que nem pensar!» O fenómeno é muito mais visível nos rapazes e assume contornos, por vezes, bastante preocupantes. Mesmo aqueles que se mostram menos radicais, à questão: «E se um gay te tentasse seduzir?» - é quase sempre dada uma resposta agressiva do género: «Partia-lhe a cara». Isto quer dizer que da parte do heterossexual não há ainda uma consciência da homossexualidade como comportamento sexual aceitável, o que leva à "guetização" dos membros de um grupo que é visto como anómalo pelo grupo oposto. Dito de outra forma: se um gay quiser engatar, deverá ir para uma discoteca gay, porque assim tem a certeza que não corre o risco de ser agredido por ter tentado seduzir um hetero – como se isso fosse comportamento criminoso. Vejamos, não passa pela cabeça de nenhum rapaz hetero agredir uma rapariga que o tente seduzir, mesmo que não seja isso que ele pretenda; mas outra resposta não se deverá dar a um homo que arrisque seduzir um hetero (como se estas classificações identitárias viessem estampadas na testa dos indivíduos), mesmo se este andar claramente no engate, porque dá-la é a afirmação máxima duma suposta masculinidade. Aquilo que parte substancial da sociedade espera de um jovem heterossexual que seja alvo de sedução por parte de um gay é tudo menos uma resposta que denote "mariquice". A dificuldade da resolução deste problema, que tem na sua origem, julgo eu, fenómenos complexos de transmissão cultural e de educação no contexto familiar (na nossa sociedade perduram os imaginários de perversidade, promiscuidade, aberração e anormalidade em torno da comunidade homossexual) justificam, eu diria mesmo exigem, um combate persistente por parte das comunidades discriminadas e daqueles que não se revêem minimamente em quaisquer actos de discriminação negativa. Porque a identidade não é fruto da cabeça de um génio criador, nem resulta da determinação de um gene ditador, mas é consequência de um diálogo complexo e permanente entre agentes biológicos, culturais e sociais.

Notas do Porto # 1

Estreei-me na Casa da Música a ouvir dEUS. O que, reconheça-se, é estreia auspiciosa. Sala boa para teatro. O rock, como a dada altura foi referido pelo rosto fronteiriço do senhor, pede salas suadas e rugosas. Não é o caso. As poltronas são demasiado brancas e mui iluminadas, sem copo de licor numa mão e charro na outra não há rock que resista. Um pormenor, não de somenos importância: na Casa da Música, os urinóis são para quem mija baixo! Dão-me pelos joelhos. Não bastava já ter que gramar com os ombros do lado, temos agora tudo escancarado ao deus dará. P.S.: porque creio no mortal quebranto, não era para revelar o que se segue (mas não resisto). No final do concerto, fui beber um copo. De regresso, por mero acaso, dei com três dos rostos de dEUS pela frente nas imediações da Casa da Música. Tinha os CDs todos no carro, trouxe-os autografados. Todinhos. Puro golpe de sorte. Há muito que não me sentia tão puto. Acho que me vou dedicar a caçar autógrafos.

Notas do Porto # 2

Para que a estória fique bem contada é preciso dizer: quando a Poetria (livraria quase exclusivamente dedicada à venda de livros de poesia, existe mesmo, é no Porto) abriu, deixei por lá cerca de 300€ em livros. Podia ter-me dado para pior, mas achei o projecto tão utópico que não resisti a contribuir para o peditório. À época, a senhora que me atendeu queixava-se da falta de clientela. Regressei lá hoje. Perguntei por um livro: não há. Perguntei por outro: ainda não chegou. Perguntei por um terceiro: ah! Esse há. Óptimo. E o quarto? Não. Mas aqui a resposta fiou mais fino. Era um livro da & etc, obra que, confesso, facilmente adquirirei a preço de amigo. Mas enfim… E não é que a senhora se me sai com esta: A & etc já não edita livros há mais de um ano. Ó senhores, queres ver que ando a sonambular! Então e a Inês Lourenço, e o Vasco Gato, e o Lear(icks), e, e, e, e, ? Ah, explica-se a senhora, é que falei com uma pessoa do meio que me disse que eles já não editavam há mais de um ano. Conclusão: a Poetria deixou de satisfazer um cliente que até não se importava de contribuir para a sustentabilidade do sonho. Ou seja, a culpa de não se vender/ler poesia neste país não é dos poetas, nem dos editores, nem dos livreiros. É das pessoas do meio.

