31.5.07

PARA A MARIA JOÃO (que teve um dia mau)


Fragmento #53 – Janela fechada

Olho pela minha janela e vejo a mãe do meu vizinho na sombra, está de óculos escuros, sempre de negro, mas com um casaco bege aos ombros, ela fecha-a quando se sente observada por mim, viu-me a escrever no computador. Desta vez não tive medo da assombração, talvez porque as almas do outro mundo hoje não me estão a assustar; e aquela mulher nunca sai de casa, só a vejo de vez em quando a espreitar à janela; hoje sinto que são os meus pés que me estão a matar, estou de rastos, andei quilómetros por aí, estou assustada com os vivos que circulam fora de casa, fico cansada só de pensar que ainda tenho que ir à rua; fui ao ginásio logo de manhã rescindir o meu contrato, era importante para as obras pós-drásticas no corpo continuar lá, a rapariga do atendimento perguntou-me porque desistia com um sorrisinho artificial, com aquele ar de venda do costume, respondi que estou desempregada por isso não posso continuar com a despesa e que não tenho nenhuma obrigação de dizer porquê. A menina mudou de expressão já com um papel na mão, perguntou-me se colocava a cruz nas dificuldades financeiras, disse-lhe que seria o mais acertado. Fico a saber que ainda tenho direito a um mês e que tenho de o pagar, só se pode terminar as coisas com 30 dias de antecedência, o pedido já foi feito ao banco, digo-lhe que não fui avisada que era assim e pergunto o que é que acontece se não houver dinheiro no banco. A rapariga do atendimento já perdeu o sorriso há muito tempo e delicadamente informa-me que poderei lá ir pagar pessoalmente; saio daquele sítio com uma sensação de atrofiamento e começo a andar a pé pelas ruas da cidade, olho com receio os transeuntes, os carros a apitarem, anda tudo num estado selvático e aqui a borderline continua em contemplação, vou vendo a psicose à solta nas ruas da cidade de Lisboa. O tempo está instável, ontem tive um bom dia e hoje circulo a pé sem parar nas ruas, onde cada vez existe mais lojas de chineses. Chego a casa e deparo-me com uma bruxa de perna partida; o meu último biscate foi este, construir bruxas encomendadas para uns mecenas pouco florentinos. Nem fui eu que as inventei, aquilo começou a intervir demasiado no meu espaço, rendeu pouco e só queriam abusar, agora vou pegar no assunto quando me apetecer, porque do meu tempo e espaço sei eu, conheço bem o gosto doce e amargo da liberdade. Foi uma criança que partiu o raio da bruxa (porque será?), trouxeram-na para aqui, querem que faça também correcções, como se tivesse obrigação de fazer alguma coisa e nem falaram em dinheiro, afinal sou murcona e artista, um cocktail molotov. Bom, expliquei-lhes que era necessário material para remendar e corrigir, isso significa também horas de trabalho, a resposta foi que apenas lhes interessa colocar a dita na loja, mas que davam dinheiro para isso ser possível, deve ser um pequeno favor que me estão a prestar. Outro dia foi lindo, a mecenas pouco florentina telefonou porque necessitava que eu fosse com urgência colar outra perna a uma bruxa (que nem fui eu que a fiz), extraordinário, respondi que tinha coisas marcadas e muito importantes, como sou uma alma caridosa dei-lhes instruções sobre como se usa cola de contacto – isto tudo via telefone. Cada vez estou mais convencida de que ter dons divinos para a criação é sina de franciscana, fico em paz rodeada de plantas, pássaros e gatos, mas quanto aos bichos humanos tenho pouca apetência para eles. Resta-me andar a pé, por enquanto com sapatos, mas com o andar da coisa qualquer dia já não os tenho. Mesmo assim, vou recebendo propostas interessantes no meio disto tudo – outro dia até fui convidada para lanchar num hotel, perguntei porquê, respondeu-me que era para ver uma bela vista da cidade de Lisboa, deu-me imensa vontade de rir, quem fez a proposta devia achar que eu sou um belo lanchinho artístico. Não tenho paciência nenhuma, nunca tive e prefiro andar a pé.

Maria João

VIAGEM IMAGINÁRIA

A Daniela quer ir a África para conhecer Macau. Eu quero ir com ela.

INSÔNIA

Coalham, quando imersas
no breu pulsante, estrelas;
dissolve-se, durante
seu voo noturno, um denso

cardume de morcegos;
convivem quase idênticos
negrumes (água negra
com negro óleo – imiscíveis),

de modo que inexiste,
nas trevas movediças,
mais noite que a dos olhos
nem há zero absoluto

ou absoluto sono
enquanto o olhar acuse
nuances no discreto
fulgor da neomênia.

NelsonAscher

Nelson Ascher nasceu em São Paulo no ano de 1958. Poeta, tradutor e jornalista, cursou medicina, administração e semiótica. Começou a colaborar na imprensa na década de 1980, escrevendo sobre literatura, cinema e política. Em 1988/89 criou a Revista USP, tornando-se seu editor até 1994. Estreou-se na poesia, em 1983, com Ponta da Língua.

30.5.07

NA PRIMAVERA


As primeiras chuvas fustigam a cidade,
E há um som mole nos tubos de algeroz.
‘Ah, no mundo ninguém me ama,’ –
A si própria a rapariga mente.

Nuvens molhadas pairam sobre as ruas,
E a rapariga está sozinha em casa –
Mente de alegria e entusiasmo
Em frente da janela escancarada.

A chuva bate com força na rua
E fustiga os autocarros.
‘Ah, na vida ninguém me ama!’ –
Soa da rapariga a voz clara e feliz…

Tradução de Manuel de Seabra.

Konstantin Vanshenkin
Konstantin Vanshenkin nasceu no dia 17 de Dezembro de 1925. Filho de um engenheiro, estudou Geologia em Moscovo e, posteriormente, no Instituto Gorki de Literatura. Começou a escrever poesia em 1946, depois de ter servido como pára-quedista durante a guerra. Um dos seus principais livros foi Canção sobre as sentinelas, publicado em 1951.

29.5.07

SEM TÍTULO

Joaquim Rocha

EM DIAS DE EXTINÇÃO



Fico a saber, através do dias felizes, que a livraria Pulga, sita no Porto, tem o fim anunciado. Projecto de A. Dasilva O., autor iconoclasta responsável pelas Edições Mortas (ver post de 26.2.06), a Pulga era uma livraria singular, sem qualquer paralelo no cada vez mais triste panorama livreiro nacional. Vou aqui contar uma pequena história que apenas contei a alguns amigos. Era eu um jovem provinciano (agora sou apenas um provinciano mais crescido), quando me cruzei com as palavras de A. Dasilva O. pela primeira vez. Ocorreu o encontro, se bem me recordo, nas páginas do saudoso semanário Sete. À época, já nutria admiração por alguns poetas mais heterodoxos e refractários - sobretudo franceses e americanos -, mas desconhecia na língua portuguesa possibilidades que alguns livros deste autor vieram tornar acessíveis. Os títulos não enganam: O Último Desejo de um Serial Killer, Excrementos, Peidinhos, Punhetas de Wagner, só para mencionar alguns mais recentes. Anos antes, mais precisamente em 1994, citei-o no primeiro texto que alguma vez publiquei. Foi numa croniqueta, intitulada Histórias de um Futuro Presente, publicada numa revista afecta a uma associação cultural juvenil da qual fiz parte. A citação, tenho-a aqui diante de mim e passo a reproduzi-la: «a política é cada vez mais um bordel onde a teoria geral do estado é estéril». Da autoria de Hernâni Pereira, a fotografia no topo do post saiu no passado dia 9 de Março no também já extinto suplemento 6.ª, do Diário de Notícias. Coincidências.

28.5.07

CHÁVEZ

Ao contrário de alguns camaradas, eu nunca me entusiasmei com porcos. Nunca lhes achei a mínima graça. Principalmente dos que discursam.

É NOSSA!


