31.12.07

BOM ANO?


Pensava que o último post de 2007 estava escrito. Mas não. Não pode ser. Passei pelo Frenesi e dei com esta inesperada e triste notícia: «Faleceu ontem o Olímpio Ferreira. É um dos nossos que cai no campo de honra…» Fico na dúvida se será o mesmo Olímpio Ferreira que conheci há tempos no lançamento de um dos livros da Mariposa Azual. Deve ser o mesmo. O que compunha e paginava livros para a & etc. O Olímpio que me mandava os números da revista Intervalo. O mesmo que me ajudou, quando trabalhava numa livraria em Entre Campos, a compor uma declaração para deixar as minhas edições de autor à consignação nas livrarias. Deve ser esse Olímpio, o amigo do Nuno. O Olímpio que eu conheci. Não pode ser. Escreveu-me no início deste ano por causa da nota biográfica dedicada ao Fernando Guedes. E agora morreu. Está morto. Falava eu aqui das mortes que me bateram mais forte este ano. Triste ironia. Morte da merda.

1967-2007
Olímpio Ferreira
Um homem que fazia livros



Jorge Silva Melo

Chamava-se Olímpio Ferreira, o seu nome aparece na ficha de dezenas de livros e revistas (da Cotovia, da & etc., da Assírio, da Fenda, da Averno, da Abril em Maio, dos Artistas Unidos, e mais haverá que não sei). Tinha 40 anos, fazia paginação, morreu no dia 30 de Dezembro, ataque cardíaco.
Um dia, há muitos anos, dia difícil para mim, tocou-me à porta com um embrulho que eu supus ter deixado cair - e agradeci. Era um exemplar de Consideram-se Mortos e Morrem, o belíssimo romance de Vittorini que a PIDE apreendeu nos anos 60 e aparecia na colecção da Portugália como "fora do mercado". Lera um artigo em que eu falava da falta que me fazia esse livro perdido, e apareceu-me em casa (como soube a minha morada? Nunca saberei...) com esse embrulho, um sorriso, um remetente (à Rua da Fé, nome que lhe ia bem). Para onde telefonei, mal me apercebi que não era um vizinho que encontrara nas escadas uma coisa que eu deixara cair. E ficámos amigos.
E foi sempre com esse sorriso e estes livros achados que fui vivendo estes anos com ele, livros que encontrava, e um dia me oferecia, os Vadios de Pasolini, tradução de Virgílio Martinho, capa de Pinto, edição do Vítor Silva Tavares para a Ulisseia, apreendido pela PIDE - que desencantou nunca me disse onde, que tanto o procurei.
Vinha de Coimbra e do movimento católico, falámos pouco desse catolicismo que nos ligava, falámos sempre mais de livros, de traduções que ele sabia estarem a ser feitas (foi ele que me falou de Carlos Leite traduzindo o Pavese, de Manuel Portela a traduzir o Sterne), de poetas que apareciam (deu-me o primeiro Tolentino Mendonça, padre e amigo, não sei se não foi ele também quem primeiro me falou do Luís Quintais, foi ele que me anunciou a decisão do Manuel Gusmão de enfim publicar, sabia sempre tudo, foi ele que me falou da DiVersos), falámos de tipos de letras e da dimensão dos livros (gostávamos de livros pequeninos, livrinhos, chamámos nós à nossa colecção), de capas e de política, rimo-nos da última vez que nos encontrámos, no Campo de Santana, na véspera ou no dia em que lhe nasceu o filho mais novo, rimos dos dislates do poder, sempre falámos mais disso, dos disparates do mundo, ele convidava-me de vez em quando para umas coisas (um colóquio na Nova, um artigo para a revista Intervalo em que trabalhava), recomendava-me pessoas, gente mais nova (o Luís Henriques, que este domingo me anunciou a sua morte - e chorava), aparecia sempre, como da primeira vez, com um sorriso lindo.
E fazia livros, paginava-os, entusiasmava-se, revejo agora o seu deslumbramento com o Homossexualidade de Joaquim Manuel Magalhães que publicara a Telhados de Vidro nº 4 (500 ex.). É poema (extraordinário) que não leio sem me lembrar do rosto do Olímpio ao oferecer-mo, "se há poesia política, é esta", dizia, e nesse dia estava declaradamente afirmativo, coisa rara naquela sua maneira de ser, tão discreto que era.
Nunca soube o que queria o Olímpio, se queria fazer outra coisa, se queria escrever, se queria editar, se queria abrir alguma loja de livros, se queria outra coisa, nunca disse, mesmo quando eu o desafiava, sei que fazia livros, queria andar pelo meio deles - e de filmes também, filmes de que, às vezes, falávamos e foi ele que me disse que me conhecera em Coimbra, na estreia do Agosto, na plateia deserta do TAGV - e paginava com saber, com extremo cuidado, destreza, simplicidade, delicadeza. Não sei se atrás do seu sorriso haveria alguma mágoa, alguma coisa que não tinha feito e queria, sorria, brincava com o destino, falava de amigos e de escritores, de editores e de livros. E dos filhos e das noites em claro.
Era um homem que fazia livros - e às vezes os dava -, que convencia os outros da excelência de certos autores (Gianni Rodari, editado pela Teorema), que convidava ao secreto encontro - e tinha sempre novidades.
Morreu agora, inesperadamente, brutalmente, discretamente, no meio das festas, com tantos amigos fora, e faz-me falta, era um rapaz leal, firme, secreto, discreto, um amigo.
Na missa, em Santa Isabel, Tolentino Mendonça lembrou-o, comovido - e lembrou as bem-aventuranças. E lembrou que não seremos jamais órfãos, sempre seremos herdeiros. Deste rapaz que fazia livros.

Público, Sexta-feira, 4 de Janeiro de 2008.

Bloco de apontamentos #66

MJLF, A Maria Lionça, técnica mista s/papel, 30x21cm, 1995

A mãe do meu vizinho da frente aparece enquadrada na sombra da sua janela, como é costume tem o cabelo branco bem penteado, colocou os seus óculos escuros e veste-se de negro; reparo que tem um objecto inédito nas mãos, parece uma caneca, mas como está na sombra, não tenho a certeza, será que veio tomar o pequeno-almoço à janela? Entretanto, ela leva um pequeno objecto à boca, não acredito, é uma escova de dentes verde, está a esfregar a dentuça a olhar para mim e agora eleva a caneca azul de plástico, está a bocejar e cospe a água para a rua.

Maria João

CINCO POEMAS EUROPEUS #2

Querido primo Jacob

Chamas-te assim, mas eu apetecia-me chamar-te Tiago
ou Jaime, para dar fantasia aos meus versos
Vou caminhando e pensando nas presenças que às vezes
me visitam nos cinco dias de semana
em que vale a pena trabalhar
os tais em que se ganha ou se perde o universo.

Mas eu digo-te: lembro-me do pai e da mãe todos os dias
e estão como dantes estavam: risonhos e um pouco perdidos.
Mas a sua semana entrava pelo mundo adentro.

Quanto a mim, sou apenas o NS
o seu menino tão cansado e sempre repleto de memórias.

(Bruxelas, em 99)

Nicolau Saião

30.12.07

A CAMINHO DO ESQUECIMENTO

Há mortes e mortos, há mortos e mortes. Pedro Mexia ficou triste ao ler a notícia da morte de vários intelectuais e artistas. Eu também me deixei apanhar pela melancolia com algumas daquelas mortes, mas as que verdadeiramente me entristeceram foram outras. Dois exemplos, que Mexia ou esquece ou, pura e simplesmente, ignorou com indiferença: o escritor Alface e o actor Pedro Alpiarça. São mortes que me batem mais forte porque, como prova o post de Pedro Mexia, são mortes mais a caminho do esquecimento que as outras.

Bloco de apontamentos #65

MJLF, S/ titulo, resina de polyester e fibra de vidro, 80x45x45cm, 1996



Sonhei que me encontrava ainda nas Belas-artes – é um sonho recorrente – estava em pânico com uma cadeira que tinha de fazer, mas nunca ia às aulas; comentava isso com um colega que se fartava de rir e dizia que eu não estava a perder nada – a cadeira chamava-se Comunicação Visual. Depois encontro-me nas caves de escultura, a modelar o barro, sou a única porque à minha volta todos trabalham em metais, observo o trabalho de um colega, ele imprimiu imagens de anúncios publicitários antigos em bidões de gasolina. Vejo também um colega a construir umas estilizadas armaduras em ferro, ele é louro e parece estrangeiro, está vestido com um fato de macaco, vira-se para mim, acende um cigarro e diz: o ferro é o material nobre da escultura, pode-se fazer quase tudo com ele. Eu respondo-lhe: ja, vê-se logo que és alemão, genau!