Notas do Porto # 3

Serralves. Com muita brevidade, porque talvez volte ao assunto. Não gostei tanto quanto gostaria de ter gostado da Anschool II de Thomas Hirschhorn. O homem, se quer ser político, deve começar por gastar menos papel. Falta-lhe consciência ecológica. E depois há que dizê-lo com frontalidade: qualquer missionário faz mais pelo mundo do que aquele ruído de ideias (artísticas) algum dia fará. O Sr. Hirschhorn parece-se com aqueles tipos que enfiam um capuz na cabeça e dedicam a vida à metafísica, convencidos de que com tal feito logram feitos de feitar (o verbo é meu). Os tempos que correm já não são de se deixarem açoitar pelo artístico. Feitas as contas, político à séria é o trabalho do Pedro Costa. Sobretudo, aquele intitulado Fontainhas. A coisa, de tão estática, dói. E aquele olhar desesperançado mete medo, muito medo. Grande Pedro Costa, amo-te!

6.12.05

Oirar de Ourar: ter tonturas de cabeça

< Quando se funciona ao nível da cabeça (quem pensa não casa...) ou dos interesses naturais, familiares, sociais, quem paga é o corpo, o nosso. Consequência: a punheta e a solidão, depois. >
Luiz Pacheco, Diário Remendado, 22/9/72.

CANÇÃO CÓPTICA

Ouve o que te vou dizer:
Juventude quer-se vivida,
Vê se aprendes senso e zelo:
Na balança desta vida,
Fiel ao centro é raro vê-lo;
Tens de subir ou descer,
Tens de mandar e ganhar,
Ou servirás, perderás,
Sofrerás ou vencerás,
Serás bigorna ou martelo.
Tradução de João Barrento.

Johann Wolfgang von Goethe

J. W. von Goethe nasceu em Frankfurt em 1749. Filho de um reputado advogado e da filha do mayor de Frankfurt, Goethe foi educado no abastado conforto do lar. Aos 16 anos iniciou estudos de Direito em Leipzig, dedicando-se igualmente ao desenho. Após um período de doença (especula-se que sífilis), Goethe terminou os seus estudos em Estrasburgo. Em 1774 publicou Werther, rapidamente transformado num símbolo do romantismo alemão. De saúde débil, o poeta alemão temeu várias vezes pela sua sanidade. Em 1776 recolheu-se em Itália, de onde regressou com ideias reformadores das tendências Sturm und Drang que haviam influenciado as suas primeiras obras. Em 1790 concluiu a primeira parte do Fausto, drama em verso que o viria a consagrar como um dos nomes maiores da literatura universal. Entretanto inicia uma frutífera amizade com Schiller, da qual surgiram vários poemas. Concluiu o Fausto em 1831, mas este apenas seria publicado postumamente. Poeta exímio, Goethe nunca se sentiu propriamente entusiasmado pelas questões mais filosóficas do seu tempo. No entanto, foi não apenas o fundador do romance moderno mas também um reputado ensaísta. Faleceu em Weimar no ano de 1832.

Ut pictura poesis # 63 – Auto-retrato feminino nº 6

Rosalba Carriera
Imagem respigada aqui:

Rosalba Carriera, Auto-retrato pintando o retrato da sua irmã, 1715
Pastel s/papel
Maria João

5.12.05

R: 1ª jogada

«(...) tenho medidas de casaco, de pé, de pernas, universais. Tudo me cabe - dado.» >
Luiz Pacheco, Diário Remendado, 1/2/72.

Jogadas de dominó

Antes de mais, quero lembrar a meritíssima C. de que a minha primeira jogada mora aqui (página tantas quantos são os anos do poeta Mexia). Feito o lembrete, cá vai d’alho:

«Se, Deus morto, o problema da Justiça entre os homens é (para mim) o mais importante e ela resolve-se não pelos Códigos e Meritíssimos, suprema palhaçada tristemente ridícula e, ainda mais, revoltante, processa-se no dia-a-dia e na convivência de um com outro e isto implica um método dificílimo, utópico: a) o conhecimento próprio permanente, isto é, o conhecimento próprio e das próprias mudanças (o que poucos conseguirão); b) o conhecimento do Outro e suas mutações, coisa ainda mais difícil, esse problema tão agudo é no casal (couple), quer no hetero quer no homossexual, mas mais ali, que esses exercícios de atenção e observação se tornam mais agudos, já que na vida a dois, com problemas comuns diários a resolver, desde a economia aos filhos, e na cama, onde tudo vem ao de cima, é que está a situação-limite dessa convivência na Justiça.»