26.5.07

Boas novas #1– Pássaros

No espaço de uma semana, entraram dois pássaros diferentes no meu atelier; lembrei-me de compartilhar isto convosco, porque o Henrique iniciou aqui a nova série dedicada a coisas positivas; acho que os pássaros que me visitaram trouxeram qualquer coisa boa que não sei bem o que é. O primeiro nem dei por ele entrar, estava calor e abri as janelas do atelier, porque lá o sol é muito forte ao fim da tarde e até liguei a ventoinha que está no tecto para refrescar esta parte da casa, faço sempre isso para o ar circular. O sacana do gato Plácido tinha aparecido também lá fora nas escadas, com os seus miados, vinha com o focinho todo sujo, com resto de uma teia de aranha, pensei logo que tinha colocado o nariz onde não era chamado e dei-lhe biscoitos. O Plácido tem andado com bom aspecto, soube depois que o vizinho do prédio ao lado lhe dá abrigo – é um vizinho peculiar, que anda a fazer um estudo para adaptar plantas tropicais ao clima português e plantou duas árvores à porta do prédio, na calçada mesmo e que agora fazem uma espécie de arco natural na entrada do edifício; ele plantou um jardim meio selvatico-tropical nos quintais do prédio ao lado, e é óptimo olhar para lá quando estou a trabalhar no atelier. O meu atelier é um privilégio sossegado para quem vive mesmo no centro de Lisboa, porque me dá a calma e o sossego de quem está no campo dentro da cidade, uma espécie de mundo à parte onde posso estar concentrada a pintar e a escrever. Lisboa tem destas coisas, é uma cidade cheia de hortas, meio saloia no seu interior, gosto muito deste lado de campo dentro da cidade; o meu quintal precisa de ser arranjado, estive com diversas obras na casa e em mim própria nos últimos tempos por isso ainda não foi possível, mas depois da visita dos pássaros acho que me vou dedicar a construir um pequeno jardim, já está na altura de cuidar daquele espaço abandonado; recentemente, limpei-o e foram remendadas as escadas de metal de acesso aos quintais, que estavam partidas e como vivo no primeiro andar, nem podia ir lá abaixo, só pedindo à minha vizinha do rés-do-chão que entretanto morreu (como dizia o Luíz Pacheco, antes ela do que eu); o quintal actualmente tem os muros derrubados devido à queda de uma ramada de um pinheiro na vizinhança e o resto de uma nespereira que está carregada de fruta – digo o resto porque a vizinha que já morreu um dia resolveu mandar cortar metade da árvore sem me pedir autorização porque lhe fazia sombra às suas flores, que coisa ruim fazer mal a uma árvore, eu ainda lhe disse que ela tinha era uma enorme sombra dentro da cabeça, mas não serviu de nada perante os factos. Bem, já estou para aqui a distrair-me com assuntos pouco positivos, vamos aos pássaros e aos seus voos. Como já referi, o primeiro nem dei por ele me entrar dentro de casa, fechei as janelas ao fim do dia, a única coisa estranha que reparei foi que a gata Lua não dormiu aos meus pés, mas isso acontece quando chega o calor, ela vai para outros cantos da casa. De manhã quando fui ao atelier, vejo um pássaro meio desorientado a voar e a pousar entre a ventoinha do tecto e uma porta do armário aberta no lado contrário; a Lua estava totalmente louca com aquele ser voador, subia para a mesa, tentava trepar as paredes para lá chegar; o pássaro, apesar de tudo cantava de um lado ao outro; perante este espectáculo, abri as janelas para o pássaro poder ir à sua vida e ele lá se libertou; durante a tarde, enquanto ouvia os pássaros a cantar lá fora, ainda pensei que algum seria aquele que por aqui pernoitou. Quanto ao segundo pássaro, ele visitou-me na quinta-feira passada, o outro tinha ficado por aqui na quinta-feira anterior. Estava de volta de um trabalho difícil, a ilustração de um poema de um amigo meu, não vos posso dizer o conteúdo do poema, nem de quem é, têm de comprar o próximo número da revista Big Ode para saberem esta parte da estória. A única coisa que vos digo para criar suspense é que a revista vai ter um suporte pouco convencional, com originais assinados e que por isso estou de castigo a escrever à mão cem vezes aquele poema com a minha ilustração. Estava a ouvir o concerto para flauta nº 1 de Mozart com um sol radioso, e pelas janelas abertas entrou um pardal, talvez atraído pela música, Mozart é mágico. A lua não estava comigo, devia estar a dormir a sesta na outra ponta da casa, ainda bem se não assustava-o, ele entrou e foi directo para a ventoinha, depois pousou na mesa, depois no chão, foi cantando e voando por cá até sair. Foi um momento tão inexplicável que fui a correr telefonar ao meu amigo que escreveu o poema, dar-lhe a boa nova e disse-lhe que se calhar o pássaro andava por aqui por causa da fruta da nespereira do quintal. Ele respondeu-me que eu tinha era muita sorte, porque ele também tem uma nespereira e os pássaros só iam lá para comer-lhe a fruta e nunca lhe entraram em casa, só teve visitas de morcegos. Fiquei triste com a resposta, mas depois pensei que deveria continuar a tarefa de copiar o poema, porque a visita do pássaro talvez estivesse relacionada com o que estava a fazer, e que seriam boas novas para ele também. Agora guardo na memória a presença das visitas destes pássaros, são momentos inefáveis, como a música de Mozart que estava a ouvir, são um voo de passagem que nos limpa a alma, nos liberta, momentos que se vivem apenas como um todo na memória. Sinto saudades do canto e voo destes pássaros e gostava muito que me visitassem outra vez – mas estas coisas só o destino é que sabe delas, nem tudo está nas minhas mãos. O máximo que poderei fazer é continuar a ouvir Mozart enquanto trabalho no atelier, e deixar as janelas abertas para entrar o ar do campo na cidade; quero mesmo arranjar aquele quintal abandonado e criar ali um jardim, para os pássaros me poderem visitar à vontade.

Maria João

25.5.07

MACACADA


O Macaco foi preso e a SIC fez disso assunto, com direito a directo e tudo. A SIC gosta de dar voz a macacos. Mas não é disso que quero falar. Venho aqui para, por antecipação, manifestar um sentimento que muitos, talvez por medo ou vergonha, teimam dissimular. O que quero dizer é que se o Sporting vier a perder, no próximo Domingo, a Taça de Portugal, a culpa deverá ser imputada ao árbitro João Ferreira. Isso mesmo. Depois de ter impedido o Sporting de ser campeão nacional, ao validar um golo obtido ilegalmente, este senhor contribuiu, ao mesmo tempo, para a instabilidade de uma equipa jovem que, entre a depressão e a pressão, vê agora na Taça de Portugal o sonho de uma vida. Caso o campeonato tivesse sido nosso, como deveria ter acontecido, o jogo da Taça seria favinhas contadas, os jovens leões entrariam em campo descontraídos, como quem entra em tasca para penalty e tremoços. Assim sendo, temo que no próximo Domingo venhamos a ter pernas em tremedeira, suores frios e palpitações. Tudo por culpa do senhor João Ferreira, que devia estar neste momento a fazer companhia ao Macaco.

À PORTUGUESA



No passado dia 29 de Janeiro do ano corrente, recebi, de João Artur Pinto, um convite para participar numa antologia dedicada a Fiama Hasse Pais Brandão. O volume, com o título Um Poema Para Fiama, publicado pela Editora Labirinto, era suposto ter saído, segundo percebi, no passado dia 21 de Março, Dia Mundial da Poesia. Acedi prontamente ao convite, sem qualquer tipo de reclamação, enviando um poema. Desde então, nunca mais soube de nada. Até hoje, por intermédio de um amigo, que me informou ser logo à tarde, pelas 18:30, na Casa Fernando Pessoa, o lançamento da dita obra. Não é pela apresentação, na qual não poderia estar presente, dado inaugurar hoje as Tasquinhas do Landal, onde irei servir berbigão, minis e moelas, mas estranho não ter sido informado sobre absolutamente nada relativamente a este «gesto sincero de homenagem à Obra Poética de Fiama Hasse Pais Brandão». Como não possuo exemplar do volume, a imagem reproduzida foi respigada no sítio da Editora Labirinto.