Maria João

CINCO POEMAS EUROPEUS #1

Encontro em Paris

Atravesso os bairros e sou um homem só entre as casas
onde patrões e criados vão vivendo o seu dia
E Paris é para mim a face de Manolo Fuertes Refólio
o barbeiro que sabia aparar-me o cabelo
e que depois se exilou nestes lugares de salvação

Até Saint Michel verei pelo menos 60 conhecidos
mas o seu rosto já não é o que me lembro de lhes ver.
Notre Dame fica perto e repousa tranquilamente.
Todos os anos a imaginava, como que levitando na manhã
esperando os seus fiéis franceses que a sonham amorosamente.
A ela voltam uma e outra vez e olham em redor admirados
pensando se um de nós acaso não será um príncipe ou um mago
vindo de terras estranhas debaixo de um impulso fremente

Depois baixam os olhos com tocante delicadeza
pois a nossa expressão entrou-lhes bem no centro do coração

e o ar em volta ficou como se lhe tivesse fugido o sol.

Nicolau Saião

28.12.07

5 BANDAS SONORAS

Eis que me chega aquela que será, suponho, a última corrente de 2007. O Luís, do Apanhador de Centeio, pede-me cinco bandas sonoras. Na verdade, pede-me «as cinco bandas sonoras que guardo com mais amizade na memória e no itunes». Sou mais uma vez traído pela linguagem utilizada nas correntes. O que é o itunes? Não sei, confesso a minha ignorância. Também não posso dizer que saiba o que é isso de guardar com amizade alguma coisa na memória. Sei apenas que guardo na memória uma série de bandas sonoras, muitas delas apenas na memória, mas sem qualquer tipo de amizade. A amizade, sem mais nem menos, guardo-a noutras regiões do corpo. Desculpo-me então ao Luís pelos ajustes que farei na minha resposta a esta corrente.

Como não poderia deixar de ser, começo o meu leque de opções pela excelsa música de um compositor que me é, desde a infância, referência e guia nessa selva obscura onde as imagens se confundem com os sons. Refiro-me a Ennio Morricone. Não é fácil escolher uma das suas bandas sonoras, mas, para ser sincero comigo próprio, terei de escolher a que mais me marcou intimamente. Tudo por causa de um tema intitulado The Man With The Harmonica. Onde Upon A Time In The West é, pois então, a primeira escolha.



A segunda opção talvez não seja tão óbvia. A verdade é que, durante a adolescência, fui fã incondicional dos Dire Straits. Andava muito interessado em guitarras e guitarristas, e o som inconfundível do dedilhado de Mark Knopfler convenceu-me. Esta paixão levou a que coleccionasse tudo o que aparecesse com a marca do guitarrista britânico. Bandas sonoras como as que compôs para os filmes Local Hero, Cal, The Princes Bride, Last Exit to Brooklyn, ainda moram cá por casa em vinil. De vez em quando, gosto de recordar a banda sonora de Cal.


Chegamos à conta que Deus fez. Sendo assim, por falar em Deus, falemos de música divinal. Bem sei haver muito quem não goste, que até despreze. Gente mais esclarecida no género olha-o com certo desdém. Como em termos musicais limito-me a permitir que o canto da sereia me cative e aprisione, pelo espanto que me provoque, deixo-me embalar facilmente pelas bandas sonoras de Michael Nyman. Há muitas que poderiam aqui ser mencionadas: The Cook, The Thief, His Wife and Her Lover, Prospero’s Books, Carrington, The Claim ou, claro, The Piano.


Começamos a ficar algo apertados. As opções são muitas, tantas. Alguns dos meus escritores de canções preferidos escreveram bandas sonoras. Como esquecê-los? Há também soundtracks num registo mais pop absolutamente inesquecíveis. No entanto, como as opções são apenas cinco, deixo para penúltimo a music for films de Goran Bregovic. São todas boas, de Le Temps dês Gitans a Arizona Dream. Mas foi Underground que me abriu as portas para este universo e, consecutivamente, para muitos afluentes que até então nunca tinha explorado.


Chegámos ao fim. Estou a lembrar-me de One From The Heart, de Tom Waits, de vários trabalhos de Ryuichi Sakamoto, de experiências dentro do género levadas a cabo por Aimee Mann, Björk ou Badly Drawn Boy. Seja como for, inclino-me para uma dessas bandas sonoras, em alternativa às escolhas anteriores, que juntam música de vários artistas, de várias proveniências, sob critérios mais ou menos inteligíveis. Neste domínio, Quentin Tarantino ganha a todos os outros. A selecção, assim como o arrumo em disco, de Jackie Brown é a minha preferida.

O MILHÃO


Eis a marcha de quarenta
rapazes lado a lado:
um, dois,
três, quatro,
e mais quatro vezes quatro,
e ainda quatro por quatro,
e ainda outros quatro.

Eis quarenta, pelas ruelas,
raparigas, todas belas:
Uma, duas,
três e quatro,
e mais quatro vezes quatro,
e ainda quatro por quatro,
e ainda mais quatro.

Encontram-se de repente,
e ao todo são oitenta!
Um, dois,
três, quatro,
e mais quatro
vezes quatro,
mais catorze
vezes quatro,
e ainda outros quatro.

Já viraram para a praça,
e na praça, vejam bem:
não é chusma
ou companhia,
nem multidão
ou batalhão,
nem quarenta,
nem um cento,
mas é quase um milhão!

Um, dois, três, quatro,
e mais quatro
vezes quatro,
cento e quatro
vezes quatro,
duzentos mil
por quatro,
e ainda outros quatro!
Fim.

Tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra.

Daniil Harms

Daniil Harms, pseudónimo de Daniil Ivánovitch Iuvatchov, nasceu em São Petersburgo, no dia 30 de Dezembro de 1905. Usou vários pseudónimos ao longo da sua carreira, tais como DanDan, Khorms, Charms, Shardam, etc. Em 1924 foi estudar para Leninegrado, onde iniciou a sua actividade literária. Integrou o grupo da poesia «zaum», aderindo posteriormente a um grupo de poetas experimentais. Em 1927 passou a integrar a Associação de Escritores de Literatura Infantil e, já em 1928, fundou o colectivo vanguardista OBERIU. Foi na sequência das actividades deste colectivo que surgiram as primeiras críticas ao comportamento excêntrico de Harms, acabando este por ser preso em 1931. Muitos dos seus poemas e pequenas histórias foram aparecendo em revistas, não se livrando o escritor do ostracismo político e, consequentemente, de uma vida precária. Em 1941 volta a ser preso, acabando por falecer num hospital psiquiátrico em 1942.

SORAIA CHAVES




Call Girl, o mais recente filme de António-Pedro Vasconcelos, tem o interesse de uma Soraia Chaves nua. Depois de ter dado o corpo ao manifesto em O Crime do Padre Amaro, Soraia Chaves volta a atacar em Call Girl. Dizem que Soraia Chaves é uma mulher muito sensual, o que pode ser comprovado aqui. Também pode ser comprovado, embora não seja necessário, que este post, onde o nome de Soraia Chaves foi repetido três vezes (com esta vão quatro) é só para aumentar o número de visitas do Insónia.

GRANDE TÍTULO

Benazir Bhutto terá sido "quase de certeza" assassinada pela al-Qaeda

Terá sido "quase de certeza", com ou sem aspas, é sempre uma grande expressão. O jornalismo português transborda de conjecturas hiperbólicas deste tipo. Não bastava a quase certeza, ou o hipotético terá sido, não bastava a suposição, era preciso reforçá-la. Pena que o reforço da suposição, como acontece com a negativa, não resulte em afirmação. A negativa da negativa é uma afirmativa. O que será a suposição da suposição? Uma certeza? Não me parece. Parece-me apenas que quem escreveu aquele título terá sido "quase de certeza" um jornalista de tal forma obcecado com fontes seguras que, supostamente, ter-se-á sentido inseguro na certeza da sua informação incerta.

27.12.07

É OBRA

6 anos de Retorta. E pensar que os "pioneiros" levam 4 anos de. Parabéns. Gosto do teu cinzeiro azul.

BENAZIR BHUTTO


A ler: PAQUISTÃO...

Encontra-se disponível na página do Público um artigo publicado no mesmo jornal a 18 de Outubro de 2007, aquando do regresso de Benazir Bhutto à sua terra natal, Carachi, após nove anos de exílio. Filha do antigo primeiro-ministro Zulfikar Ali Bhutto, fundador do Partido Popular do Paquistão, Benazir Bhutto formou-se em Ciências Políticas e Filosofia nas universidades de Harvard e Oxford. Após o derrube do governo liderado por seu pai, então executado, Benazir Bhutto esteve presa durante cinco anos. Foi autorizada a sair do país para tratar uma infecção no ouvido! Regressou ao Paquistão em 1986, tornando-se no principal rosto da oposição ao regime antidemocrático do general Zia ul-Haq. Em 1988 o avião onde seguia Zia ul-Haq despenhou-se. Seguiram-se as eleições que Benazir venceu depois de ter prometido «alimentar a população, garantir assistência médica aos pobres e um salário mínimo». Após 20 meses no poder, o governo de Benazir Bhutto caiu minado pela corrupção. Regressou ao poder em 1993, para voltar a cair, pelas mesmas razões, em 1996. Entretanto, «a família tinha arrecadado um património avaliado em 1,5 mil milhões de dólares ganhos em negócios ilícitos através de todas as esferas de governação», embora os escândalos de corrupção nunca tenham sido provados em tribunal. Os dois últimos parágrafos do artigo do Público são especialmente interessantes: «E é também aqui que estão as dúvidas sobre quem será a mulher que hoje aterra em Carachi. “É uma mulher muito diferente do que era em 1986. Nessa altura, voltou muito jovem para desafiar um ditador. Agora volta outra vez, para se aliar a um”, comenta ao P2 a biógrafa Christina Lamb. “Isto vai tornar difícil ela poder dizer que está a lutar pela democracia.” Também não ajuda o facto de este acordo com Musharraf para uma partilha de poder ter sido arquitectado pelos EUA, a quem agrada ver em Islamabad alguém que diz defender a democracia e se opõe ao extremismo religioso. “Há muito entusiasmo [com o seu regresso] mas não necessariamente apoio”, diz Lamb. “É difícil saber como isto se traduzirá em votos.” Christina Lamb, que tem falado com Benazir, não tem dúvidas: se há dois anos parecia ver pela frente “a morte do seu futuro político”, agora “está uma mulher diferente, até na aparência. Parece alguém a quem a hora chegou, a quem as coisas começaram a correr bem”.»

