Esta mania de hierarquizar, de meter por cima o que não queremos por baixo, de organizar o que nos faz confusão permanecer na sua própria ordem, porque as coisas têm o seu modo singular de ser, mas isso faz-nos impressão, incomoda-nos, por isso procuramos para as coisas um modo de ser que não seja o delas, mas nosso. Perguntam-me, por exemplo, qual a arte mais importante, se julgo a filosofia superior à ciência, se é possível falar de uma superioridade da ciência sobre as artes, perguntam-me essas coisas como quem convida um adversário para um assalto, munidos que estão já de uma resposta, de um preconceito, de uma verdade intocável, um axioma, formado lá onde se deformam as consciências, o espírito crítico, a vontade de problematizar. Não vale a pena complicar muito: se me dói a barriga, vou ao médico. Os cientistas têm funções que não cabe aos artistas cumprir, valendo o inverso na mesmíssima e exacta medida. Talvez o preconceito da superioridade das ciências sobre as artes, onde podemos incluir a própria filosofia, deva a sua formação à ideia da utilidade. Mais facilmente reconhecemos a utilidade de um médico do que a utilidade de um pintor, sendo que ao último os tempos modernos tendem a usurpar qualquer pretensão de utilidade. Trata-se de um preconceito perigoso, na medida em que coloca a ciência sob um prisma de resposta que não é de todo em todo o seu. Até haver resposta, a ciência carece da pergunta. Sem a pergunta não há resposta, assim como sem a capacidade de improvisação sobre a pergunta, a inventividade ao nível da experiência, sem essa inventividade, jamais haverá reposta. É nesse âmbito que qualquer separação em termos hierárquicos me parece sempre precipitada e injusta, pois ainda que possamos julgar a ciência mais útil que as artes ela nada consegue alienando-se do espírito que as artes lhe legam. Qualquer tipo de intercâmbio entre os diversos ramos do saber é sempre mais profícuo do que uma separação, uma delimitação, que trace fronteiras intransponíveis e crie constrangimentos ao nível do diálogo, da partilha, da experiência. Podemos mesmo partir de um paradigma relativista acerca da verdade e do real, assumindo que seja qual for a resposta ela será sempre resultante de uma circunstância, de uma situação. Por isso a ciência evolui e não é estática. Mas no domínio das artes a exaltação deste relativismo leva muitas vezes a que o mesmo se transforme num paradigma algo facilitador do logro e da fraude, sobretudo quando o artista resolve prescindir da ciência da sua arte. Há nisto qualquer coisa de perverso, pois por muito livre que a arte seja essa liberdade assenta sempre em pressupostos técnicos, históricos e mesmo simbólicos. Pode um poema ser escrito fora da língua, mas não pode esse poema ser lido por ninguém que não absorva as convenções dessa língua inexistente. E ao absorver essas convenções, por mais caóticas que elas sejam, ele está já a inserir-se no seio de uma comunidade, supostamente virtual, que legitima a leitura. A surdez não é partilhável, assim como a cegueira, mas o silêncio pode ser. O que se me afigura mais plausível é que perante uma obra cada qual construa a sua linguagem, uma linguagem da intimidade, não partilhável, mas que faça disso uma força de questionamento acerca do mundo que o rodeia, das convenções que põem em causa essa linguagem da intimidade, que, em última instância, procure compreender com a linguagem de todos o que há na sua que possa acrescentar algo de positivo àquela. Porque se é certo que todas as vozes juntas dão uma enorme cacofonia, não menos certo é que todos os silêncios juntos não dão mais do que silêncio. E do silêncio ninguém retira senão silêncio.