Algumas das entradas do Diário de Miguel Torga são autênticas micronarrativas. Do primeiro volume, deixo as seguintes:
S. Martinho de Anta, 20 de Abril de 1938 - Tirei hoje o leite à cabra. Mas a minha mão já não é a mão justa do lavrador que conhece a medida da sua fome. Tirei tudo. Sequei tudo. Deixei o cabrito sem ração. Meu Pai olhou-me desanimado, e a cabra também.
Coimbra, 28 de Outubro de 1938 - Ia do quarto para o consultório e, nisto, um eléctrico esmaga o pé duma criança. Mas era pouco um pé só. Acudiu por isso um automóvel e acabou por esmagar o resto da criança.
Coimbra, 8 de Dezembro de 1938 - Pavoroso incêndio numa fábrica da Baixa. Ardeu tudo. Muitos mil contos de prejuízo. Mas o seguro paga uma parte e a gente para o resto de qualquer maneira. A quem não se pode valer é àquela pomba branca que, atraída pelo clarão, veio do seu ninho, voou sobre as labaredas, e, aos poucos, asfixiada, foi descendo, descendo, até cair inanimada na fogueira.
Coimbra, 15 de Janeiro de 1939 - Que ninguém (nem eu) saiba nunca o que se passou. Dentro do poço um morto; sobre o poço uma pedra tumular; e, sobre a pedra, um puro e infinito silêncio.
S. Martinho de Anta, 2 de Outubro de 1940 - Fui mostrar-lhe a Vila. Mas fui mostrar-lha como os meus avós a mostraram às mulheres deles - a pé. Foram só seis léguas...
Resta dizer que Miguel Torga é um dos autores portugueses que mais aprecio. Nunca percebi muito bem a desconfiança que merece de certas elites. Já tenho mesmo ouvido dizer que se trata de um «autor menor», como se em Portugal houvesse assim tantos «autores maiores». A este propósito, ou quase, há ainda uma entrada no primeiro volume do Diário (para quem não saiba, a prosa diarística de Miguel Torga prolongou-se por XVI volumes) onde Torga se queixa da falta de universalidade dos génios portugueses: «Qualquer grande escritor estrangeiro, embora nunca desminta a origem, impõe-se em todas as latitudes, porque exprime valores que pertencem ao património comum da humanidade. Basta citar Cervantes, Shakespeare, Molière e Goethe.» Torga tinha toda a razão. Por isso mesmo prefiro A Divina Comédia ou o Fausto a Os Lusíadas. Por isso mesmo prefiro Pessoa a Camões. Por isso mesmo prefiro Torga, Jorge de Sena, Cesariny, O’Neill, Knopfli, Ruy Belo, Fernando Assis Pacheco a outros cujos valores só descortinamos à lupa. E quando os descortinamos, deparamo-nos com pouco mais do que desdobramentos linguísticos sem ponta por onde se lhes pegue. Não quero dizer que, aqui e acolá, não consigamos reconhecer, com a maior das facilidades, grande qualidade poética nesses autores. O problema é meu, que não logro evitar um certo enfado quando os releio. Alguns foram leituras que muito apreciei noutras idades. Porém, com o passar dos anos, parece que vou sentindo cada vez mais dificuldade em manter o mesmo espanto que me causaram aquando de uma primeira leitura. Para que não me acusem de ficar por meias palavras, cá vão alguns nomes consensuais que são cada vez menos cá de casa: Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, Herberto Helder, Pedro Tamen… Isto para ficar apenas por "uma primeira geração" de grandes poetas portugueses do século passado. Pena que não sejam também grandes poetas do mundo. Destes todos, o caso mais terrível, para mim, tem sido o de Herbero Helder. Dizem tratar-se do maior poeta português depois de Pessoa. É, sem dúvida, um grande poeta, daqueles que almejaram uma linguagem inovadora, sem paralelo na história da poesia portuguesa. Alguns dos seus livros serão, sem dúvida, verdadeiras obras-primas. A própria postura do autor, do homem Herberto Helder, favorece o mito em torno do poeta. No texto de Torga a que aludo, afirma-se que: «Como veículos literários duma mensagem para a terra inteira, só estas duas expressões – o teatro e o romance. A poesia é vaga, intraduzível, imponderável, incapaz de corporizar em figuras vivas e actuantes a larga pluralidade da vida». Neste sentido, só neste sentido, talvez a poesia de Herberto Helder tenha a mesma dimensão que certos poemas de Álvaro de Campos, as Odes de Ricardo Reis ou O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro. Mas a questão para mim é outra, provavelmente inexplicável. Eu não trocaria a Hora Absurda e a Chuva Oblíqua de Pessoa pela Poesia Toda de Herberto. E a esta, prefiro as obras completas dos mencionados mais acima.