NA MORTE DE BENAZIR

Benazir Bhutto foi hoje assassinada, supostamente por fundamentalistas islâmicos. Isto deve fazer-nos pensar, após percurso tão ambivalente, no principal cancro da democracia (ou, se quiserem, dos regimes que se dizem democráticos). É costume ouvir-se dizer, provavelmente com razão, que a democracia é o pior dos sistemas depois de todos os outros. O que temos hoje no mundo é uma desacreditação da democracia enquanto sistema político, motivada por sucessivos casos de corrupção, relações promíscuas entre os poderes económico e político, conluios, manigâncias, jogos de poder que têm em vista, única e exclusivamente, o benefício de quem chega ao poder e de quem está com os que chegam ao poder (sejam eles quem forem). A grande maioria das populações, vítima consecutiva dos enganos do regime, volta-se, assim, para as respostas mais fáceis, óbvias e imediatas à situação calustrofóbica em que vai sobrevivendo. É fácil perceber quais são essas respostas. Na verdade, mesmo a maioria dos países que se afirmam enquanto "democracias consolidadas" não vivem em democracia senão nesse aspecto residual do debate político. O problema é que esse debate efectua-se, quase sempre, sob a ameaça dos interesses privados e obscuros de uma minoria. A democracia, creio, não se resume a eleições de tantos em tantos anos, uma imprensa livre (resta saber de quê e de quem?), liberdade de expressão. Tudo isso é muito importante, mas não mata a fome a ninguém.

OVÍDIO NO TERCEIRO REICH


non peccat, quaecumque potest pecasse negare,
solaque famosam culpa professa facit
(Amores, III, XIV)

Amo o meu trabalho e os meus filhos. Deus
É distante, difícil. E coisas acontecem.
Demasiado perto dos velhos cochos de sangue
A inocência não é uma arma humana.

Aprendi uma coisa: não desprezar demasiado
Os malditos, que, na sua esfera,
Harmonizam estranhamente com o divino
Amor. Eu, na minha, celebro o coro-de-amor.
Tradução de Manuel de Seabra.

Geoffrey Hill

Geoffrey Hill nasceu em Bromsgrove, Inglaterra, no dia 18 de Junho de 1932. Estudou em Oxford, onde publicou os primeiros poemas, num jornal universitário, com apenas 20 anos. Após a formação universitária, ensinou literatura e religião nas universidades de Leeds, Bristol, Cambridge e, já no final da década de 1980, Michigan. Como poeta, estrteou-se em 1958 com o volume For the Unfallen. É hoje considerado um dos mais importantes poetas ingleses da sua geração.

POP MUSIC

Escrever amargura, com ou sem estilo, fica sempre amargo. É como pôr sal a mais na sopa, quando o preferível seria deixá-la insonsa. Quem a meter à boca, que a tempere com a quantidade de sal desejada. Assim escrever amargura. Mesmo quando sabemos de cor a cor das camisas, as costuras das calças desbotadas, compradas já como se fossem velhas, mesmo quando vestimos de novo roupagens que parecem velhas, roupagens que, compradas em segunda mão, ninguém notaria não serem em primeira. Se pudéssemos pôr sal no sol, não tardaríamos na noite escura. Não podemos. Daí que andemos para aqui e para acolá, achados no labirinto das imagens, muito orgulhosos de termos achado a metáfora perfeita para a nossa canção preferida. Lembrar-te-ás da tua canção preferida daqui a, vá lá, dez anos? Aposto que, se te lembrares, não te lembrarás que um dia, há dez anos, te colocaste esta mesma questão. Porque é tudo muito relativo quando os artigos precedem os hífenes, porque é tudo muito verbal quando os tempos precedem os verbos, porque é tudo muito a piada perfeita na ponta do dedo indicador, porque é tudo muito desunhado, mesmo que, para disfarçar, haja quem passe verniz pelo sabugo. Ninguém te exige que sejas claro, que digas sinceramente com sinceridade, que escrevas como quem fala. Não há isso de escrever como quem fala. Quem escreve como quem fala limita-se a falar, não escreve. Ninguém te exige nada. Apenas te sugerem mais cuidado no condimento, respeito pela cardiologia dos fracos, o gosto está-nos no goto, pedimos-te espaço para a respiração. Caso contrário, embucharemos. E quem pode aturar um povo embuchado? Andamos tão dias na claustrofobia. Deixa-nos, pelo menos, uma ou duas sementes à mão, para que, depois, possamos plantar ideias nas palmas, ideias que florescerão dando frutos para a terra, frutos que pisaremos como se fossem livros espalhados pelos quartos, livros rasgados pelas mãos das crianças, já que para elas outro objectivo não há-de ter a capa de um livro senão o de ser rasgada.

UM NATAL ÀS CORES

Em geral estava frio. Um frio
límpido e seco com um tom de azul cobalto
muito escuro no horizonte, quando
surgiam no céu os primeiros
luzeiros de Orion ou da Ursa Maior. Para os lados
de Ocidente, a seguir à noitinha, um clarão
débil propagava-se sobre o bosque
de castanheiros: e eram as luzes da cidade acocorada
no princípio da aba da Serra, estendida no pequeno vale
para lá das colinas e dos pinhais.

Às vezes chegava alguém
até ao muro da azinhaga - primeiro sinal de casas
e de gente; e eram vizinhos das quintas em volta,
alguns bufarinheiros com a sua mala
de corre-mundos, um que outro mendigo mais afeito
aos campos e à sua generosidade em que as Estações
se sucediam com figos, castanhas, laranjas ardentes
de sumo e de cor, o bom pão dormido e coberto
de toucinho rechinante ou rescendente de frescura
com o queijo duro e a manteiga entre duas capas
de presunto. Porque à gente de boa paz nunca se negava,
por vontade do Pai e da Mãe, o aconchego
do estômago e uma que outra placa
desviada ao serviço de domésticas,
económicas utilizações. E havia
o tio Noitinhas que, contava-se, fôra rico e decaíra; o tio
Chico do Mel (esse levava sempre, porque tinha o meu nome,
um pedaço de chouriço ou de paio,
de reforço); a ti’ Ana
Grila, que corria Ceca e Meca desbastando por dentro
a saudade de um filho e de um marido que lhe haviam
morrido de desastre lá para as lisboas
da construção civil; e o tio Martinho, sempre com um canito
à ilharga: figura e retrato escarrapachado do homem-do-saco
que tantas vezes me faria comer o prato sem tardança, ele que era
manso e sereno como um irmão de Heliópolis e cuja voz,
tirante as barbaças de monge, era suave posto que rouca e mais
afeita a dialogar com o rafeiro que a assustar
fôsse quem fôsse. Mas as crianças, já se sabe,
vêem o tempo com olhos maravilhados e sobre a sua
imaginação corre uma brisa deslumbrante e divina
que lhes permite ver um emissário de mistérios e segredos
num pobre pedinte alentejano.

E depois, quase de repente, era Natal. Com todas as suas
maravilhas incógnitas: o grão cozido e pisado para o recheio
das azevias largas como uma palma de mão ou
diminutas como um ninho de andorinha-do-mar;
o bacalhau que o Pai trouxera da cidade de juntura
com misteriosos embrulhos encaminhados à socapa
para as secretas geografias das gavetas da cómoda
grande; a Tia cortando o pão para a sopa de cação
apaladado de alho e demais ervas próprias, a Mãe
estendendo o manto das filhós depois fritas
com cuidados e saberes de alquimista, a Mana
que ajudava neste e naquele trabalho para depois saber
quando crescesse com filhos e responsabilidades
por dentro e nas mãos operosas. E, pela noite, vinham
então a vizinha Mari'José, o vizinho Manuel Planeta, as
filhas Jacinta e Júlia e, às vezes, a minha Avó das histórias
com seu saquinho de malhas, lá de longe das Arronches,
e no meio duma conversa, dum riso, duma garfada,
dling dlong e era já meia-noite? Já, a missa do galo
sentida por cima dos pinheiros, chegada da capela
de S. Cristóvão do Atalaião? Sinal de fraternidade na noite
subitamente silenciosa.

