VISÃO
Hoje pinto largos contornos nas coisas que vejo, desenho-os como quem tem preguiça na elaboração de um pensamento mais delineado, de fronteiras quase invisíveis ou, pelo menos, indistintas. Regresso a casa com Rouault insurgindo-se várias vezes pelo caminho, nos braços dos homens das obras, nas roupas tingidas de cimento, óleo e tinta, nas mulheres carregadas com sacos de plástico, nos rostos carregados das vizinhas viúvas e nas crianças que inventam no lixo os brinquedos que não têm, nos carros freneticamente estacionados e nas lajes que inscrevemos ao balcão dos cafés mais próximos de casa. Sempre que a temperatura muda subitamente é isto, inclino-me para os contornos largos, vejo tudo como que separado por muros de sombras intransponíveis. Deve haver qualquer coisa de orgânico nesta espiritualidade, deve haver qualquer coisa de espiritual neste organismo. Gostava de possuir a subtileza dos acólitos da palavra para poder dizer, sem contornos grossos, o que penso e o que vejo. Não me sendo possível, limito-me a agarrar naquilo que vejo com as mãos confusas e desajeitadas que a natureza me deu. Ainda bem que há pessoas de contornos finos, quase invisíveis, ainda bem que elas existem com suas mãos limpas, unhas arranjadas e dedos esguios, ainda bem que há pessoas sem calos nas mãos, ainda bem. Eu conspurco tudo aquilo em que toco. Se eu soubesse ser assim, arranjar-me todo em arte de manicure, passar com as limas nas unhas nos dedos que vêem os olhos que tocam, se eu soubesse afastar dos pretextos os textos e ficar só com os prés assim como quem fica munido de dispositivos, se eu soubesse delimitar as sombras do discurso, não perderia tanto tempo com isto. Mas eu não sei, eu não sou assim, ainda bem. Penso, contudo, na Visão que mais me convém. Vale a pena trazer ao tapete as palavras de Yourcenar: «Sempre me preocupei em distinguir o mais exactamente possível a Visão do espírito (Visio intellectualis, mas o nosso termo «intelectual» é simultaneamente anguloso e pálido) daquela em que, até certo ponto, os olhos participam, e separar de ambas a visão total, uma espécie mais de arrebatamento, embora em vez de se sentir arrebatada uma pessoa se sinta integrada, em que os cinco sentidos e os espírito se unem. Mas porquê visão dos olhos e não vista? Porquê visão total e não êxtase ou delírio? É que justamente nenhuma visão delira (de contrário, abriríamos outro capítulo, do Alucinado). Nenhuma vista que não se apodera de todo o espírito é visão; nenhum pensamento, por válido que seja, é outra coisa que um fruto ou um subproduto passageiro, desprovido do sentido de eternidade no instante, de extensão ao interior de um ponto nem sequer fixo, que a intervalos muito longos a visão do espírito por vezes confere e se torna em alguns casos possível ressuscitar pela recordação». Com que Visão terá, então, Rouault pintado as coisas com que me cruzo no regresso a casa? Com que Visão associo eu essas coisas às coisas que Rouault pintou? Miserere. Jesus Cristo foi a Visão do espírito tornada visão dos olhos, é nesse encontro que a visão total se consubstancia, é nesse encontro de quem não acredita na Visão do espírito que a vista, fixada às coisas, encontra nas coisas o que só uma visão total logra encontrar. Miserere, em tudo o que por mim passa, em tudo pelo qual passo como um riso impedido pela História, como uma gargalhada calada nos grossos contornos do silêncio, da reclusão, porque rir sobre a Miserere fica mal, o bordão ameaça-nos a boca e calamos o riso, incrédulos. Em tudo Miserere, mas como quem ri disso também porque sabe nada mais lhe restar senão a possibilidade desse riso. Se calhar sou eu o capítulo por abrir, o capítulo do Alucinado.