São 8.45m da manhã, chego a horas como gosto quando marcam algum trabalho pago comigo. Digo pago comigo e até parece mentira, mas não é, uma amiga telefonou-me para eu dar respiração e voz a uma personagem num filme de animação; trata-se de um filme de autor (não posso dizer o nome, ainda não estreou), ao telefone ela contou-me que animou a personagem, mas não a criou, deu-lhe gestos a pensar nos meus, interpretou-a assim e por isso só eu poderei ser o seu som; a personagem é uma mulher obesa, neurótica, está sozinha a deambular na casa, fuma cigarros, tenta telefonar para um gajo, mas ele desliga-lhe o telefone na cara; o gajo também é obeso e tem um cão obeso, coisa politicamente correcta na realidade. Bom, aquilo é ficção, a personagem zanga-se com o telefone, toma comprimidos e atira-se pela janela, enquanto o gajo assiste a todo o drama num café em frente. Eu já fui obesa, mas não me mandei de nenhuma janela, nem me enfrasquei em comprimidos, mas isso de deambular pela casa sozinha sei bem o que é e desligarem-me o telefona na cara de propósito também. Já são 9.20m, é estranho, a minha amiga não é de atrasos, vou ter de lhe telefonar; afinal confundi tudo, foi marcado às 9.45m, percebi mal por causa da febre. Hoje acordei melhor, mas gripe de Verão vai e vem, com a febre sonhei com uma exposição de escultura num jardim, onde participava com uma intervenção num tanque enorme cheio de água, colocava no meio dele um gradeamento em ferro trabalhado com formas diversas que se seguravam num tecto peculiar, uma espécie de telheiro do tanque onde tinha colocado cadeiras de cinema enfileiradas e outras suspensas em estruturas semelhantes ao gradeamento. Aponto esta imagem estranha no meu bloco quando aparece a minha amiga e o realizador acelerado; ela apresenta-mo outra vez, ele diz que se lembra perfeitamente de mim há mais de um ano e que até a voz está diferente; e tem razão, respiro de outro modo, são menos 40kg, mas enquanto estava a gravar, lembrei-me do que já fui, lembrei-me bem do cansaço em me mover, o que é desistir de me vestir, ouvi o eco da minha antiga respiração na casa desarrumada da personagem; começamos a gravar timidamente, primeiro apenas a respiração que se tornava a pouco e pouco mais intensa, só os cigarros a acalmavam, depois foi surgindo um crescendo com a presença rítmica da respiração, criando uma espécie de texto que se sente e não se consegue ler. A voz só surgiu na parte da raiva com o telefone, não digo absolutamente nada em todo o filme, faço sim uns harmónicos com enormes ressonâncias de peito, é tudo voz interior. O realizador acelerado exclamou: boa, é a voz da gaja? É claro que estava nos meus graves de peito, lá por ter menos mamas não deixei de saber quanto pesam aquelas mamas; sei também que ter mamas é ser confundida com a Santa Casa da Misericórdia, é grave e dói, mas eu não sou aquela gorda que termina a mandar-se pela janela fora e à qual o gajo assiste ao desfecho com prazer sádico no café, como se estivesse a assistir a um programa na TV. Existem muitos humanos por aí que sofrem da doença da morte, já ouviram falar nisso? Apercebi-me da doença quando li os “Textos secretos” da Marguerite Duras, foi há vinte anos, na altura cruzei-me com um gajo que sofria desse mal, a indiferença, ele pegou-me aquilo durante algum tempo, mas depois ofereci-lhe o livro no seu aniversário, mostrei-lhe a minha consciência; eu sei o que és e sobrevivi porque escrevo, esse é o meu antídoto contra a doença da morte, tenho alguma coisa dentro deste cérebro e não apenas massa cinzenta, foi assim que arrumei a casa, que ela entrou em obras e o meu corpo também, agora só falta o jardim. Eu nunca me enfrasquei em comprimidos, nem parti telefones, já me tentaram matar de várias formas, mas levanto-me, tomo banho, visto-me de forma elegante, crio impacto em quem me cruzo, provoco emoções e também as tenho, pinto, faço escultura, canto e estou muito viva. Esse gajo, a última vez que o encontrei na rua, tinha barriga e um ar acabado, perguntou-me o que fazia, respondi-lhe escultura nas Belas e ele a olhar o chão, queixou-se que tinha um trabalho monótono, trabalhava num jornal e não tive pena nenhuma dele, tenho mamas, mas não sou estúpida. Voltando ao realizador acelerado, ele brincou comigo, dizia que a gaja podia ser eu, disse-lhe que não, sofro de vertigens por isso nunca poderei mandar-me de uma janela; ele pergunta-me o que faço, respondo que sou artista e vou vivendo de biscates como este, já vamos na direcção do Multibanco para me pagar, boa, é uma pessoa séria que paga a horas, coisa rara e merece respeito. Ele pergunta-me há quantos anos estou assim, respondo quatro ou cinco. Falo-lhe da minha exposição de escultura na Eterno Retorno, ele comenta que é fora de mão e ninguém lá deve ir ver; o técnico de som diz que ouviu falar no espaço por causa dos concertos e que é capaz de passar por lá, ele é músico, parece autista, mas suponho que sabe ouvir. Despeço-me com vontade de rir, nem lhes contei que as esculturas estão na parede junto ao palco dos concertos na livraria. As minhas esculturas não são para ver, são para ouvir, por isso não vai mesmo ninguém vê-las, mas acredito que alguns vão gostar de as ouvir. Quanto ao filme, quando estrear aviso, é a minha melhor escultura sonora até ao momento, mesmo que não seja possível colocarem o meu nome no genérico.
Maria João