Um Natal às cores. Com as cores do passado. Fotografado
pela memória da infância e da
recordação agradecida.

Nicolau Saião

26.12.07

SUPER TARANTA!


Tanta conversa com os Interpol, para agora não ver Our Love To Admire listado nos best of 2007. Repetem-se In Rainbows, dos Radiohead, Neon Bible, dos The Arcade Fire, Kala, de M.I.A., Sound of Silver, dos LCD Soundsystem, Person Pitch, de Panda Bear, Boxer, dos The National e 23, dos Blonde Redhead. Menções a Robert Wyatt e Amy Winehouse eram previstas, assim como, de certa forma, ao álbum The Shepherd’s Dog, de Iron & Wine. Menos óbvia, pelo menos para mim, é a presença de Robert Plant and Alison Krauss, com Raising Sand, em tantas dessas listas de final de ano. E não esperava mesmo nada que Myths of The Near Future, dos Klaxons, aparecesse apenas referido nos tops 10 do NME (em 1.º), do The Guardian (em 5.º) e da Uncut (em 10.º). É um disco forte de todos os pontos de vista, pelo que se estranha tamanha descrença. Mais que óbvio era que o meu disco do ano não aparecesse em nenhuma lista, fosse esquecido, preterido, negligenciado. Era mais que óbvio. Ainda assim, é o meu disco do ano. Chama-se Super Taranta! e assina Gogol Bordello, projecto do ucraniano Eugene Hütz (andou fugido pela Polónia, pela Hungria, pela Áustria e pela Itália até assentar praça em Nova Iorque). Trata-se de uma música ao mesmo tempo divertida e de pendor intervencionista, no sentido político do termo. Agrada-me sobremaneira, nestes áridos tempos de globalização, o cosmopolitismo dos Gogol Bordello, com raízes no cabaré, na festa cigana e… no punk. Projectos como este ou como os de Manu Chao podem, de alguma maneira, revitalizar a chamada música de intervenção, aqui elevada pelo sentido de humor, pelo sarcasmo e pela ironia de quem a pratica. De certa forma, os The Pogues e os Violent Femmes e, porque não, Frank Zappa, haviam realizado o mesmo em contextos estéticos e espaciotemporais diversos. Com os Gogol Bordello, ao quarto álbum, o que acontece é as fronteiras serem aniquiladas, as culturas fundem-se, os ritmos voltam a dar sentido e sensação à palavra revolta. Sendo assim, contra as cançonetas neo-deprimentes dos urbano-depressivos, contra o pseudo-experimentalismo da pop mais elástica, proponho a gargalhada estridente e revolucionária dos Gogol Bordello.

PARA O PESSOA

o cais da pedra nunca foi seguro

as nossas naus cacilheiros
nunca saíram a barra
e é mentira o mar
galgado de marinheiros

sonhos que não soubemos,
sonhar?

o destino dos portugueses (havendo)
grandeza é não serem portugueses
- é sabido

o cabo da boa esperança espera ainda
o Portugal marinheiro, o que nunca foi,
tão curvados andamos
portugal dos pequeninos

(que sede essa matada a cal?
ma espuma do mar da palha
- que é do rio?)

portugal nunca foi no mar
- de que serve erguer
velas sem vento
mercadores e sotainas remando
sim, rimando
poetas e piratas
o mundo novo? –

portugal em terra é um naufrágio

Jorge Fazenda Lourenço
Jorge Fazenda Lourenço nasceu na Covilhã, em 1955. Poeta, crítico e ensaísta, obteve, em 1933, o grau de Doctor of Philosophy na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, com uma dissertação sobre a poesia de Jorge de Sena. Tem colaboração dispersa por vários jornais, revistas e volumes colectivos, portugueses e estrangeiros. Estreou-se em livro com Pedra de Afiar, publicado em 1983 na colecção Gota de Água da INCM.

TAMBÉM CONSTATO QUE:

Independentemente do bom gosto dos artistas e em nome da liberdade de expressão, devem poder fazer-se e publicar-se cartoons sobre maomés, papas, reis, rainhas e príncipes. Mas cuidado com documentários sobre "certos" poetas. Aí é preciso ser escrupuloso, sobretudo se os "certos" poetas não quiserem ser docartoomentados. É que há poetas e deuses. Só os primeiros merecem a nossa reserva.

25.12.07

ESTA NOITE AO MEIO-DIA

(para Charles Mingus e os Clayton Squares)

Esta noite ao meio-dia
Os supermercados anunciarão DESCONTO em tudo
Esta noite ao meio-dia
As crianças de famílias felizes serão mandadas para um asilo
Os elefantes contarão uns aos outros anedotas humanas
A América vai declarar paz à Rússia
Generais da Grande Guerra venderão capacetes nas ruas no 11 de Novembro
Os primeiros narcisos do Outono hão-de aparecer
Quando as folhas caírem para as árvores

Esta noite ao meio-dia
Os pombos vão caçar gatos pelos quintais
Hitler dir-nos-á que lutemos nas costas e nas praias
Um túnel será aberto sob Liverpool
Serão avistados porcos voando em formação sobre Woolton
e Nelson não só receberá o olho de volta mas também o braço
Os Americanos brancos exigirão igualdade de direitos
em frente da Casa Preta
e o Monstro acaba de criar o Dr. Frankenstein

Moças em bikini estão a banhar-se na lua
Canções populares estão sendo cantadas por autêntico povo
As galerias de arte são interditas a maiores de 21 anos
Os poetas vêem os seus poemas no Top 20.
Os políticos são eleitos para manicómios
Há empregos para todos e ninguém os quer
Em ruelas escusas amantes adolescentes beijam-se
à luz do dia
Em campas esquecidas em toda a parte os mortos calmamente
enterrarão os vivos
e
Tu dir-me-ás que me amas
Esta noite ao meio-dia

Tradução de Manuel de Seabra.


 Adrian Henri

Adrian Henri nasceu a 10 de Abril de 1932. Poeta e pintor, tornou-se conhecido como teórico do denominado grupo de Liverpool, composto por um trio de poetas, Brian Patten, Roger McGough e o próprio Adrian Henri, feitos notar a partir da publicação da antologia The Mersey Sound. Estudou arte, foi professor, ganhou vários prémios nesse domínio. Foi membro de uma banda, The Liverpool Scene, com a qual gravou quattro LPs de poesia e música. Faleceu no dia 21 de Dezembro de 2000.

CONSTATO QUE:

As épocas de férias e os dias de descanso são os mais parados em termos de produção blogosférica.

MENSAGENS SUBLIMINARES

Reparo agora que, precisamente na noite de Natal, o Insónia foi linkado numa caixa de comentários do Diário Ateísta. Isto deve querer dizer alguma coisa.

A CONSOADA DOS POBRES

Moelas e cogumelos de entrada, mais um patê de atum que estava uma delícia. Seguiram-se as sapateiras, regadas com um branco da Cartuxa, e o polvo com natas. Olarila! Para sobremesa, um doce de banana, molotof, arroz doce, bolo-rei, pão de ló e coscorões vários. O café foi acompanhado por um licor Beirão. Depois abri quatro gigantescos sacos de presentes, dois para a Matilde e dois para a Beatriz. Prendas dos avós, das tias, amigos mais chegados, em suma, uma canseira de bonecos, pinturas, jogos, roupa e sei lá mais o quê. Sentei-me à mesa com o meu cunhado e queixámo-nos do consumismo, falámos da grande via e do anarquismo ontológico, das prendas que oferecemos um ao outro (eu dei-lhe o Debaixo do Vulcão, ele deu-me O Quadro Negro da Samira Makhmalbaf). Isto enquanto a minha irmã se estreava no karaoke, os putos começavam a destruir os primeiros presentes, os velhos esforçavam a pestana. E pronto, é assim a consoada dos pobres. Agora vou almoçar a casa dos meus sogros, que isto a vida não está para aventuras.

24.12.07

BOM NATAL

Robert Cenedella


Sonho com um sorriso no rosto, as fadas dos contos a abusarem do meu corpo, eu a dizer-lhes que estou frito, elas a fazerem rabanadas de mim, todos à volta de uma mesa repleta de marisco.

Sonho com uma noite destas profanada à fogueira dos créditos, sonho com humilhações embrulhadas em feitiços, uma fatia de amor mergulhada no açúcar da nossa estação moral.

Sintonizo a imaginação na frequência dos teus apelos, satisfaço-te os desejos mais secretos, afogo-me nas cretinas dos braços, amparo a infecção como quem cumpre uma ordem.

É preciso empregar a família sazonalmente, alimentá-la com o sangue bolorento das cinzas, sacudi-la como quem enxota percevejos, voltar noutro dia a ser especialmente o que os genes encerram.

Quero apenas dizer, muito superficialmente, que a poesia não mora neste Agosto abstracto, nesta neve indecifrável, mesmo que sobre o gelo indefinível patinem os ritmos da língua.

Quero apenas dizer que há muito espeto o corpo na sombra dos tristes, que fico para ali a gravar a alegria das crianças e a pensar nos tumores da rua. Saber que há esta incompatibilidade, é todos os anos a cama dos meus dias.