O livro reúne ao longo das suas oitenta páginas, cinquenta e três inéditos dos seguintes autores: Alexandre Vargas, Anna Hatherly, Ana Marques Gastão, Angelina Costa Lima, António Graça Abreu, António José Queirós, António Salvado, Artur Coimbra, Carlos Vaz, Casimiro de Brito, Cláudia Storz, Daniel Gonçalves, Ernesto Rodrigues, Eva Christina Zeller, Fernando Guimarães, Fernando J. B. Martinho, Gisela Ramos Rosa, Gonçalo Salvado, Helena Carvalho Buesco, Henrique Manuel Bento Fialho, Inês Lourenço, Isaac Pereira, Isabel Cristina Pires, Jaime Rocha, Joana Ruas, João Ricardo Lopes, João Rui de Sousa, Joaquim Cardoso Dias, Jorge Listopad, Jorge Reis Sá, José Agostinho Baptista, José Félix Duque, José Manuel de Vasconcelos, José Tolentino Mendonça, Josiane Alfonsi, Luís Quintais, Maria Andresen, Maria do Sameiro Barroso, Maria João Fernandes , Maria João Reynaud , Maria Teresa Dias Furtado, Maria Teresa Horta, Paulinho Assunção, Pedro Eiras, Pompeu Miguel Martins, Regina Gouveia, Rita Taborda Duarte, Rui Costa, Ruy Ventura, Urbano Tavares Rodrigues, Valter Hugo Mãe, Victor Oliveira Mateus, Victor Oliveira Jorge e Maria Figueira da Silva, artista plástica, autora da pintura da capa.

INFECÇÃO URINÁRIA

Confesso que começava a ficar um pouco incomodado com o estado actual da discussão blogosférica. Como não percebo nada de aeroportos, pouco entendo de piadas de ministros, sou um zero à esquerda (à direita e ao centro também) em assuntos de criminologia, nada sei acerca de insultos ou piadas, pouco me interessam licenciaturas de Primeiros, começava a sentir-me algo isolado. Mas eis senão quando vem à baila polémica na qual me julgo exaustivamente entendido: o plágio. Relativamente aos Gato Fedorento, esclareço que após minuciosa perscrutação dos sketches deste grupo humorísitco, eu, Henrique Manuel Bento Fialho, bilhete de identidade n.º 9541104, residente em Caldas da Rainha, estou em perfeitas condições de aqui denunciar publicamente que os supracitados são culpados de plágio descarado do Professor Marcelo Rebelo de Sousa, do Jornalista Paulo Portas, do Major Valentim Loureiro, do Engenheiro José Sócrates, do Mister Paulo Bento, entre outros. Mas esta pouca-vergonha, meus caros, não é nada ao pé da forma impudente com que a oposição tem plagiado a pobreza do actual Governo. Uma oposição que nada mais tem do que agarrar-se a minudências é, sem dúvida, um decalque paupérrimo de um Governo que nada mais sabe do que reformar às pinguinhas.

24.5.07

THE DOORS: UM PROGRAMA EPISTEMOLÓGICO

Lourenço Bray não desiste a favor dos The Beatles, desta feita desferindo rude golpe com um tema que é só um dos meus preferidos da banda de Liverpool: Helter Skelter. Curiosamente, esse tema, que o meu caro amigo Fernando Gomes dos Santos diz ter sido o primeiro tema de heavy metal alguma vez gravado, é posterior a muitos outros tão ou mais fantásticos em termos de pujança lírica. Centrar-me-ei, no encalço da objectividade científica que a questão agora pede, nos The Doors. Só nos dois álbuns de 1967, The Doors e Strange Days, encontramos: Break On Through e Back Door Man, Love Me Two Times e My Eyes Have Seen You. Qualquer um destes temas antecipou todo um programa epistemológico que viria a consubstanciar-se num rock agressivo de contornos, ora estruturalistas, ora pós-modernos, condimentados, aqui e acolá, com uma eroticidade que por vezes se confundiu com décadence. Passe a ironia, o que importa salientar nesta questão é que, como diria esse grande poeta-filósofo de seu nome Frederico Nietzsche, «a música é uma linguagem no mais alto grau universal». Cito de memória, não me vá a leitura falhar.

Volto senhor funcionário
a jerusalém agora
pergunto ao senhor
que forças me deu exactas
para assim voltar
lá me esperam o profeta
a família uma cidade cara
o verde áspero dos montes
levo alguns amigos
um pouco do mundo inteiro
bebidas fortes da península
ervas algumas raras de África
mel branco do sul
estas folhas escritas
são poemas de gente vigorosa
que mora um pouco
por toda a parte
e tão bem conhece o senhor
Levo mais nada
simples alto funcionário
e um outro gesto
para destruir babel
Ouço rir a minha amada

Manuel Fernando Gonçalves


Manuel Fernando Gonçalves nasceu no Meixedo, a 24 de Novembro de 1951. Em 1985 publicou Isaac, livro com o qual se estreou e ao qual se seguiu, ainda no mesmo ano, Outra Geografia. Já este ano publicou, na &etc, Fechamos a Alma, ao Fim da Tarde, com Estrondo e Animação.

23.5.07

A INVEJA

A inveja é um assunto que me interessa. Por isso, li com agrado este post de Carla Hilário de Almeida Quevedo. Cito: «O invejoso sofre constantemente; sofre por tudo e por nada; sofre sempre que alguém (seja quem for) faz aquilo que reclama ser um qualquer estranho direito seu. Mas nesse momento é punido: o seu maior sofrimento é em si mesmo a sua maior punição. Quando o invejoso é obsessivo, a punição é tremenda: o tempo passa e o invejoso passa a ter um lugar cativo como eterno espectador da vida alheia. Todos os dias, o invejoso é forçado a lembrar-se da sua própria mediocridade. Na sua comparação diária é inevitavelmente confrontado com o seu medíocre fracasso: aquele que não implica sequer uma tentativa». Pena a forma como termina, remetendo desnecessariamente o tema da inveja para uma das esferas onde ela se torna mais evidente, talvez por se tratar de uma esfera onde, sob a protecção do anonimato, ninguém precisa de a disfarçar. Eu diria mesmo que, dadas as circunstâncias, a inveja na blogosfera até tem um lado saudável que fora dela se torna perigosamente ameaçador. O texto da Carla foi publicado na Atlântico. Sobre o mesmo assunto, ou algo parecido, publiquei eu este texto numa outra revista, já extinta, aqui do burgo. Chamo a vossa atenção para o comentário de Vida Involuntária (Inês Lourenço) deixado no referido texto. Diz assim: «Os invejosos têm-se, a si próprios, em alto conceito e só querem palco, que os achem fantásticos, que os idolatrem, SÓ A ELES; tentam, assim, anular a existência dos outros. Os que estão nas instituições, mercê de cunhas políticas e familiares, são os mais destrutivos, pois frequentemente comprometem a dignidade e o "au-delá" de grandes projectos em favor de mesquinhos compadrios e põem em acção a velha máxima portuga:"nem fode nem sai de cima". Mas, pasme-se, há invejosos cheios de Prémios, edições e ensaios sobre a sua obra, que não podem ver um pobre com uma camisa lavada. Apressam-se a "fazer a folha", troçando alarvemente, com A ou B "influente", ou "opinion-maker", daqueles pouco ecuménicos, para que o atrevido/a desapareça, enquanto presença autoral». Eu diria que entre a inveja dos que estão por baixo e a dos que estão por cima, venha o Diabo e escolha. Mais sobre a inveja, em contornos diversos, aqui e aqui. Vai um banhinho com sal?

DOIS ANOS

Leitores mais atentos, nomeadamente o André, o Manuel e o Fernando, fizeram questão de nos lembrar que estamos mais velhos. Reconhecido pelo gesto, retribuo agradecendo a todos os que nos visitam, comentam, criticam, aplaudem, amam e odeiam. 950 visitas por dia é uma média que não envergonha ninguém, mesmo partindo do princípio que 900 dessas visitas vêm aqui à procura do que não temos: flores. As motivações para por cá andar, passados quase quatro anos, dois de insónias, são as mesmas de sempre. Não posso, no entanto, deixar escapar a oportunidade para lembrar os mais esquecidos de que isto continua a ser somente um weblog. Nada mais que um weblog.

Henrique Manuel Bento Fialho, de braço dado com os colaboradores de agora e de outrora.


Agradecemos a simpatia de: Alice M. de Campos, amok_she, Ana, Ana Cláudia Vicente, Ana Isabel, André Moura e Cunha, Anónimo ('Chapéu de três bicos' ), Aurora Silva, Eduardo Barrento, Fernando M. Dinis, Joaquim Rocha, Jorge Garcia Pereira, José Pimentel Teixeira, manuel a. domingos, Paulo Ferreira, Pedro Correia, r, Ricardo António Alves, Ricardo Jorge, Sara Monteiro, Silvia Chueire, Sissi, SV, Torquato da Luz, Vítor Leal Barros...