Luiz Pacheco
In Diário Remendado, 1971-1975, p. 46, Dom Quixote, Agosto de 2005.

P.S.: é óbvio, C.aríssima, que não lhe chamei anteriormente meritíssima tendo presente o léxico pachecal.

Liberdades Poéticas

Posts por escrever que, muito provavelmente, não serão escritos: - A condição homossexual dos heterossexuais na sociedade portuguesa actual; - De como a Fundação de Serralves vai dando um banho de arte de todo o tamanho ao Centro Cultural de Belém; - Da escrita de memórias como exposição impúdica da intimidade e exercício irrelevante da confissão; - A origem antiga da nova política; - O financiamento das artes, nomeadamente do cinema português, segundo Daniel Oliveira versus quem verdadeiramente sabe do assunto; - A arte de engatar Alexandra Lencastre segundo Daniel Oliveira; - Sobre a bela imagem dos homens encurralados nas suas ideias feitas; - Da escrita de posts como uma das belas artes; - Da relevância do irrelevante; - Causas e consequências do sobreaquecimento global para a burguesia portuguesa; - O lado burguês dos intelectuais de esquerda; - As novas formas de censura no mundo democrático dito civilizado; - O porquê dos índios da Amazónia me parecerem mais civilizados que os cristãos do Vaticano; - A face gay de Deus nosso senhor; - Eduardo Pitta como blogger do ano (dos poucos verdadeiramente relevantes); - O que é um post relevante?; - Da possibilidade remota dos templates com relevo; - O que é um blog literário?; - Dos jornalistas que escrevem como bloggers e dos bloggers que escrevem como jornalistas; - Acerca do domínio do clube do DN Jovem na blogolândia lusitana; - Dos jornais enquanto atentado incólume à degradação ambiental; - Do desperdício de papel na imprensa escrita, sonora e visual; - A qualidade relativa da doçaria portuguesa; - Portugal do Futuro nos mamilos da República…

OS PORTUGUESES À CONQUISTA DE NICE

De distantes reinos houve quem viesse
e com o rei de Nice houve quem os visse.
Pratas e rubis, dizem, houve quem lhe desse.
À rainha, sim, também houve quem lhe desse
e até, se dizem bem, quem depressa se viesse
em noites veladas; santas noites de chupe-la-pisse.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues (Porto, 1960)

Daniel Maia-Pinto Rodrigues nasceu no Porto a 7 de Julho de 1960. Poeta pop, performer, ortopedista da Palavra, membro afectivo da "Caixa Geral de Despojos", "uma das vozes mais originais e importantes da poesia dos anos 80", na opinião de João Gesta, tem grande parte do seu percurso poético reunido na obra O Afastamento Está Ali Sentado (Quasi, 2002). Segundo informação numa das badanas dessa obra, Daniel Maia-Pinto Rodrigues ter-se-á estreado em livro com Vento (1983). Representado em diversas colectâneas poéticas, publicou vasta colaboração em revistas e jornais. Traduziu, com a colaboração de Laureano Silveira e José Braga Amaral, o poeta finlandês Timo Sinnemaa. O seu mais recente livro de poemas, Malva 62, foi prefaciado por Manuel António Pina, do qual são as palavras que se seguem: «esta poesia é, na sua sabida e febril ingenuidade, uma experiência dos limites da própria poesia».

Ut pictura poesis # 62 - auto-retrato feminino nº5

Imagem respigada aqui:

Lavina Fontana, Auto-retrato, 1577
Galerias Uffizi, Florença , Itália

Sobre a artista:
Maria João

3.12.05

Tom Waits, Woe
The ribbon round your neck
Aganist your skin that's pale as bone
If is my favorite thing you've worn
The band is playing our song
And we wan't go home, 'til morn

Voo picado

Tenho um espelho alto no corredor.
Pronto, lá me encaro eu uma vez mais
E o monstro que vejo em horas tais

Faz-me – está escrito – sempre igual pavor.
É um homem horroroso. Há que abatê-lo,
Esmagado com uma rija martelada.

Não passa de gordura encarquilhada.
Um estranho, é o que é. Eu penso, ai, ai!
Mais um cliché com espelhos que me sai.

É só vidro, vidro morto o que tenho diante –
Mal penso assim, eis que um esqueleto hiante
Surge do espelho e salta-me ao pêlo.