E dizê-lo assim muito claramente, sem metáforas pelo meio: não tem cura esta doença, para sempre fascinados com as nossas alegrias jamais pertenceremos à fome assassina dos esquecidos.

BOM NATAL ALTERNATIVO


DESCUBRA AS DIFERENÇAS

Entre o treinador de futebol Manuel Machado…


…e os críticos da área do pop rock do Ípsilon.

Sentido algum nos permite revelar onde estamos
ou, apenas um percalço, a sensação sempre presente
de desprendimento.
Intuímos como quem segue a noite em imagens
sem nomeações ou mistérios
abandonados apenas ao desencadear de turbulências
que nos trazem alegrias, tristezas,
um ou outro odor, alguma mágoa.

Vamos confinando o dia, a noite, todo o corpo
ao olhar, à voz que nos persegue
e nunca é demais a tarde
quanto é tarde já pela manhã e melhor fora
não repartir esta luz à medida, por vezes, do ardor
e do que fica no poema
outra conjura, outro norte, a mesma voz, um outro tema?

Helga Moreira

Helga Moreira nasceu em Quadrazais, Guarda, a 29 de Abril de 1950. Publicou o primeiro livro, Cantos do Silêncio, em 1978. Tem poemas dispersos por várias publicações. O poema que aqui reproduzimos apareceu no n.º6 de Hífen – Cadernos Semestrais de Poesia. »

O COVIL

Não vi, não quero ver e tenho raiva de quem viu. O remate é exagerado. Apenas não vi nem quero ver o documentário sobre o poeta que não quer ser documentado, que recusa prémios, que rejeita transformar-se numa estátua perdida num jardim de pedras. Mas a verdade é que respeito tanto que o poeta não queria ser documentado como respeito quem o pretenda documentar. Afinal, não é por ser poeta que o poeta deverá merecer mais consideração ou ter a sua liberdade e o seu direito à privacidade mais preservados que os demais. Vivemos num mundo agressivo e invasor. Se não pretendemos esse mundo, então que o recusemos no limite. Há duas formas: engavetar a vida ou abreviá-la.

MÍNIMOS

Não posso ter destas questões uma opinião que não seja a mais prática possível em função da experiência pessoal. Diz-me a dita que o mínimo é sempre mínimo, que devia haver uma forma de obrigar quem emprega a pagar o trabalho em função da produtividade do empregado. Não me cabe na cabeça, por exemplo, que em nome da concorrência, sempre com a balela dos benefícios para o consumidor a alumiarem o caminho, se dê cabo do poder de compra das pessoas. Porque, em nome da concorrência, o que se verifica é toda uma série de pretextos para não pagar o trabalho com o mínimo de justiça exigível. Ele é toda uma parafernália de recibos verdes, estágios de borla, flexiprecariedade, objectivos inalcançáveis, que apenas garantem os lucros de quem emprega e a atitude rastejante de quem trabalha.

22.12.07

CURA PARA A INSÓNIA

Sempre que os pais discutiam, Walter ligava o velho gira-discos e largava a agulha num espaço vazio depois da última canção. Psshhhhhhhhhhhhhhhh-pop, fazia. Se então continuasse a ouvir-lhe as vozes, aumentava o volume.
PSSHHHHHHHHHHHHHHHH-POP.
PSSHHHHHHHHHHHHHHHH-POP.
Enchendo o quarto com a ausência de música.
Passados trinta anos, depois do seu próprio divórcio, guarda o gira-discos no quarto. Há noites em que só consegue adormecer com a ausência de música no volume máximo.

Bruce Holland Rogers, Pequenos Mistérios, trad. Luís Rodrigues, Livros de Areia, Novembro de 2007.

LISTAS

É sempre com algum enfado que passo os olhos pelos balanços de fim de ano. Repetem-se os tiques, as falhas, os gestos, tornam-se os dias ainda mais previsíveis. Os balanços têm essa natureza da previsibilidade, assim como as reacções que os sucedem. Singelas reacções como a minha já não são novidade, fazem parte da mobília e servirão para pouco mais do que lembrar, à escala reduzida dos leitores deste texto, que os balanços apenas serão para levar a sério quando forem feitos a brincar. Sonho, por exemplo, com um inventário fastidioso de todos os títulos publicados durante o ano. Tal sonho provoca-me uma espécie de agonia que, estou em crer, seria a mesma que muitas outras pessoas sentiriam se lhes fosse dada a possibilidade de verem para lá das sínteses programáticas dos agentes publicitários da imprensa portuguesa. Desconfio que seria uma agonia pedagógica. Noto, por exemplo, que nos livros escolhidos pelos assalariados do Ípsilon faltam títulos como Alexandre O’Neill – Uma Biografia Literária, de Maria Antónia Oliveira; A Velha e Outras Histórias, de Danill Harms, organizado e traduzido por Nina e Filipe Guerra; ou ainda – porque não? – os Pequenos Mistérios, de Bruce Holland Rogers, com tradução de Luís Rodrigues; assim como não chocaria uma referência a Antecedentes Criminais – Antologia Pessoal 1982-2007, do prolífico Amadeu Baptista, autor que, já este ano, venceu mais dois prémios literários atribuídos a originais (Prémio Nacional de Poesia Natércia Freire, Prémio Literário Florbela Espanca). E para não me alongar muito em referências, referirei apenas que ando a ler, neste momento, aquele que é, certamente, um dos meus livros do ano. Chama-se A Lenta Volúpia de Cair – ensaios sobre poesia, foi editado pelas Quasi em Março passado, e é da autoria de Pedro Eiras.

2005, 2006, 2007?

Pelas torres circulam os cabos que nos trazem a luz às casas. Que nos trazem o ruído dos electrodomésticos, o cheiro das torradas queimadas. Pelas torres circulam os cabos por onde passam vozes, corpos imateriais, os dias dos velhos e dos novos modos de ir passando pela velhice. (daqui)



Afinal, o que há no velho que incomoda tanta gente? (daqui)



Formigas assassinadas, caídas na teia dos ra(p)tos.

TÍTULO

O novo livro de A. Pedro Ribeiro intitula-se Um Poeta a Mijar (Corpos Editora). Ansiamos pela sequela Um Poeta a Cagar.

21.12.07

RECEITA PARA UM NATAL


Primeiro, ficar parado
durante um momento, de pé
ou sentado, numa sala ou mesmo
noutra dependência do lar.
Depois preparar
os olhos, as mãos, a memória
e outros utensílios indispensáveis. A seguir
começar a reunir
coisas, por ordem bem do interior
do coração e do pensamento:
a ternura dos avós, uma mancheia;
rostos de primos distantes, uma pitada;
sons de sinos ao longe, quanto baste;
a recordação duma rua, uns bocadinhos
um velho livro de quadradinhos
duas angústia mais tardias, alguns restos de azevias,
a lembrança de vizinhos ainda vivos mas ausentes
e de uns já passados.
Quatro beijos de seres amados ou de parentes
um cachecol de boa lã cinzenta aos quadrados
e um pouco de azeite puro e fresco
igual ao que a mãe usava noutro tempo saudoso.
Mexe-se bem, leva-se ao forno
e fica pronto e saboroso

- mesmo que, nostálgica, se solte uma pequena lágrima.

Nicolau Saião
do livro “Os olhares perdidos”

Bloco de Apontamentos #64


MJLF, Dezembro, Acrílico s/papel, 21x15 cm, 2007
Para meias ou sapatinhos insones

Um vagabundo deambula em direcção ao largo onde o ancestral lenho arde na noite mais fria e longa do ano; as portadas das casas estão fechadas, excepto uma iluminada de azul, onde bate à porta. A habitante vai à janela, convida-o a entrar, perguntando-lhe porque traz aquele saco de plástico nas mãos; ele responde que são as suas malas, perdeu tudo e é o que lhe resta. A anfitriã apresenta-se como a habitante do tempo, mostrando-lhe as paredes interiores da casa cobertas de escrita, contando-lhe que a luz azul se acende no escuro quando escreve; ela repara que os olhos do viajante são dessa cor e diz-lhe que ele vê o mundo através do azul; ele queixa-se que os pés o estão a matar, sentando-se junto à lareira. A habitante do tempo conta-lhe que há vinte anos lhe cresceram asas nos pés, mas depois aterrou no chão e a terra passou a querer engoli-la em cada passo; foi então que ergueu a sua casa no tempo, um abrigo onde habitam estórias numa espécie de ruína de escrita. O vagabundo conta-lhe que há muito perdeu as palavras escritas e agora apenas caminha num silêncio sem rumo; ele sente o calor do fogo a adormecê-lo em paz. No dia seguinte, o vagabundo acorda no largo junto ao lenho que ainda arde, olha à sua volta procurando a casa onde pernoitou, mas não a encontra; ele repara que na sua mão direita tem uma caneta com uma luzinha azul dentro da carga; pensa então que sonhou, mas ao espreitar para dentro do seu saco de plástico, descobre uns deliciosos sonhos de abóbora.

Maria João

POEMA POLÍTICO

O botão de dente-de-leão erecto
uiva no intelecto torturado,
uma nuvem pode matar homens
e enfraquecer exércitos inteiros,
o odor de jacinto absorvido
é a origem da revolução.

Dois grilos cantando na relva
podem gelar a massa continental,
uma raposa enrolada à volta da ninhada
pode gelar de morte uma era do mundo,
cabras de zoo numa rocha artificial
são a bandeira da revolução.

E o feroz puma e o macaco ardente
arrancam as próprias entranhas deformadas,
e os jovens amantes cujo sol
é um sol perfeitamente perfeito
entregam-se sobre mares e sobre terras
à morte violenta com sangrentas mãos.

Tradução de Manuel de Seabra.

Peter Levi

Peter Levi nasceu em Ruislip, Middlesex, no dia 16 de Maio de 1931. Estudou em Oxford, onde viria a ser professor de poesia. Poeta, arqueólogo, sacerdote jesuíta (até 1977), biógrafo, professor e crítico, Peter Levi estreou-se em 1960 com o livro The Gravel Ponds. É autor de uma vasta obra, traduzida em várias línguas. Faleceu no dia 1 de Fevereiro de 2000.

A FESTA FOI PORREIRA, PÁ

O Rui, o impagável Rui, apareceu com presentes no bolso. A Maria João também esteve por lá, nunca falta. E a Sara com o Rodrigo (ou o Rodrigo com a Sara), mais um montão de gente que eu não conhecia de lado algum ou só conhecia de vista. Também estou convencido de ter avistado por lá um fauno, mas não estou seguro de que os faunos usem carapuços. O DJ era impecável. Como prometido, havia morangos com açúcar… numa bandeja. O Sorrentino apareceu em vídeo a falar sobre Machado de Assis. Eu fui literalmente aterrado numa cadeira onde palestrei sobre o que quis, nomeadamente sobre os efeitos da construção em altura num homem vulgar que escreve livros. Assistimos, também, à leitura de um conto do Fernando Sorrentino. Havia uma instalação, uma estante com capas de livros e tesouras (inteligente associação), uma cadeira rodeada de terra, por aí. As minhas estórias andavam espalhadas pelos corredores. Só faltou o João Camilo (o livro do Machado está impecável!). Em corpo, já que em palavra escrita andava por lá. Parabéns pela festa. Foi porreira, .

20.12.07

PRÉMIOS & INICIATIVAS

Não me tinha apercebido da iniciativa. Fui alertado para a mesma pelo excelente Legendas & etcaetera, o qual me levou até este texto: A iniciativa para a eleição do melhor blogue português contava com 10 elementos no jurí. Dos 6 melhores blogues na categoria de melhor blogue português, 4 são blogues de membros do júri. Dos 18 blogues nomeados pelo público para tal categoria, o júri decidiu colocar em primeiro, segundo, quarto e sexto lugar blogues dos membros do júri. Ser júiz em causa própria é deveras interessante... É sempre assim com iniciativas do género, é (quase) sempre assim com prémios. Qualquer dia, acorde para aí voltado, faço um post sobre coincidências na atribuição de prémios literários.

HÁ FESTA NA NAVE


Com muito esforço pessoal, como diria o outro, marcarei hoje presença na festa de lançamento da editora OVNI. Informam os editores que haverá música, vídeo, intervenções de autores, (re)presentação de texto; instalação, livros e morangos com açúcar. A minha intervenção será, seguindo a proposta que me foi feita, sobre o tema “O que eu quiser”. Estão todos convocados para esta prometedora palestra. Sendo que recebi, no passado dia 16, um SMS informando-me de que, e passo a citar, estou “ao lado da Fátima Lopes no escaparate da Fnac do Colombo”, é de prever a presença da SIC nesta festa do outro mundo. Apareçam, a televisão estará por lá. É hoje, na Fábrica de Braço de Prata, a partir das 21.30h.

TEORIA LÍRICA (3. policial)

1. A idade certa para casar é ele com 34 anos e ela com 27. Sobretudo num comboio como este, que não pára em nenhum estação ou apeadeiro.

2. De repente um enorme campo de arroz, um homem e uma mulher. O homem segura a mulher como um utensílio agrícola. Uma pequena pá talvez, ou um objecto mais suave que não sofre com a força da mão.

3. Admitindo que o comboio não avança em piloto automático, um terceiro elemento existe: o condutor. É ele quem sai agora da sua cabine com uma caneta na mão. ´

4. No campo de arroz, a mulher encomenda uma estação favorável abrindo muito as pernas. Desta vez não sente prazer, não quer, acontece-lhe apenas uma vez por ano. É uma mulher feliz.

5. O comboio prossegue, sozinho, sobre a imensa recta do país plano.

O condutor do comboio vê a mulher ao fundo do corredor e escreve: vejo a mulher ao fundo do corredor e escrevo; não sei se a amo, é a primeira mulher que vejo em toda a vida.

6. A imagem seguinte é a de uma cabeça deitada na mesa, sobre os braços, o cabelo castanho tapando-lhe os olhos.

7. Nessa noite o condutor do comboio vê: o campo alagado, visões brancas e algo baças como figuras projectadas através de uma folha transparente.

8. Nenhum alerta veio ou sinal de inquérito. O comboio pára ali; as quatro mãos morenas interrompem o trabalho e olham.

9. Na janela do comboio os dois, apenas os dois.

10. Nenhum crime, nenhuma dor, nenhuma lembrança. Que melhor podes ter para começar.


Rui Costa

19.12.07

JUNTO AO MAR DE NEBLINA

Caspar David Friedrich
1774–1840

Não tenho esperança no futuro. Para mim, o futuro só tem dois nomes: morte e esquecimento. Talvez por isso, tenho da vida uma doentia noção de insignificância. Dou valor à vida mais que a outra coisa qualquer. Porque a julgo rara, dou-lhe imenso valor. Mas, quando penso a vida, não consigo pensá-la sem a morte. A morte não me assusta, não tanto como a dor. A morte apenas me desanima e desencanta. De certa forma, a morte torna-me a vida bem clara. Julgo eu.
Portanto, sempre que faço uma coisa fico a pensar no porquê de a ter feito. Há coisas que se fazem porque têm de ser feitas, outras há que se fazem apenas por não nos ser possível escapar a elas, havendo ainda aquelas coisas que se fazem por mero acaso. De todas estas coisas, interrogo-me sobre a significância das mesmas. Olho para mim entre a minha família, para a minha família entre os meus vizinhos, para os meus vizinhos entre os meus conterrâneos, para os meus conterrâneos entre todos os portugueses, para os portugueses entre os cidadãos europeus, para os cidadãos europeus entre a humanidade, para a humanidade entre um espaço sem fim de cometas, asteróides, planetas, vocês sabem. E depois olho o mar.
O mar é uma força sempre em movimento, essa força tremenda, que jamais homem algum há-de compreender. Olho o mar, na sua imensidão, e sinto a minha real dimensão no mundo. Na verdade, somos todos muito insignificantes. Que façamos coisas para disfarçarmos a nossa indisfarçável insignificância, é apenas prova de que nos falta algo, de que carecemos de qualquer coisa que amplie o sentido de estarmos aqui, sem qualquer importância, como meros dentes de uma gigantesca engrenagem sem sentido aparente.
Há quem responda a estas "sensações" pensando em Deus, há quem lhes responda não pensando, há quem prefira fazer compras, investir na bolsa de valores, coleccionar obras de arte. Há quem escreva livros. Há quem se confirme, desde muito cedo, com este facto incontestável: a nossa presença no mundo não tem qualquer importância. Dir-me-ão de homens geniais, de feitos heróicos, de magníficas construções e conquistas humanas. Levaram-nos onde? Até aqui? Agradeço o esforço.
Supondo que, mais tarde ou mais cedo, o planeta, por qualquer razão misteriosa, implodirá; supondo que, mais tarde ou mais cedo, tudo isto irá desfazer-se em pequenas partículas de pó, que importância pode ter um quadro de Picasso ao pé de um indivíduo a morrer de fome? Que importância pode ter uma extraordinária obra arquitectónica ao pé de um indivíduo a ser torturado? Que importância podem ter o indivíduo torturado e o outro a morrer de fome ao pé do simples burguês que se dedica a vigarizar o próximo para poder pagar as contas domésticas?
Quando atingimos o limite niilista do sem sentido, convém relativizarmos o absurdo da existência. Caso contrário, facilmente seremos engolidos pela soberba da nossa própria insignificância. Não pretendo ser moralista, mas creio que para não se atribuir importância ao que quer que seja convém, pelo menos, reconhecer a importância de desimportantizar a vida. Não se trata sequer de justificar a existência ou torná-la útil. Trata-se apenas de viver um pouco mais do que vivem os mortos.