CARA SAÚDE :)

Há dias uma leitora não gostou que eu tivesse utilizado a expressão «ó minha amiga» numa resposta que lhe dei na caixa de comentários. Outros têm mostrado desconfiança relativamente ao meu tradicional remate de missiva: saúde. Desta feita, o AMC mostra desagrado quanto ao «meu caro». Digamos que ando com azar nos tratamentos, sendo talvez mais sensato, sob risco de começar a passar por intratável, deixar de tratar. É que quando um «escasso bom senso» em claro tom de brincadeira não cai bem, ainda por cima depois de ter gramado com acusações de «demagogia» e de «fanatismo atroz» a propósito de assunto de bola (logo eu, que este ano só pus os pés em Alvalade num único jogo!), nada há a fazer senão remeter ao silêncio o tal pouco bom senso que também a mim me resta. Assim o farei, não sem antes agradecer a atenção prestada com mais caruma para a fogueira:

COMO O ÍPSILON SE PÕE DE JOELHOS MAS NÃO É PARA REZAR


1. O jornal Público mudou. Além de mais moderno é, neste momento, um jornal pior. O suplemento ípsilon resume bem o sentido da mudança: mais espaço à imagem, muita cor, muita notícia – treta - estrangeira, cada vez menos notícia portuguesa. Tenho pena dos bons jornalistas que são obrigados a trabalhar nestas condições [por isso vos digo, bons jornalistas: não desistam assim tão depressa]: passar a vida a falar do Harry Potter, do último (e ainda mais terrível uuuuuuh) neo-conservador americano, da banda infantilóide que conquistou o mundo no myspace, ou seja, uma modernidade que é esta modernidade: o mostrar que conhecemos a moda – glamour-sensation-hype -, uma modernidade que não é feita por nós mas só (e tristemente) a realidade por nós reconhecida; é essa a nossa (de coisas como o Público) maior proeza: sermos dos primeiros a acompanhar, com o mínimo atraso que nos for possível, o que os outros fazem. Que coisa tão antiquada.

1.1. Chamo-lhe “modernidade” em sentido irónico e crítico, mas não só: trata-se efectivamente de modernidade, se por tal entendermos um conjunto de fenómenos que têm em comum a ilusão de contribuírem para anestesiar o efeito de desenraizamento que percorre as sociedades atravessadas pelo que uma parte do mundo contemporâneo convencionou chamar “globalização”.

2. A globalização que prescinde do “local” é uma globalização superficial. O que uma verdadeira globalização pode ter de bom é a presença do outro; e não o proporcionar-nos a saída daqui para muito longe, de forma a não sermos obrigados a ver, por exemplo, a cara dos nossos políticos ou a degradação das cidades.

3. Eu não tenho dúvidas de que o futuro passa pela valorização e construção de uma paisagem local (geográfica, física, artística, etc.) mais forte e viva, sem o que a “globalização” não passará, apenas, de uma estratégia de uniformização económica da realidade. A nossa música, a nossa sopa, o nosso sol, a nossa literatura, serão tanto mais globais quanto mais nossos forem.

4. Os únicos parolos são os que têm medo de parecer parolos. O Público é um jornal.




Rui Costa

22.5.07

MÁQUINA-ÓRGÃO


É impossível determinar até onde ia a paixão dos apaixonados de Sócrates. Podemos imaginar Aristodemo e Ágaton num festim orgíaco, levados pela embriaguês, elogiando o amor nos braços do mestre. É-nos legítimo incluir Alcibíades neste exército de amantes, pensá-los a todos num leito de sensualidade com tons de Rubaiyat. Vinho e sexo são há muito conjugação frutuosa entre sábios das mais diversas estirpes. Beber, cantar, conversar… e amar, não são senão gestos do intelecto num corpo que se procura realizar. Pausânias queria uma lei que proibisse o amor com adolescentes. Não pelos adolescentes, mas pelos amantes que, deslumbrados com a juventude, facilmente se perdem num amor sem nobreza, «realizado com vileza», indigno. «E por indigno entendemos justamente esse amante popular, que prefere o amor do corpo ao amor da alma, e não guarda constância porque o objecto a que se prende não é também constante». Mas inconstante é o próprio amor. Logo, também aquele que ama. Quem é aquele que ama? O que se diz quando se diz amor? Que poder esse o do verbo indecifrável? O poder do amor é andar nu e não sentir vergonha por isso, como naquele tempo em que o homem e a mulher eram um só ser. Penso nisso enquanto olho uma fotografia de Man Ray, Erotismo Velado (1933), uma fotografia que o próprio terá caracterizado como um tipo de poema plástico. Tinha razão Ágaton ao observar «que todo o homem bafejado pelo Amor, «mesmo antes avesso às Musas», adquire o dom da poesia». Importa porém actualizar as palavras de Ágaton, pois nenhum dom é a poesia. O bafejo do amor acorda no homem instâncias adormecidas, esse campo de andar nu sem sentir vergonha disso, como no tempo em que homem e mulher eram um só género. Dessa dança nasce e vive a poesia, para na palavra morrer como um corpo que se desnuda. E, ao contrário do que possa parecer, não longe disto andava Diotima quando via no amor um intermediário entre mortal e imortal, entre o humano e o divino. Divinas são as coisas que florescem nesse corpo dos homens, o amor. Não o resumamos a mais, olhemos antes a fotografia de Man Ray e vislumbremos nela a nudez de não ter vergonha, essa nudez que uns dirão dúbia, outros essencial, outros ainda, como Aristófanes, caso fosse vivo, andrógina. A arte, toda a arte, é fruto dessa reunião que remete para um estado original, celular, tão simples quanto 1 mais 1 ser igual a 1. O que nos parece estranho agora, só assim parece por do estado original já nos termos afastado o suficiente para que nada vejamos além da lógica que as necessidades dos sentidos foram exigindo ao corpo. A fotografia de Man Ray é ainda mais estonteante por ao lado desse corpo que é o nosso colocar um outro corpo, mecânico, como que antecipando essas máquinas desejantes de que falaram Deleuze e Guattari. Tudo é máquina? Pode ser que sim, desde que lá dentro venha o amor.

DUAS (RES)POSTAS IN ABSENTIA

Primeira: acrescentar caruma a uma fogueira é legítimo, mas de escasso bom senso. A questão começou entre Beatles & Stones, evoluiu para Doors & Velvet, podia continuar ad eternum. Trazer à liça os Joy apenas contribui para uma maior division. Pois claro que também esses são merecedores de galões à escala dos maiores. Mas cá em casa, mais que maiores, são os das portas cimeiros. Não sei porquê, esta do das portas caiu-me mal para caramba. Concedo nesta: depois do Morrison, foi Ian Curtis o "poeta das canções" mais consistente.

Segunda: deveria o camarada André pensar, antes de ripostar sobre bola, que nesta casa insone só há uma nação: a liberdade. Pelo que, meu caro, não é questão de cor nã’ senhor. Como esse, também eu te apontaria um que o Baia foi buscar lá dentro num jogo contra o Benfica. Por isso, há muito defendo o recurso às electrónicas em prol da verdade do jogo. Esta expressão é horrível, bem sei, mas agora não tenho outra à mão. O Ronny teve e com isso decidiu um campeonato. O caso que refrescas nada decidiu.
P.S.: Um mal não justifica outro mal, pelo que, em ambos os casos, a validação dos golos deveria ter sido diferente da que ocorreu.

ARteoRIA #10 – Da Poesia

Para os Ventilan

“Poesia não compra sapato, mas como andar sem poesia?”*

Poeta Vivo (e brasileiro)


* Citação via Mito nº 2, como provém do nada que é tudo, surgem brancas nos nomes dos autores, mas o conteúdo é rigoroso, posso vos assegurar isso. Se alguém se lembrar do autor desta reflexão, por favor avise.

Maria João


#1 #2 #3 #4 #5 #6 #7 #8 #9

INSÓNIA


Joaquim Rocha, Insónia, 2007.

POEMA DO MAR E DA SERRA

Ó mar de que não sei nada
Nem vejo que desvendar,
És só a mais larga estrada
Para ir e voltar!

