CECÍLIA MEIRELES, ESSA GRANDE JURISTA
Cheguei, pelo Arrastão, a um interessante bate-boca sobre sexo anal. Num weblog intitulado O Insurgente, a minha querida amiga Patrícia Lança, com a coragem que raramente lhe é reconhecida, coloca o dedo na... ferida ao chamar a nossa atenção para os perigos da sodomia e, sobretudo, para a hipocrisia dos nossos governantes que, armando-se em guardiões (sic) da saúde pública, não «falam absolutamente nada do facto que o jovem homossexual de 20 anos de idade tem só 50 por cento de possibilidades de chegar além dos quarenta anos. Não só por causa da HIV, mas por sujeitar-se a várias outras doenças causadas pelo abuso de um órgão não desenvolvido para uso sexual. Os apologistas da homossexualidade têm o hábito de citar as práticas da Roma, da Grécia e de algumas civilizações orientais. Nós progredimos um pouco desde a antiguidade. Sabemos muito mais sobre o corpo humano. Sabemos muito bem que o sistema digestivo, ingestão e excreção, não deve ser confundido com o sistema generativo». Devo dizer que, tal como à minha querida amiga Patrícia Lança, também a mim enoja a prática da sodomia, não conciliável com pessoas de sensibilidade moral como nós. Mas devo confessar que a primeira vez que me masturbei meti o dedo no cu. Depois cheirei, ficando-me para sempre associado o cheiro do orgasmo ao cheiro do cocó. Hoje em dia, sempre que copulo, uso ambientador Brise. A minha mulher não percebe, até já me perguntou se eu acho que ela cheira mal. Eu respondo-lhe sempre que não, mas confesso-vos que me custa quando ela me agarra pela cabeça, a enfia entre as pernas dela, puxa-me a língua para fora e obriga-me a lamber-lhe o pipi. Sinto-me visceralmente violado no meu asseio moral e físico. Afinal, a língua de um homem não foi feita para lamber pipis. Um homem deve usar a língua para degustar moelas ou, vá lá, para colar selos. Pior que tudo isto foi quando a minha mulher quis praticar o sexo anal. O sexo anal, como já disse, repugna-me. Acho-o nojento. Dá-me vómitos só de pensar na possibilidade de ao meu pénis virem agarrados fios de excremento misturados com sangue. Eu sei o que isso custa, pois sofro de prisão de ventre. Tem dias que quase desmaio de tanta força fazer para pôr cá para fora três berlindes de excremento. Uma vez até parti um maxilar. Como sei o que o meu cu sofre, não quero fazer sofrer o cu da minha mulher. Ensinava o filósofo Kant: a gente não deve querer para os outros o que não quer para a gente. Foi este o argumento que usei para tirar da cabeça da minha mulher aquela ideia do sexo anal. Nem sei como há pessoas que gostam de coisas destas, para não falar de outras, e caem na teia dos chamados prazeres do corpo. Ele há tantos e tão bons prazeres nos lugares da alma. Além de ser nojento, toda a gente sabe que é igualmente muito perigoso, toda a gente sabe que o sexo anal arrasta consigo um manancial de moléstias horríveis. A pior de todas é o relaxamento do esfíncter, tornando a pessoa incontinente no que aos gases diz respeito. É verdade que, como li recentemente numa revista sobre energias alternativas, isso tem o seu lado positivo. Poupa-se muita energia. No Japão inventaram um sistema de conversão dos gases em energia. Os puns, acumulados para dentro de uma saqueta directamente ligada ao cu, são reciclados num pequeno aparelho que os condensa, posteriormente, na forma de pilhas. Também é possível usar essas saquetas como arma de autodefesa, tipo gás mostarda. Dizem que é muito comum entre os homossexuais vítimas de discriminação. Resta-me apenas felicitar a coragem da minha querida amiga Patrícia Lança em trazer para a praça pública, sem quaisquer pruridos morais, o seu bom gosto, sempre tão aliado do bom senso, no que à prática sexual respeita. Se não me levar a mal a brincadeira, até estava capaz de lhe dar uma palmadinha, ou uma trincadinha sem malícia, na nádega. Ou, como dizem nos filmes, no seu big fat ass.