NOMES

As pessoas têm nomes estranhos, nomes que nem imaginávamos existirem antes de os pronunciarmos. Há homens que se chamam Gandrita Carago, Israel Ana, Virgolino, Durbalino, Hermitério. E há mulheres que se chamam Furão, Franquina, Jugurdina, Graziela. Véstia é apelido de famílias inteiras, assim como Arranja, Cayolla, Torroães, Ferrolho, Mandingas, Barrigoto, Tareco, Manangão, Nazário, Palricas, Bioucas, etc. Há quem acredite que os nomes dizem muito das pessoas, que são importantes factores de influência da personalidade. Interrogo-me que tipo de personalidade poderá ter alguém que se chame Lambéria, Balsamina, Juscelino, Felindo, Pitonisa, Gagueija, Lameirão, Charana, Carballo, Baqueiro, Farrapa, Tanchão, Penila, Azeitona, Chumbo ou Pedras Morcela. Mas interrogo-me mais ainda por que razão recorrem os escritores portugueses, nomeadamente os mais jovens, a nomes estrangeiros para as suas personagens, quando têm, entre as suas gentes, nomes desta envergadura.

QUATRO PERGUNTAS (SEGUIDAS DE UM EPÍLOGO) AO ESCULTOR JOSÉ RODRIGUES

1. Tens na ponta do lápis uma chave
para abrir o poema.
Por onde é que ela o abre?

2. Se um besouro de asas
translúcidas entrasse
agora no poema
- tu deixavas?

3. Sabes
como se esculpe um poema
fechado a sete chaves?

4. E se uma pomba
roçasse o ângulo
raso do poema
- prendê-la-ias?

Tu que esculpes
com mãos de água o corpo
e a sombra dos dias.

Albano Martins

Albano Martins nasceu em 1930 na aldeia do Telhado, concelho do Fundão. Licenciado em Filologia Clássica, foi professor do Ensino Secundário, entre 1956 e 1976, tendo ingressado, posteriormente, nos quadros da Inspecção-Geral de Ensino. Professor na Universidade Fernando Pessoa, Albano Martins é autor de vários livros de poesia e tradutor. Estreou-se em 1950 com Secura Verde, encontrando-se hoje traduzido em diversas línguas. O poema que aqui reproduzimos apareceu no n.º3 de Hífen – Cadernos Semestrais de Poesia.

O MEU METRO É MAIOR DO QUE O TEU



daqui


As obras do Metropolitano de Lisboa recentemente concluídas são uma amostra vasta do que tem sido Portugal.

1. Falta de planeamento. Em 2000 houve uma infiltração de água e lama e um abatimento de terras que obrigaram a uma reformulação do projecto inicial.

2. Os piores são os melhores. O presidente do Metropolitano de Lisboa, Joaquim Reis, considera que o túnel que a partir de hoje vai ligar a Baixa-Chiado a Santa Apolónia é “o mais seguro do país”.

3. Depois vê-se isso. Não foi feito um simulacro de acidente mas Joaquim Reis adianta que este será eventualmente realizado “depois da inauguração da obra”.

4. Derrapagem e contas. A obra estava orçamentada em 165 milhões de euros (a preços de 1997) mas afinal vai custar 299 milhões (a preços actualizados). O Ministro das Obras Públicas, Transporte e Comunicações, Mário Lino, diz que isto representa uma derrapagem “na ordem dos dez por cento”.

5. Falta de responsabilização. Jorge Coelho, que na altura do acidente era o Ministro do Equipamento Social, havia dito que no seu ministério “a culpa não morre solteira” e atribuído a culpa ao empreiteiro. Mas um ano depois o consórcio Metropaço chegou a acordo com o Metropolitano de Lisboa e afinal a responsabilidade não é de ninguém.

(fonte: Público online)


Rui Costa

18.12.07

JUSTIFICAÇÃO

Doris Lessing não compareceu à sessão solene de entrega dos Prémios Nobel de 2007 pela mesma razão que muitos alunos portugueses faltam às aulas, ou seja, por motivos de saúde. No caso de Doris Lessing é até bastante compreensível, pois, afinal, está a proteger-se do mau-olhado. Justifica-se, pois então, que por razões de saúde não tivesse comparecido à tal solenidade. Eu, por motivos de doença, nunca li Doris Lessing. Mas, por motivos de saúde, fiquei com vontade de a ler.

134 MILHÕES: UMA PECHINCHA

PONTOS DE VISTA


As conclusões deste estudo são muito interessantes, embora o estudo fosse, a meu ver, completamente desnecessário. Tendo em conta os comportamentos da generalidade dos estudantes universitários, eu optaria antes por tentar estudar o que distingue dos símios estes espécimes de capa e batina negras. No entanto, continuamos a partir de premissas erradas em termos de ciência. Digo isto porque, para as autoras do estudo em causa, «os macacos até estão mais distantes de nós do que os chimpanzés, os nossos parentes mais próximos». Insistimos nesta perspectiva errada de que são os macacos que estão mais distantes de nós, quando, na realidade, somos nós que nos afastamos, cada vez mais, da sanidade dos macacos.

JUSTIÇA DE VELUDO

A absolvição, normalmente, não é notícia. Por isso mesmo, a absolvição dos 36 arguidos do caso UGT não tem merecido grande atenção. Recorde-se que estes 36 arguidos eram acusados de desviar verbas do Fundo Social Europeu. Mas este processo, que se arrastava há quase 20 anos, remontando os factos a 1988, reincide num pormenor deveras interessante: «O tribunal considerou atribuível o crime de burla na forma tentada ao dirigente da central sindical José Manuel Veludo, mas já prescrito

QUEM DIZ A VERDADE...

Vinha a ouvir na Antena 1 a notícia dos imigrantes clandestinos interceptados na Ilha da Culatra, em Olhão. Uma senhora que estava a ser entrevistada era muito enfática na afirmação da excelente actuação das autoridades portuguesas que, mais uma vez, mostraram estar devidamente preparadas para estes casos. Não duvido da senhora, mas achei graça quando esta referiu que não estava na óptica daqueles imigrantes serem capturados. Disse isto, tentando justificar a tentativa de fuga dos desgraçados. E o mais impressionante é que, depois de dizer isto, a tal senhora não soube escapar à cruel verdade, afirmando que os imigrantes, passo a citar, “até ficaram decepcionados quando souberam que estavam em Portugal e não em Espanha”. Alguém se admira?

POEMA

Não eram vulgares as mãos de meu Pai.
Um dos dedos tinha mesmo uma unha rachada
E quando pela noite o vento me fazia
tremer
algo me entrava pelos olhos e era
uma espécie de mapa
e eu lembrava-me esforçando-me contraindo
a cara
se era de facto uma luz o que se via
rés-vés ao telhado muito perto
do grande portão de pedra em ruínas.


Naqueles tempos morávamos no campo
Muitos anos mais tarde visitei a casa
com dois filhos e vários garotos vizinhos
numa tarde ao fim dum passeio pelas matas
dos arredores. Ao canto da cozinha
estava um banco velho e a madeira
ganhara uma cor acinzentada devido
ao tempo. Disse-me depois
- enquanto comíamos pão com azeitonas -
o dono dessa quinta alucinante
no pátio da outra moradia da herdade
que durante trinta e cinco anos
não morara ali ninguém. Éramos pois
nós os fantasmas daquele lugar.

Era no Inverno e as palavras repousavam
e de vez em quando ouvia-se um ruído
como de turbilhão
- certo dia um pássaro morreu junto à
porta da entrada, onde havia
uma planta como de antigas eras -

e algum tempo depois tive de partir e olhar
o universo de tudo de isto e daquilo

O oceano e as vozes recriavam-se algures.

Nicolau Saião

POEMA DE NATAL

Para todos os leitores do Insónia


Naquele tempo as luzes duravam toda a
noite. Mas faltava-lhes a eléctrica eficácia de
quem chama, vinde todos comprar um souvenir,
reis magros, corretores da bolsa, funcionários
e teleguiadas tias por estrela que conduz aos
mares do sul, cristãos e bronzeados, a minha vida
dava um filme. Nem sabe o que me aconteceu, o
vestido da Senhora não traz instruções de lavagem
e a vaquinha de polietileno engorda sozinha, eu próprio
já não sinto os olhos de tanto ver as luzes acender e
apagar. Mas uma coisa é certa: Jesus se fosse vivo
havia de ter um partido, ler os tops da Fnac e saber
de cor o nome de todos os ministros. Havia de
sair de casa pela porta da frente, cumprimentar
os jornalistas e conceder duas medidas correctivas dos
excessos do capitalismo; depois, no último degrau
levantaria a palma de sua mão direita e os passantes,
subitamente inundados de um fulgor renascido,
estugariam o passo e entrariam no metro, sorrindo,
acreditando um pouco mais no reino
que tarda a ter um fim.


Rui Costa

17.12.07

CARAVAGGIO: DAVID COM A CABEÇA DE GOLIAS


(para Henrique Manuel Bento Fialho)

Esta cabeça, que David, com um olhar
piedoso, segura pelos cabelos,
é a minha, que decidi retratar-me
como Golias degolado,
após um combate sem tréguas,
mas já com um vencedor estabelecido
pelo céu, o destino, ou o que seja.

Os homens chegam à vida para viverem,
mas o que têm mais certo é que a vida,
ou alguém por ela,
se encarregue de, ou tarde ou cedo,
lhe mostrarem o único caminho previsível,
permanecendo inimaginável
o exacto minuto do estertor,
o instante em que tudo se acaba
e a alma é entregue ao criador,
ou o criador a toma, sem mais,
ou só o vazio prevalente sobre tudo.

Era rapaz quando perdi meu pai.
Era um homem valente, que, dir-se-ia,
nada poderia derrubar,
apto para o trabalho duro, fosse a construir
casas ou a demoli-las, passando pelas estações
como um grosso castanheiro a recolher
do tempo somente o benefício, e das eras
robustez, e dos dias a alegria possível
de quem pouco mais tem que as mãos
com que se sustentar e uma casa pobre
em que abrigar-se.

Estava bem, o dia estava muito quente,
e sentou-se à mesa a refrescar-se
com uma malga de vinho e algumas azeitonas
até que o calor baixasse por alguma aragem
que amenizasse a tarde – e, de repente,
vi-o caído, como se tivesse sido fulminado
por um raio de que Deus não o tivesse protegido.

Perdi a minha mãe anos depois,
já eu estava longe da aldeia,
mas sei que a sua morte foi antecedida
por um longo período de doença
que a prostrou durante longo meses
e que se lhe meteu nos ossos
de um modo brutal, mirrando-lhe o corpo
e esvaziando-a do discernimento,
a ponto de não saber o próprio nome.

Não a vi no seu leito de morte
e, no fundo, prefiro que assim seja,
porque a posso recordar cheia de vida
às voltas pelo casebre onde vivíamos,
a arear os tachos e as panelas,
a tratar das galinhas e dos coelhos,
a pontear as meias,
a desmanchar as peças de carne
que o meu pai trazia como paga
do conserto de um telhado,
ou de um muro derrubado.

Havia nela, lembro-me,
uma ternura franca pelas coisas.
Mesmo se ralhava com as vizinhas,
que a não largavam a pedir um ovo,
um canado de leite,
ou um pé de salsa,
que nunca devolviam,
era doce e meiga,
sorrindo para todos e cuidando
de que fossem as zangas de curta duração
e as desavenças breves.

A ela devo a fascinação pela pintura.
Levava-me à igreja e apontava-me
a Via Crucis que, nas paredes do templo,
mostrava aos crentes o caminho
e, a mim, desvendava os traços do desenho,
a girândola das cores e os efeitos
que a luz fazia nos retratos,
a destacar o rosto de Pilatos a lavar
as mãos, as cabeças dos soldados
a jogar os dados, a silhueta de Cristo
a transportar a cruz, enquanto tropeçava
nas pedras e transpirava sangue,
e dor, e mágoa.

Ficava-me a olhar as estampas por tempos
infinitos, e a minha mãe deixava
que eu olhasse tudo aquilo o tempo que quisesse,
como se planeasse a aprendizagem dos meus olhos
e me adivinhasse o futuro
entre as tintas e as telas
com que expresso o tenebrismo
que cada coisa tem
quando é da vida que os contrastes chegam
e a arte é um movimento intolerável
para quem só pela arte se concebe.

Ando fugido há muito. Quer a justiça
que dê contas de um homem que matei,
mas um artista é sempre um perseguido,
senão pelos outros, pelo braço secular
que em si habita, e eu não me imagino
encarcerado, doente de malária,
longe dos meus pincéis, da minha pátria
pária, da arte a que o meu espírito se consagra
para que eu não morra nunca,
ou o temperamento com que me afirmo
perante os meus contemporâneos,
ou a memória que houver de mim.

À minha volta só vejo medíocres,
sem uma nesga de génio,
um gesto sublime que me espante
– defuntos já em vida,
maculam a essência de que vimos
e o teor vital de tudo quanto
deveriam amar e proteger
de modo a que nada se perdesse
e puro se entregasse
à procedência divina da nossa natureza.

É a minha cabeça que David
segura, pelos cabelos – no meu rosto,
o rosto de Michelangelo Merisi Caravaggio,
estão as marcas da luta
e os efeitos do combate desigual
que travo com a intransigência,
a castração e o medo,
em busca de um abrigo ou de um amigo
que saiba o que a luz faz quando nos entra
no peito e toma o coração
para que outra grandeza se estabeleça
na nossa condição

e a beleza estoure, à nossa volta,
e seja um festim, a vida,
e, por uma vez, levemos de vencida
a morte que não morre.
Amadeu Baptista
'Poemas de Caravaggio'

UM LOBODUTO PARA LUÍS FREITAS

Comprei o Expresso este fim-de-semana. Apreciei a página de humor assinada por Luís Freitas Lobo, que entre números 9 de perfil ‘girafa’, sistemas alternativos, centros aéreos, coordenadas atacantes, tapetes tácticos, alas do losango, toques de Midas - «O jogo contra o Dínamo, com Moutinho de regresso ao centro, no vértice ofensivo, foi o ‘toque de Midas’ para devolver à vida o losango.» -, consegue brindar-nos com frases de recorte técnico irrepreensível. Eis um exemplo: «Antes de viver, uma equipa tem de aprender a sobreviver.» Isto é verdade. Basta ver Everything You Always Wanted to Know About Sex, de Woody Allen, para perceber que antes de haver vida uma equipa de espermatozóides está, de facto, obrigada a sobreviver. Mas Luís Freitas Lobo é todo um tratado humorístico. Sobre o Belenenses, diz que é uma equipa que respira muito bem quando tem a bola mas que fica sem ar quando a perde. Talvez seja da humidade. E conclui: «É, portanto, uma equipa algo perturbadora. Porque pode oferecer artigos de ourivesaria de luxo, entenda-se belos gestos técnicos, mas, depois, não consegue os mais elementares bens de primeira necessidade, entenda-se segurança defensiva e esforço sem bola.» Isto é, sem dúvida alguma, assaz perturbador, mas merece-me uma crítica construtiva. Não destruas as metáforas, ó Lobo, explicando-as logo de seguida. Deixa que a nossa imaginação ganhe as asas necessárias para te acompanhar nos raciocínios. Não resisto, porém, a responder ao desafio que Luís Freitas Lobo faz no início da sua crónica central. Pergunta ele: «Concentração, magia, inteligência, criatividade, etc. Quais destas palavras melhor definem hoje uma grande equipa e os seus melhores jogadores?» Estou plenamente convencido de que a palavra que melhor define hoje uma grande equipa e os seus melhores jogadores é a palavra etc. Mas tu, caro Lobo, tu dirás qual é. Precisamos de lobos da tua estirpe a iluminarem o nosso caminho. Sugiro mesmo que, estando o Governo a preparar um ‘loboduto’ que custará para cima de €100 milhões, te construam por lá um casebre, pois és, sem dúvida, uma espécie em vias de extinção. Tão em extinção que, segundo parece, não passa um único lobo onde vão construir o tal ‘loboduto’. Passarias tu, ó imprescindível Luís Freitas. Passarias tu.

Luís Filipe Menezes é lelé da cuca.

DANIEL OLIVEIRA, UAU


1. Eu pretendo evitar ter carros de alta cilindrada (resumindo: caros) por duas ordens de razões: a) dão mais chatices a quem, como eu, não gosta de tomar conta de carros – metê-los na garagem, dar moedinha ao estacionador, etc.; b) não pretendo contribuir para reforçar a importância dos carros enquanto símbolos de sucesso – porque não me agrada a ideia de “sucesso” que utiliza estes símbolos e objectos como forma de motivar comportamentos “meritórios”, isto é, desejados pelo discurso dominante.

2. Apesar disto, tento compreender a motivação das pessoas que pensam de forma diferente da minha relativamente àqueles objectos, e que apresentam razões mais ou menos válidas para os ter, nomeadamente: a) segurança; b) prazer de conduzir um automóvel potente; c) fiabilidade técnica; d) compensação para a calvície e a próstata.

3. Quanto à publicidade em geral (e o que tem isto a ver com carros?), quando vejo a Cláudia Schiffer ou o Cristiano Ronaldo num spot, o que me passa na cabeça é um misto de dois pensamentos: tenho pena deles, insulto-os?

4. Admito, no entanto, que mesmo um indivíduo que tenha a subsistência assegurada recorra à publicidade como forma de fazer algum dinheiro extra. Mas aqui já contam os motivos. Ele pode utilizar o dinheiro para fazer algo (como uma associação que combata a estrutura social onde a imbecil publicidade é possível) que compense um “compromisso” de outro modo dispensável; ou ir passar férias.

Resumindo: fazer publicidade a um banco, para comer, é aceitável; se não for para comer depende, pode ser aceitável ou não. Isto é uma questão do foro íntimo de cada um e é também uma questão social.

5. O Daniel Oliveira fazer publicidade a um banco no seu blog mostra bem a sua pobreza de espírito. Imagine-se o homem a pensar: hum, se eu não fizer há outro qualquer, ainda mais grunho do que eu, que faz…ná, venham lá as moedinhas. Ou então: Eheh, tá o BES a pagar-me, e eu se acordar mal-disposto ainda digo mal deles, ah pois digo, lá por me tarem a pagar. Ou então: o anti-capitalismo moderno e inteligente não é compatível com posicionamentos anti-estratégicos típicos de comunistas cinzentamente desprovidos de glamour intelectual.

6. É por estas e por outras que o Bloco de Esquerda não me merece, digamos, um enorme respeito. Porque me parece ter demasiados Daniel Oliveira
, este tão agora filho da puesia.


Rui Costa