Eu sou lá dos montes
Que medem o céu,
Sou das frias serras onde primeiro o Sol nasceu
E onde os rios ainda são apenas fontes.

Sou de onde as árvores falam
A língua que eu conheço,
Onde de mim sei tudo
E do resto me esqueço.

Lá, tenho olhar de estrelas a luzir
E tenho voz de guardador de rebanhos,
Passos de quem só desce pra subir,
Mãos sem perdas nem ganhos.

Contigo falo, ó mar,
Se a Lua vem do céu passear no mundo,
Tornando-te a planície do luar
Sem ecos nem mistérios de profundo.

Mas só lá sou da terra e a terra é minha,
Só lá eu sou do céu e o céu é para mim,
Ó serra aonde há tal serenidade
Que nada tem começo
Nem fim.

Branquinho da Fonseca

Branquinho da Fonseca nasceu em Mortágua, no ano de 1905. Terminou o curso de Direito, em Coimbra, em 1930. Filho do escritor Tomás da Fonseca, usou por vezes o pseudónimo de António Madeira. Colaborou nas revistas Manifesto e Litoral, foi co-editor das revistas Tríptico, Presença e Sinal. Estreou-se em 1926, com uma colectânea singelamente intitulada de Poemas. Foi também dramaturgo e ficcionista. Faleceu em 1974, em Cascais.

21.5.07

CONDESCENDER

Desta feita, não posso condescender. Custa-me aceitar o gáudio de uma vitória conseguida à custa de um golo marcado com a mão, um golo que só o árbitro não viu que foi marcado com a mão. O FCP tem a melhor equipa? Tem. E eu até simpatizo com o Jesualdo, que começou a treinar lá na minha terra. Mas um golo marcado com a mão é um golo marcado com a mão. Quanto ao momento da noite, gostei de ver uma adepta do SLB, à saída da Luz, manifestar satisfação por o campeonato não ter ido para o Sporting. A norte, exactamente no mesmo instante em que tal satisfação era manifestada em directo para as câmaras gulosas da TVI, os adeptos do Porto gritavam: «SLB, SLB, filhos da…» Haja quem os compreenda!

18.5.07

ACONTECEU

Aconteceu que até aos vinte e sete
anos de idade tive a alegria
de viver na solidão da casa e da família,
com um belo jardim à minha volta.

Fiquei, assim, um ser não corrompido
e, fazendo justiça à natureza,
sigo o murchar da floresta
ou o destino do jardim.

Gostei de esquecer a tristeza e a ira,
não ter ideias, não dizer palavras
e nas árvores loucas da infância
sofrer o tormento do génio alheio.

Fiquei de repente fina, como a relva,
alma pura, como as outras plantas,
não mais douta do que qualquer árvore,
não mais viva do que até ao nascimento.

Sorria de noite para o tecto,
para o vazio, onde, perto e perceptível,
empalidecia encoberto o óbvio deus
que tem todos os sorrisos e bondades.

Fui tão inevitável paraíso
e estive tão perto da grande bondade divina,
que a trança da testa – para mais levemente beijar –
afastei e dormi profundamente.

Como se por muito tempo, pelos tempos,
eu entrasse mais pela terra e pelas árvores.
Ninguém sabia como o tormento é grande
atrás da porta da minha solidão.
Tradução de Manuel de Seabra.

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Bella Akhmadulina nasceu em Moscovo a 10 de Abril de 1937. Formada no Instituto Gorki de Literatura, tornou-se numa famosa poeta, tradutora e ensaísta. Começou a publicar em 1954, na revista Oktiábr’. O seu primeiro livro, porém, data de 1962: Struná (Corda). Traduzida para várias línguas, a sua poesia foi bastas vezes premiada.

17.5.07

Meme*




Ainda há pouco estava a pensar por que raio não me fazem chegar mais coisas destas, eu que sofro obsessiva compulsivamente da mania da elaboração de listas, memes, elos, correntes, coisas do género. Respondo a tudo o que é inquérito e pelo-me por um questionário seja lá sobre o que for. Respondo com muito gosto, pois então, à menina que não está para ser provocada, lembrando-lhe a minha bandeira e este remate da Senhora Dona Yourcenar:

O nosso grande erro é querer encontrar em cada um, em especial, as virtudes que ele não tem e desinteressarmo-nos de cultivar as que ele possui.

Passo a palavra ao Lourenço, ao JMS, ao FAG e ao (meu grande amigo) António Costa.

* Um "meme" é um " gene cultural" que envolve algum conhecimento que passas a outros contemporâneos ou a teus descendentes. Os memes podem ser ideias ou partes de ideias, línguas, sons, desenhos, capacidades, valores estéticos e morais, ou qualquer outra coisa que possa ser aprendida facilmente e transmitida enquanto unidade autónoma".

LISBOA

Se vivesse em Lisboa neste momento, o meu desejo seria que nas próximas eleições para a Câmara Municipal perdessem todos os candidatos. Como não moro, ficarei apenas a desejar que, seja qual for o resultado, Lisboa não perca mais do que já perdeu até agora.

3 ARGUMENTOS A FAVOR DOS STONES


Para o Lourenço.

1. Ao pé dos The Rolling Stones, os The Beatles foram quatro betinhos. Esquece o espampanante Mick Jagger. Lembra-te do Brian Jones e, se a memória te faltar, concentra-te no Keith Richards. Um portento de loucura!

2. Os The Beatles eram bonitinhos, os Stones são horríveis. Ora, como todos sabemos, a genialidade é inimiga da beleza. Eu diria mesmo que a genialidade de um artista é proporcional à sua fealdade.

3. Os de Liverpool foram óptimos na criação de melodias delicodoces e melodramáticas, mas raramente passaram disso. Tiveram o John Lennon para animar a festa. Os de Londres são trágicos, excessivos. Um álbum como exemplo: Sticky Fingers. Um exemplo em forma de canção: Sympathy For The Devil.

CIRCULAÇÃO AMOROSA

Cuidava que amor já se findara,
até vê-lo de face, recomposto
entre asfalto e edifício, nuns alindes
de tempo muito outrora merecido.
Cuidava que carpir só me restava,
diante de impassíveis formas neutras,
o meu próprio pretérito exilado
na mais interior e inacessível
ilha que me permito, enquanto a bruma
delia-me, no peito, a tatuagem
celebrante de ingénuos madrigais
compostos entre beijo, espada e rosa.
Cuidava me tornar, fonte exaurida,
um somente lugar no descaminho,
cemitério de seixos, sem o móbil
que cumpre o ser do rio e seu destino.
E nem mais matinava nos mundéus:
a espreita, o soslaio, o sutil
em que se guarda amor no anteminuto
de quando a nossa posse é consumada.
E onde nos consumimos. Ah, cuidava
cuidava ser a coisa maninha (alma ou carne)
tudo o que finalmente me compunha,
era eu-mesmo, repleto, concluído.
Como se, antes oculta, vindo amor
fosse momento em branco o onde se enflora

nosso endereço escrito no infinito.

Ruy Espinheira Filho

Ruy Espinheira Filho nasceu em Salvador, Bahia, em 1942. Jornalista, mestre em Ciências Sociais, doutor em Letras, professor de Literatura Brasileira, publicou vários livros de poemas. Estreou-se na década de 70, com Heléboro (1974). Reuniu a sua poesia em 1998. Tem ainda publicados livros em prosa, de ensaio, crónicas, contos, novelas e dois romances.

16.5.07

IMBRÓGLIO

Ando há dias a matutar nesta notícia de uma mulher, de 70 anos, acusada de um furto no valor de 3,99 euros, cujo julgamento poderá custar ao Estado 500 vezes mais que o valor do furto em causa. Casos destes, ao que parece, não são autênticas raridades entre nós. É claro que num mundo perfeito aquele julgamento não seria realizado, a mulher entregaria o que roubou ou o valor inerente ao objecto furtado e tudo se resolveria com a maior das facilidades. Todavia, o mundo em que vivemos está longe de ser perfeito. Imaginemos que a mulher era obstinada o suficiente para recusar a devolução do produto roubado ou da quantia em causa, imagine-se que a obstinação da cidadã era tal que colocava o Estado na posição de ter que decidir entre o julgamento ou o perdão. O que fazer? Em ordem de razão, o Estado não pode perdoar um furto, a mulher deve ser julgada, sob pena de, abrindo um precedente, ter o Estado de perdoar no futuro todos os furtos que não transcendam os valores das custas de uma acção judicial do mesmo género. Isto é inadmissível de todos os pontos de vista, justificando assim que o Estado avance com a acção mesmo sabendo ir perder dinheiro. Não sei se noutros casos haveria a possibilidade de a cidadão pagar as custas da acção com trabalho comunitário, mas neste caso a cidadã é uma mulher de 70 anos. Que trabalho comunitário pode ser exigido a uma mulher de 70 anos? O que me parece é que isto é um imbróglio danado acerca do qual apetece dizer que o bom senso, afinal, não é a coisa mais bem distribuída do mundo.

La escopeta cobarde de su pasión disimulada

Há pessoas que não conseguem falar claro, falam por parábolas e por metáforas que tornam muito difícil o diálogo. Essas pessoas cansam-me. Não porque despreze esse tipo de "jogos", mas porque quem muito fala por parábolas tende a ver no que os outros dizem um sentido oculto que, muitas vezes, não existe. Ou seja, nós tendemos a interpretar o discurso dos outros à medida do nosso discurso. É por isso que quem fala por parábolas só com quem em parábolas lhe responde pode alguma vez dialogar. É uma questão de código linguístico, difícil de ultrapassar e limitadora das relações humanas. Assim, quando me falam por parábolas prefiro calar-me. Prefiro não dar resposta, evitando equívocos e investindo, tanto quanto me for possível, na relação com a pessoa. Por vezes é impossível, mas nem sempre.


P.S.: O título do post não é nenhuma metáfora. É um título acidental, roubado a Juan Ramón Jiménez num livro onde um burro se mostra bem mais inteligente e afectuoso que a maioria dos homens.

Palavras que rebentam. aflorando
a pedra, a solidão. deslizam, vagas,
gramaticais, roendo inconformadas
as arestas, o atrito, puras. quando

nos líquidos, no éter, na distância,
diluem-se e morrem acabadas.
não nos corpos, nas rugas, nas arcadas:
combatem, rumorosas, cal e cântico.

é difícil atarem corpo e vida
aos que vivem e morrem subjacentes
subjazendo, talhados para mina.

mas despertadas, bem ou mal medidas,
rebentam em ogiva, funcionais
chamas supostamente adormecidas.

Nuno Guimarães

Nuno Guimarães nasceu em Vila Nova de Gaia no ano de 1942. Licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras de Coimbra, foi professor do Ensino Secundário. Guitarrista e poeta, estreou-se em 1970 com Corpo Agrário. Colaborou em algumas revistas. Faleceu em Agosto de 1973, vítima de leucemia.

15.5.07

Fragmento #52 – Da educação

Ultimamente, não sei o que se passa com as hormonas da minha alma, mas sempre que a minha caneta se activa no papel, só aparecem textos confessionais – que são tão aborrecidos que nem os passo para aqui; acho o umbigo uma parte do corpo pouco interessante, por isso desconfio destes textos e penso que a paixão é a melhor forma de nos superarmos, também uma forma de nos libertarmos de nós próprios. Caramba, isto até parece um linguarejar de padres, mas desde pequena que não confio em homens de saias e andei num colégio no 1º ciclo em Évora – o arcebispado das terras do além Tejo – em que o director era um padre professor de português com métodos antigos, que fazia chamadas orais e batia nos alunos que não respondiam; a criatura dava também religião e moral, lembro-me de assistir em plena aula ao seu choro compulsivo quando se lembrava da mãezinha, uma santa que tinha morrido e de certeza estaria no céu – era caso para pensar que se tratavam de aulas de religião imoral. O seu nome era Padre Barroco, ironias do destino e o homem era manco como o diabo, entrava nas aulas a fumar e a coxear, depois escarrava no caixote do lixo, apagando a beata, sentando-se na mesa do poleiro perante o nosso silencioso medo; ele tinha dois óculos diferentes e utilizava-os consoante as necessidades, ver-nos ao longe ou ler de perto e por vezes colocava os dois em simultâneo – sempre achei que devia ser para os fenómenos paranormais, mas só recentemente me apercebi que ele era mesmo de outro mundo, um monstro extra-terrestre e foi o meu sobrinho Vasco que me ensinou isso. Bom, vou agora colocar o padre de parte e concentrar-me nos ensinamentos do meu sobrinho: tenho cinco sobrinhos e uma sobrinha, mas confesso (raio de palavra) que tenho um fraquinho especial pelo Vasco, desde que o vi na maternidade; estas coisas não se explicam, empatias, ele é o segundo filho da minha irmã que tem três rapazes. O Vasco tem oito anos e é especial, diferente, para além de ser lindo, mas eles são todos lindos; é o mais introvertido, calmo, sempre com um sorriso charmoso e gosta de brincar sozinho desde sempre, fica horas concentrado em qualquer coisa, nem se dá por ele; porém, detesta que lhe chateiem a cabeça; o Vasco aprendeu a fazer contas sozinho com um jogo antes de ir para a escola e tem também interesses que os miúdos da idade dele não têm habitualmente, tais como dinossauros, foi ler sobre o tema na enciclopédia, sabe os seus nomes todos e descreve-os; agora ele costuma vir a minha casa aos sábados, desde uma tarde em que se dirigia com a minha irmã ao médico e como não foi possível haver consulta, ele propôs irem ao museu da Vieira da Silva que era ali perto, para ver um quadro que o professor mostrou na aula; afinal o quadro não estava no museu, no entanto, ele viu tudo com um enorme entusiasmo e pediu à mãe para comprar o catálogo; foi então que a minha irmã se lembrou aqui da borderline artista Tia Janinha para lhe dar umas lições de pintura, talvez lhe fizessem bem visto que ele tem tão más notas a tudo. O Vasco está num colégio católico para elites de Lisboa, eu (a louca Tia Janinha) tinha a sensação que ele com o seu feitio estaria desenquadrado naquele sítio, daí os maus resultados; agora que estou mais perto, fiquei aliviada porque nas aulas de religião ele está a aprender a rezar o terço e confessou-me (raio de palavra) que acha uma seca. No entanto, vou ficando cada vez mais preocupada com outros aspectos, tais como ele gostar muito de ler as histórias do antigo testamento – será que existe em BD alguma versão dos clássicos gregos? Se souberem, digam-me, talvez assim o converta a outras coisas. Comecei por deixar o meu sobrinho pintar à vontade quando aqui vinha, ensinando-lhe apenas alguns aspectos técnicos e materiais, consoante as necessidades dele; um dia refilou comigo e perguntou-me se afinal eu estava a dar-lhe aulas ou não, respondi-lhe que eram aulas particulares, por isso eram diferentes das do colégio; então, ele foi ficando mais à vontade e começou a tomar iniciativas, por exemplo, perguntou-me por formas geométricas, expliquei-lhe que servem para medir e encaixar outras formas, ensinei-lhe a usar o compasso e ele todo contente quis desenhar um caracol partindo de uma circunferência; na última sessão foi de mais, ele disse-me que detestava o professor do colégio desde a primeira vez que o viu – e já o tem desde o 1º ano; então, pedi-lhe para fazer um retrato do professor e ele pintou um monstro extraterrestre verde. A louca furiosa Tia Janinha sugeriu logo que o mostro verde devia ter baba e ranho, ele riu-se e respondeu-me: se as pessoas têm ranho verde e o professor é um monstro verde extraterrestre, então o ranho dele é cor de pele. Fiquei muito contente com a resposta, fartámo-nos de rir e ensinei-lhe a misturar as cores para obter cor de pele humana. Lembrei-me logo das escarretas verdes nojentas do Padre Barroco no caixote do lixo da aula do colégio horrendo onde andei e só de lá saí quando fiz um enorme chinfrim em casa, porque ele me pregou um estalo em frente de toda a turma – e depois fui para uma boa escola pública. Esta história ainda não a contei ao meu sobrinho, tenho de ganhar coragem.

Maria João

14.5.07

IGLOO DE CACOS DE VIDRO


Este fim-de-semana adquiri numa feira de velharias, por dois euros, um livro intitulado Uma Fatia de Poesia…, de um para mim completamente desconhecido Michael Ehrlich. Trata-se de uma edição de 1957, com desenhos assinados por Matos Simões e Ernesto de Carvalho (?), composta por pequenos contos escritos em português e algumas poesias na língua de Victor Hugo. Ainda não li o livro, nem sei se o vou ler, nem é disso que quero falar. Teimo apenas que não valha os dois euros que por ele dei. O segundo conto, muito curto, é sobre dois garotos esqueléticos que troçam de uma menina gorda. A menina gorda quer rir dos garotos esqueléticos que dela troçam mas não consegue, só lhe dá para chorar. Li esta coisa e lembrei-me dos igloos de Mario Merz que vi há anos na Fundação Serralves. Lembro-me que vê-los provocou em mim uma sensação que não deve ter andado longe dessa menina gorda que queria rir de quem troçava dela e não conseguiu, dando-lhe só para o choro, mesmo que fosse um choro seco, talvez o pior de todos os choros. Merz foi um dos grandes nomes da chamada arte povera (pobre), assim baptizada por Germano Celant, em 1967, por ter na sua base a manipulação de materiais desvalorizados do quotidiano. O trabalho de Mario Merz é mais elaborado do que esta visão simplista possa transparecer. Nessa exposição de Serralves os igloos misturavam néons com desperdícios de vidro, ramos de árvore com ferro, dando forma a um espaço tridimensional dúbio embora carregado de uma significação conceptual que acaba por ser o sustento destas obras enquanto arte. Lida a coisa de outra maneira, apela-se ainda a uma atitude política de ir contra a comercialização e a industrialização da arte moderna. Critica-se a suposta submissão da arte pop à sociedade de consumo e põe-se em causa o advento das novas tecnologias na criação artística. O conceito não é mau, o resultado é que, com honrosas excepções – Michelangelo Pistoletto, por exemplo –, me pareceu sempre muito pobre. Daí que, confrontado com os igloos, a minha vontade de rir tivesse sido travada pelo choro de quem diz de si para consigo: ora aqui está uma grande ideia que resulta num objecto sem jeito algum. Que os fãs do trabalho de Mario Merz não se sintam ofendidos pelas palavras singelas deste pobre escrevinhador, tão longe de pretender criticar a genialidade do que não entende como de representar o papel do pedante a debitar teorias sobre assuntos que não domina. Falo, quero dizer, escrevo meramente na condição de “espectador” ou, melhor escrevendo, fruidor. Muita da arte contemporânea tem este problema de se sustentar em grandes ideias, conceitos bastante convincentes, reflexões credíveis e persuasivas, mas resultar numa ausência de comunicação confrangedora. Não sei onde reside o problema, certamente residirá naquele que não consegue predispor-se a aceitar o conceito na sua (anti)forma final. Eu gostava de saber apreciar um objecto artístico exclusivamente pela dimensão conceptual dos materiais de que é feito, gostava de saber olhar para um igloo feito de cacos de vidro e ver nessa construção um gesto que é uma reacção «à mecanização e à hipertecnologia de uma sociedade pós-industrial desumanizada». Sinceramente que gostava de possuir tal capacidade. Não me sendo possível, continuarei, tal como a menina gorda que via apenas garotos esqueléticos nos garotos que dela troçavam, a ver cacos de vidro reunidos em forma de igloo numa grande parte das obras de referência «de um dos nomes maiores da arte povera e de um dos mais significativos criadores do nosso século».

Ia no 115 com uma dor metafísica nos colhões
à procura da morte em diagonal perfeita
a música é a música é a música
disse a tia Gertrudes quando compunha o programa
da máquina de lavar
não me digas que não há beleza no ar que ela tem
essa putinha
sapatos rasos com talas de tortura para a sífilis
nas unhas
e o mugir da bicicleta quando lhe sugam o leite
das tetas gordas
sobre o Popocatepetl em pedaladas à Gino Bartalli-o-Católico
e o cardeal com um osso buço entalado no recto purpúreo
a muralha de urtigas na labareda dos teus olhos travessos
oh meu amor de qualquer dia
ámen disse a gazela fintando o rinoceronte
estúpido hipocondríaco
ámen disse o gatinho no colo do útero
acaso o acaso faz rima com o acaso do acaso?
rima de merda numa sublime exaltação escatológica
e o reviralho da altitude em voracidade alarmante
para a consolação dos mortais e o desconsolo
dos que partiram
maldito seja quem te inventou oh spleen oh letargia
vou-me embora quando a porta rebentar
bom dia

Levi Condinho

Levi Condinho nasceu em Alcobaça no ano de 1941. Foi viver para Lisboa em 1972, tendo militado no PCP entre 1970 e esse ano. Jornalista, cronista, empregado bancário, publicou Para Que Alguns Me Possam Amar, em 1977, ao qual se seguiram Saxofone e Tentáculos, em 1981. Autor incluído na antologia Sião, organizada por Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião, publicada na frenesi em 1987.

FÁTIMA



daqui:

Os pastorinhos de fátima eram crianças subnutridas com dificuldades de aprendizagem. Sabiam contar até dez, vá lá, cinquenta, e os seus pais eram tementes a deus, ao papa, ao presente presidente (presuntivo, coevo) ao futuro, às moscas, e a tudo o mais de que se conseguissem lembrar. Participaram numa fabulosa campanha de marketing – uma das maiores do século XX – fabricada por um grupo de portugueses em colaboração com a tripulação de uma nave espacial vinda de uma galáxia distante a saber as vistas da nossa, de poiso uns dias pelo nosso planeta e no país português a quebrar o tédio dos corredores da nave, a ver os pardais, os tornozelos das raparigas, o assobio gaiteiro das lidas, e a abastecerem de presunto as digitais despensas da casa movente, estacionada agora por uns tempos em quinta desactivada nos arredores da povoação aludida. O amontoado cinzento de chips despreocupado da condição de antiga fêmea concretizou-se numa oferta de serviços cinematográficos e a simpática extra-terrestre oscilou sobre o que tinha mais à mão e aterrou de pé, na azinheira, rodeada por um halo benzido de capacidade anti-alérgica, gramíneas, acáros, incorporada da capacidade de produzir a doce voz que a Virgem Senhora, bondosa como o impossível e doce como o claro mel, haveria por certo de ter caso existisse. Vê-se então um folguedo qualquer, ali onde a meda de palha se agita, são dois locais a compensar as horas de trabalho em comprazimentos dos corpos abraçados, que para estes não há cansaço que afaste o céu antecipado sobre o chão, e pronto, um atraso pequeno, a produção espera, aproveite-se a retocar a maquilhagem da Virgem Senhora que por certo nada viu daqueles dois, ai se visse, ficaria menos cego o azul roendo o céu dos olhos castos e o pecado a penetrar pela cabeça adentro com as imagens de fogo, ai, ai, ai se visse.

Agora a Novidade, Imagem 2 (as estrelas à volta da cabeça: União Europeia, Quarto Segredo)




daqui:


Rui Costa

13.5.07

A minha cama range mais quando me levanto
do que quando me deito. Talvez o sono me engorde,
talvez os meus sonhos sejam demasiado pesados.

O QUE É UM BAIBAI?


baibai es un adiós.
un farewell sin pañuelos.
tem gente que escreve haikai,
três linhas à bashô.
baibais também seguem modelos.

quem escreve baibais sabe que acabou
-se o que era doce.

Angélica Freitas

Angélica Freitas nasceu em Pelotas, Brasil, no dia 8 de Abril de 1973. Já este ano, publicou o seu primeiro livro de poemas: Rilke Shake. É autora do weblog Tome uma xícara de chá. A revista aguasfurtadas publicou-lhe uma Antologia Brevíssima no n.º10.

11.5.07

O TÚMULO DE DANTE

O túmulo de Dante. Entramos.
Calados e solenes –
tempo andante.
Não sabemos porquê,
mas entendemos: Dante… Dante…

Dante – Dante, e já não somos
os de há pouco. Há uma fronteira.
Não sentindo inveja, dor,
entramos no túmulo de chapéu na mão.

Sim, Dante. Ele – ficou,
e nós, cuja fama dura dois, três
anos,
o destino que nos coube
não ousamos sequer pôr a seu lado.

Enquanto os guias, com gosto, extensamente,
falam do seu destino,
pensamos em nós
com vaidade
e falta de respeito.

Mas bem no fundo da nossa alma,
de repente brilha um luminar:
o Sol reluz com súbito esplendor,
o Sol que foi o seu guia.

