Hakim Bey, pseudónimo de Peter Lamborn Wilson (n. 1945), é uma figura curiosa. Buscando na Internet sobre o seu nome, ficamos a saber que é escritor, ensaísta e poeta, intitula-se “anarquista ontológico”, escreveu sobre sociedades secretas, Fourier e Nietzsche, viveu na Índia, Paquistão, Afeganistão e Irão, tem procurado conciliar a doutrina sufista com o anarquismo, o que, já de si, parece projecto tão ambicioso quão aliciante. O resultado desse esforço é o “anarquismo ontológico”, apresentado pela
frenesi, parcial mas certeiramente, numa breve colectânea de textos, editada em 2000, reunidos com o título
Zona Autónoma Temporária - pequena amostra do pensamento deste autor, cuja complexidade pode ser facilmente constatável, a título de exemplo,
neste sítio. Se quisermos ser precisos, teremos de remeter as propostas de Hakim Bey para uma já muito longa tradição do pensamento dito marginal. No entanto, a pergunta impõe-se: que pensamento é esse que possa ser classificado de marginal? Classificá-lo é, em parte, retirá-lo da margem e
recentrá-lo, ainda que isso não signifique institucionalizá-lo. Classificar é integrar qualquer coisa num paradigma, mesmo quando essa qualquer coisa se distinga das demais por ser uma força de resistência ao paradigma. Evitemos então as classificações. Quando falamos em “tradição de pensamento marginal” pretendemos referir-nos às propostas filosóficas que se situam na ténue linha da ruptura. É por essa razão que, a título de exemplo, um autor como Nietzsche será sempre um autor marginal, pois todo o seu pensamento situa-se, na forma e no conteúdo, nessa linha de ruptura que pode ser, ao mesmo tempo, uma linha de fusão de perspectivas, à partida, antagónicas. Curioso notar que, tal como sucede no filósofo alemão, também os textos deste pequeno volume resistem a rotulagens de género. Na verdade, eles são poéticos e filosóficos; não propõem um programa sistematizado, mas avançam com propostas num registo que eu diria de orientação no interior do caos; são textos breves que manifestam sem se tornarem
manifestos, que instruem sem pretenderem ser iniciáticos. Muito resumidamente, o que o anarquismo ontológico de Hakim Bey "advoga" é o
imediatismo numa época onde «toda a experiência é mediada». Contra a mediação da experiência, contra a sobriedade, o
imediatismo surge enquanto acto e jogo, sem qualquer propósito de «programa estético», sem intenções comerciais, ao jeito de uma festa onde os participantes, pela prática, libertam-se de «toda a mediação e alienação» típicas das sociedades modernas. Em última instância, diria que este imediatismo consiste numa tentativa de transformar a vida numa espécie de performance movida pelo
amour fou. Este
amour fou surge, então, como pré-condição da liberdade, pois «floresce com os dispositivos anti-entropia». A mais lógica manifestação deste imediatismo é aquilo a que Hakim Bey chama da terrorismo poético:
«O Terrorismo Poético é um acto no Teatro da Crueldade que não tem palco, nem filas de cadeiras, nem ingressos, nem paredes. Para que funcione, o Terrorismo Poético tem de ser categoricamente divorciado de todas as estruturas convencionais para o consumo de arte (galerias, publicações, media). Até mesmo as tácticas situacionistas do teatro de rua serão hoje demasiado conhecidas e previsíveis.» A ideia é, pois, a da imprevisibilidade, do choque, da provocação da mudança. As
zonas autónomas temporárias serão, deste modo, as zonas onde a liberdade acontece de uma forma imediata, as zonas onde o
amour fou acontece como um acto terrorista, no entanto poético, um acto de fazer e não de desfazer, um acto de prática que é, sem suma, a prática da festa. Transformar a existência numa
zona autónoma temporária será um projecto demasiado ambicioso para qualquer um, mas talvez não seja tão impossível quão impossível parece ser existir sem as nossas
zonas autónomas temporárias. Que o temporário possa passar a permanente é apenas o que torna o jogo apetecível, pelo que talvez não seja má ideia começarmos por boicotar as figuras sociais que nos delimitam as
zonas autónomas temporárias. Cada qual que escolha as suas. A pouco e pouco, tenho tentado escolher as minhas.