Porque espelhos é o tema da próxima Minguante, pus-me a escutar o que a palavra me diz quando a pronuncio. Reflexo é a sensação mais instantânea que a palavra espelho me provoca, mas, logo a seguir, lembro-me de Narciso. A Narciso associamos a vaidade, o autodeslumbramento, o amor-próprio. Mas também podemos associar a Narciso a ingenuidade de quem, demasiado voltado sobre si próprio, perde o mundo de vista. Os espelhos podem ser o mundo a perder-se de vista. Como em Pieza para espejo I (1969), de Joan Jonas, o espelho prolonga determinada imagem, impedindo-nos o acesso ao que, na realidade, é o prolongamento daquilo que vemos. Não gosto de espelhos por isso mesmo. Os espelhos dão-nos o eco em retorno, são uma espécie de boomerang dos olhos, são uma parede que se intromete entre nós e o mundo. As pessoas não se encontram nos espelhos senão quando se espelham umas nas outras, conquanto este espelhar-me no outro seja a possibilidade de me ver reflectido na alteridade. Por vezes dizemos que gostamos de ler para sentirmos que não estamos sós, ou seja, para nos vermos espelhados, reflectidos, naquilo que lemos. Mas eu não me sinto menos só vendo-me multiplicado no mundo. Antes pelo contrário, sinto-me menos só sabendo que à minha volta existe uma imensidão de coisas e de seres bem diferentes de mim mesmo. O que nos torna a vida menos solitária não é o deserto nem o isolamento que os processos de identificação política, social, estética, cultural, religiosa, propiciam e promovem. É antes a adversidade do diferente, a multiculturalidade, o facto de haver quem pense de modo diferente de nós. Os espelhos como que ameaçam esta perspectiva mais ampla do mundo, do mesmo modo que serviram para ludibriar povos indígenas dando-lhes do mundo uma imagem que ainda não tinham, ou seja, a sua própria imagem. Vermo-nos constantemente a nós próprios pode cegar-nos dos outros, pretendermo-nos nos outros pode cegar-nos de nós próprios. Curioso como os temas se ligam quando não há espelhos a impedirem essa ligação. Por que é que toda a gente anda tão contente consigo (mas não com os outros)? «É que não existe um canalha que, procurando um pouco, não encontre canalhas piores do que ele, neste ou naquele sentido, e que, por isso, não arranje motivo de se orgulhar e de estar contente consigo próprio.» (Sonata de Kreutzer, Lev Tolstói) A não ser que passe a vida deslumbrado sobre si próprio, vendo-se ao espelho, penteando as suas mágoas, frustrações, rancores e ressentimentos, catando no couro os piolhos da inveja. Por isso mesmo, quando me acusam de ecumenismo, eu sorrio e penso: olha outro que só tem espelhos em casa. Por isso faço minhas, mais uma vez, as palavras de Giulio Carlo Argan: «a arte não é o reflexo ou a transposição em imagem de uma cultura superior e diversamente complexa, ou dos seus valores intelectuais ou morais, mas o processo mediante o qual se elabora uma cultura à parte, cujo fundamento é a percepção, cujos instrumentos são as técnicas, cuja função consiste substancialmente em saldar a experiência que tem do mundo com um fazer que visa mudar-lhes os vários aspectos, recriá-lo». Portanto, recriá-lo ou, diria eu, acrescentá-lo. A ilusão que o espelho nos fornece de um determinado espaço é do mesmo tipo da ilusão alimentada pelos ideais absolutos, pelo fundamentalismo das crenças, pelo que esta ilusão nos dá do mundo uma perspectiva única que está longe de ser a única perspectiva do mundo. Ideal seria que, como os vampiros, soubéssemos dos espelhos por neles nunca nos vermos reflectidos. Antes ausentes.





Porque o espectáculo que está montado parece já não poder vir a ser pior – onde tudo é espectáculo já nada é espectáculo -, sonha-se com um retorno aos tempos em que o espectáculo ainda emergia. Porque o que se tem hoje não é senão o que noutros tempos se desejou, uma anarquia imposta pela ditadura subjectiva do gosto. E essa anarquia só não se reflecte na esfera política na medida em que a esfera política ainda logra revestir-se de um discurso que ludibria o por demais evidente aos olhos de quem pretenda olhar para lá do seu umbigo: reinam os mais fortes, os mais fracos que se sujeitem. «A moeda é a obra de arte transformada em números», escrevia Asger Jorn em 1960. Tinha e tem toda a razão, conquanto a obra de arte seja também hoje em dia um número transformado em moeda. Sobre o porquê disso ser assim, o melhor é perguntarem aos críticos que sumiram.
Ainda a ler a Nada, de uma entrevista a Roy Ascott:
Via Desmancha-Prazeres: