No espaço de uma semana, entraram dois pássaros diferentes no meu atelier; lembrei-me de compartilhar isto convosco, porque o Henrique iniciou aqui a nova série dedicada a coisas positivas; acho que os pássaros que me visitaram trouxeram qualquer coisa boa que não sei bem o que é. O primeiro nem dei por ele entrar, estava calor e abri as janelas do atelier, porque lá o sol é muito forte ao fim da tarde e até liguei a ventoinha que está no tecto para refrescar esta parte da casa, faço sempre isso para o ar circular. O sacana do gato Plácido tinha aparecido também lá fora nas escadas, com os seus miados, vinha com o focinho todo sujo, com resto de uma teia de aranha, pensei logo que tinha colocado o nariz onde não era chamado e dei-lhe biscoitos. O Plácido tem andado com bom aspecto, soube depois que o vizinho do prédio ao lado lhe dá abrigo – é um vizinho peculiar, que anda a fazer um estudo para adaptar plantas tropicais ao clima português e plantou duas árvores à porta do prédio, na calçada mesmo e que agora fazem uma espécie de arco natural na entrada do edifício; ele plantou um jardim meio selvatico-tropical nos quintais do prédio ao lado, e é óptimo olhar para lá quando estou a trabalhar no atelier. O meu atelier é um privilégio sossegado para quem vive mesmo no centro de Lisboa, porque me dá a calma e o sossego de quem está no campo dentro da cidade, uma espécie de mundo à parte onde posso estar concentrada a pintar e a escrever. Lisboa tem destas coisas, é uma cidade cheia de hortas, meio saloia no seu interior, gosto muito deste lado de campo dentro da cidade; o meu quintal precisa de ser arranjado, estive com diversas obras na casa e em mim própria nos últimos tempos por isso ainda não foi possível, mas depois da visita dos pássaros acho que me vou dedicar a construir um pequeno jardim, já está na altura de cuidar daquele espaço abandonado; recentemente, limpei-o e foram remendadas as escadas de metal de acesso aos quintais, que estavam partidas e como vivo no primeiro andar, nem podia ir lá abaixo, só pedindo à minha vizinha do rés-do-chão que entretanto morreu (como dizia o Luíz Pacheco, antes ela do que eu); o quintal actualmente tem os muros derrubados devido à queda de uma ramada de um pinheiro na vizinhança e o resto de uma nespereira que está carregada de fruta – digo o resto porque a vizinha que já morreu um dia resolveu mandar cortar metade da árvore sem me pedir autorização porque lhe fazia sombra às suas flores, que coisa ruim fazer mal a uma árvore, eu ainda lhe disse que ela tinha era uma enorme sombra dentro da cabeça, mas não serviu de nada perante os factos. Bem, já estou para aqui a distrair-me com assuntos pouco positivos, vamos aos pássaros e aos seus voos. Como já referi, o primeiro nem dei por ele me entrar dentro de casa, fechei as janelas ao fim do dia, a única coisa estranha que reparei foi que a gata Lua não dormiu aos meus pés, mas isso acontece quando chega o calor, ela vai para outros cantos da casa. De manhã quando fui ao atelier, vejo um pássaro meio desorientado a voar e a pousar entre a ventoinha do tecto e uma porta do armário aberta no lado contrário; a Lua estava totalmente louca com aquele ser voador, subia para a mesa, tentava trepar as paredes para lá chegar; o pássaro, apesar de tudo cantava de um lado ao outro; perante este espectáculo, abri as janelas para o pássaro poder ir à sua vida e ele lá se libertou; durante a tarde, enquanto ouvia os pássaros a cantar lá fora, ainda pensei que algum seria aquele que por aqui pernoitou. Quanto ao segundo pássaro, ele visitou-me na quinta-feira passada, o outro tinha ficado por aqui na quinta-feira anterior. Estava de volta de um trabalho difícil, a ilustração de um poema de um amigo meu, não vos posso dizer o conteúdo do poema, nem de quem é, têm de comprar o próximo número da revista Big Ode para saberem esta parte da estória. A única coisa que vos digo para criar suspense é que a revista vai ter um suporte pouco convencional, com originais assinados e que por isso estou de castigo a escrever à mão cem vezes aquele poema com a minha ilustração. Estava a ouvir o concerto para flauta nº 1 de Mozart com um sol radioso, e pelas janelas abertas entrou um pardal, talvez atraído pela música, Mozart é mágico. A lua não estava comigo, devia estar a dormir a sesta na outra ponta da casa, ainda bem se não assustava-o, ele entrou e foi directo para a ventoinha, depois pousou na mesa, depois no chão, foi cantando e voando por cá até sair. Foi um momento tão inexplicável que fui a correr telefonar ao meu amigo que escreveu o poema, dar-lhe a boa nova e disse-lhe que se calhar o pássaro andava por aqui por causa da fruta da nespereira do quintal. Ele respondeu-me que eu tinha era muita sorte, porque ele também tem uma nespereira e os pássaros só iam lá para comer-lhe a fruta e nunca lhe entraram em casa, só teve visitas de morcegos. Fiquei triste com a resposta, mas depois pensei que deveria continuar a tarefa de copiar o poema, porque a visita do pássaro talvez estivesse relacionada com o que estava a fazer, e que seriam boas novas para ele também. Agora guardo na memória a presença das visitas destes pássaros, são momentos inefáveis, como a música de Mozart que estava a ouvir, são um voo de passagem que nos limpa a alma, nos liberta, momentos que se vivem apenas como um todo na memória. Sinto saudades do canto e voo destes pássaros e gostava muito que me visitassem outra vez – mas estas coisas só o destino é que sabe delas, nem tudo está nas minhas mãos. O máximo que poderei fazer é continuar a ouvir Mozart enquanto trabalho no atelier, e deixar as janelas abertas para entrar o ar do campo na cidade; quero mesmo arranjar aquele quintal abandonado e criar ali um jardim, para os pássaros me poderem visitar à vontade.
Maria João