Gerrit Komrij (1944)

Gerrit Komrij nasceu na Holanda, em Winterswijk, no dia 30 de Março de 1944. Poeta, crítico, ensaísta, tradutor, romancista, autor de teatro, antologiador de poesia e colunista, destacou-se como uma voz polémica pelos ataques aos valores estabelecidos do mundo literário, artístico, político e social. Como poeta, Komrij estreou-se em livro com Hemisférios de Magdeburgo e Outros Poemas (1968). Tornou-se um fenómeno, graças a um estilo ímpar, um humor tanto cáustico como hilariante, uma irreverência polemista para com tudo e todos e uma assumida posição de outsider e contravoz no coro de artistas e intelectuais neerlandeses. Apesar dos muitos admiradores, só em 1993 ganhou o maior prémio literário holandês – o prémio P.C. Hooft, só se tornando personagem conhecida do grande público a partir de 2000, quando foi eleito primeiro poeta laureado holandês. Reside em Portugal desde 1984. (Arie Pos, in Contrabando – uma antologia poética, tradução do neerlandês de Fernando Venâncio, Assírio & Alvim, Setembro de 2005)

2.12.05

Segue o teu destino,
Rega as tuas plantas,
Ama as tuas rosas.
O resto é a sombra
De árvores alheias.

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos.
Só nós somos sempre
Iguais a nós-próprios.

Suave é viver só.
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente.
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses.

Vê de longe a vida.
Nunca a interrogues.
Ela nada pode
Dizer-te. a resposta
Está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração.
Os deuses são deuses
Porque não se pensam.

Fernando Ricardo Pessoa Reis

Ricardo Reis nasceu em 1887 (desconhecendo-se o dia e o mês) no Porto. Médico de profissão, residiu a maior parte da sua vida no Brasil. Homem de estatura baixa, embora forte e seco, Reis usava a cara, de um vago moreno mate, rapada. Educado num colégio de jesuítas, foi para o Brasil em 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. Foi um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. A obra do Dr. Ricardo Reis é sobretudo composta por Odes de teor neoclássico, que foram sendo escritas como reacção ao romantismo moderno e contra o neoclassicismo à Maurras.

1.12.05

Listar as Listas


As listas de livros de fim de ano são uma nulidade. Mais do que lembrar, elas pretendem, na sua grande maioria, fazer esquecer. Fazer esquecer que para lá das leituras, por vezes anacrónicas, dos fazedores de listas, há todo um mundo de títulos que ficam por referir. Títulos que, muitas vezes, nem sequer chegaram à menção honrosa duma página de jornal. Agarra-se assim num molho de títulos como quem agarra num molho de brócolos e dá-se-lhes, pela derradeira vez no ano corrente, nova montra. Ele há de tudo: amigos que citam amigos, admiradores que citam admirados de quem gostariam de ser amigos, ex-privados de privações privadas, coisas de ano transacto a cheirar a mofo, carrosséis de literatos, ementas à chefe, inventários de estrelinha cinco, recortes da especialidade ao longo de 12 meses de penosa conspurcação. O mundo literário (português?) é nojento. Um amigo dizia-me no outro dia que é preciso, cada vez mais, levantar a voz contra tal nojice. Eu, confesso, não tenho muita vocação para homem do lixo. O meu labor de desratização é diário, um labor de resistência contra os iscos da amizade a conta gotas. Não me é de todo indiferente o efeito eco que reina no meio. A gente olha para os jornais e isso é evidente: críticos que editam livros em editoras cujo catálogo lhes merece a maior das atenções e os mais desbragados encómios. As polemicazinhas que há, de tão inócuas que são, servem apenas para todos se citarem uns aos outros. Na fotografia da posteridade, a julgar pelo que se vai vendo, ficarão meia dúzia de prostitutas literárias a engendrarem ardis com o objectivo de demarcarem os respectivos territórios. Todas com muita obsequiosa delicadeza. Se calhar sempre foi assim, se calhar será sempre assim. Daí que me apeteça, desde já, ir avisando: aqui não se elaborarão listas de fim de ano. E as que eventualmente vierem a elaborar-se, terão apenas em conta um critério: mencionar o que mais ninguém mencionou.

DOBRADA À MODA DO PORTO

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo…

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

Fernando Álvaro Pessoa de Campos
Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890. Engenheiro naval por Glasgow durante alguns anos, foi viver para Lisboa em inactividade. Alto (1,75m de altura), magro e um pouco tendente a curvar-se, Álvaro de Campos tinha a tez entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Teve uma educação vulgar de liceu, depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.