Tradução de Manuel de Seabra.
Boris Slutsky

Boris Slutsky nasceu na Ucrânia a 7 de Maio de 1919. Estudou direito e Literatura em Moscovo, tendo começado a publicar poesia em 1941, no mesmo ano em que começou a servir no Exército Vermelho. O seu primeiro livro apareceu em 1957, já depois da II Guerra Mundial, com o título Pámiat’ (Recordação). Muito influente junto das gerações mais novas, há quem afirme que a sua melhor poesia foi apenas publicada após a sua morte, ocorrida no dia 22 de Fevereiro de 1986.

O RESTO NÃO INTERESSA

De há uns tempos para cá, papo pelo menos um livrinho vermelho da saudosa Parceria A. M. Pereira por mês, “Coisas Espantosas”, “Lágrimas Abençoadas”, “Estrelas Propícias”… tudo o que vem à rede é peixe. Um destes dias acabam-se, mas o que me consola é que o Portugal de Camilo não desaparece com eles e continua a dar novos mundos ao mundo. Políticos lorpas, possidentes néscios, espíritos torpes, gajos com amásias (e gajas com amásios, por supuesto), gente ingénua e mesmo na aparência inofensiva que diz dislates tremendos da boca para fora sem que um sorriso sequer lhe aflore na dita…
António Figueira, Cinco Dias.

9.5.07

SIC

A propósito do desaparecimento da menina inglesa no Algarve, a SIC – julgo que foi a SIC - lembrou-se de entrevistar um serralheiro – julgo que era serralheiro – do aldeamento onde estava – julgo que ainda está - instalada a família britânica. E o que é que o senhor serralheiro tinha de interessante para dizer? Que se admira muito, que às vezes até anda com medo dentro das casas deles, dos ingleses, porque eles até têm novas tecnologias que dá para ver tudo, até dá para ver as casas não estando lá dentro, e ele tem que andar com cuidado para não fazer nada que depois o possam repreender, que ali a bota não bate com a perdigota. Fico a aguardar que entrevistem o mais depressa possível o rapaz que limpa as piscinas, o jovem que carrega as malas, a dona da mercearia e, se possível, o cão do vizinho – julgo que o há. Ah! E não se esqueçam do Zézé Camarinha. Ainda é vivo?

MUCHA


Este poster, da autoria de Alphonse Mucha (1860-1939), foi utilizado numa angariação de fundos em prol das escolas checas, à época ameaçadas por um processo de germanização que punha em causa a sobrevivência da própria língua checa. Encontrei-o numa página que explica o seu sentido. Cechia, a mãe simbólica da nação checa, está sentada numa árvore morta, com o braço pousado numa estátua do deus pagão Svantovit, protector dos eslavos antigos. A jovem estudante, segurando lápis e cadernos, confronta os espectadores com um olhar bastante assertivo. Trata-se de um trabalho de 1912, por isso anterior à independência do Estado da Checoslováquia, que aconteceu em 1918, para o qual Mucha desenhou selos e notas de banco. Em 1939, quando os alemães invadiram o seu país, não admira que o artista checoslovaco tenha rapidamente sido detido pela Gestapo, tendo vindo a morrer nesse mesmo ano com a saúde muito debilitada. Mucha foi um artista notável, autor de uma obra que sem se autoliquidar esteve sempre ao serviço da comunicação ou, para ser mais preciso, no que pode haver de comunicativo na decoração. Isso não é nada fácil. A arte, toda ela, teve sempre uma função decorativa que é frequentemente relegada para um plano secundário, esquecida ou omitida, quando não preconceituosamente menosprezada. A intelectualização da produção artística tende a omitir este facto, sobrevalorizando outros mais de acordo com o estatuto ambicionado para as chamadas coisas mentais. A verdade é que assim como decorar não esgota a possibilidade da reflexão e do testemunho – sublinhe-se o exemplo aqui trazido -, também as coisas mentais pouco cativarão sem adornos que as embelezem. É por isso que não há boa filosofia sem bom sentido do humor, valendo proporcionalmente a inversa, ou seja, não há bom sentido de humor sem boa filosofia. Em ambos os casos uma pode adornar a outra, tornando-se, desse modo, a comunicação muito mais atraente e persuasiva. Passa-se o mesmo na relação que a poesia estabelece com a ironia, ou com a metáfora, ou com outro elemento qualquer que lhe possa ser decorativo. Isso nota-se muito bem quando qualquer uma destas artes passa à oralidade. A gente ouve uma palestra e interessa-se mais ou menos pelo orador muito em função da sua capacidade de adornar o discurso, por vezes recorrendo inclusive a meios extra-orais como sejam vídeos, imagens, apresentações em PowerPoint, etc. Nas artes esse equilíbrio parece ser muito mais difícil de conseguir, pois não são raros os casos em que à força de pretender ser persuasiva a arte se torna meramente ornamental. E quando se torna meramente ornamental ela torna-se exactamente o contrário deste trabalho de Mucha: torna-se oca.

Leio no jornal
o que todo dia mastigo
usando meu rosto
feito de salas de espera:
o que o diabo amassou e cuspiu
e tomo a overdose
a receita de rigor: Valéry-Cabral
na veia, para não perder a cabeça
nem despentear o cabelo
e para sumir solene, dopado
composto, com missa
de corpo presente, sem saber
embora tenha lido
a minha causa mortis.

Armando Freitas Filho

Armando Freitas Filho
nasceu no Rio de Janeiro, em 1940. Estreou-se na década de 1960, com Palavra, tendo reunido a sua poesia em 2003 num volume intitulado Máquina de escrever — poesia reunida e revista (1963–2003). Recebeu o prémio Jabuti em 1986, com o livro 3x4, e em 2000, com o livro Fio terra, ganhou o prémio Alphonsus de Guimaraens. É ainda autor de alguns ensaios e organizador da obra de Ana Cristina César.

UM HOMEM VISCERALMENTE DE ESQUERDA

«Esta morte anunciada [a do suplemento 6.ª] (mesmo se apenas em surdina) inspira-me muitos sentimentos, alguns não confessáveis no espaço público». »»»

Não especulo sobre quais sejam esses sentimentos, mas era bom que não impedissem um debate sério, no espaço público, sobre o fim de mais um suplemento cultural na imprensa escrita do país em que vivemos. Sobretudo um debate com quem de direito, ou seja, aqueles que mais parecem querer furtar-se a esse debate. Pena que assim seja, confessa no espaço público um mero leitor, pois tal debate é cada vez mais urgente, sob pena de, a não ser realizado, a cultura passar a ser um mero rodapé da intrujice e da intriga que contamina os media portugueses.

8.5.07

COMEÇAM A FALTAR-ME OS TÍTULOS


Para agradecer as nomeações nessa roda dos Thinking Blogger Award. Juntar a Senhora Dona Redonda à Luísa, ao David Luz, ao Paulo Kellerman, à Alice M. de Campos, ao Ricardo António Alves e a SalsolaKali. Agradecido.

7.5.07

[é preciso fazer mais fisioterapia…]


é preciso fazer mais fisioterapia
contar os dedos sobretudo os que nos faltam
não basta vencer
a qualidade também é importante
e não sermos apanhados de surpresa
pela gestão ineficiente do nosso
e dar uma volta de avanço ao sol
para termos mais um ano depois do
para corrigir a postura e
agradecer à coluna o ter-nos deixado sucumbir
só depois de tanto tempo inumerável e
tal
deixar as flores à vontade no quintal
para elas se conhecerem melhor e
se habituarem umas às outras
como nós nos habituamos
a quem nos tem ofendido
e agora vamos todos dar
o nosso melhor às vendas



Rui Costa

Fragmento #51 – Av. da Liberdade

Pouco tenho a constatar para além de que Lisboa de noite tem o céu azul – isso foi-me dito por um orgasmos Ferrari há muitos anos, se não nem reparava no assunto. O rio funciona como espelho e reflecte a luz na cidade, as calçadas são brancas até no escuro e encandeiam-me. Isso incide em alguns dos seus habitantes e pode-se observar em épocas mais agitadas como a estação do renascimento, bom, mas não vem ao caso, estou aqui sem dormir o que é óptimo, gosto da madrugada quando não prego olho; saí para um aniversário, os meus pêsames, estão todos mais velhos como eu e não os via já há 40 kg, um privilégio; fui à Mouraria, ao restaurante de um candidato bloquista para a junta de freguesia, tinha de ser um homem grave e afirmou: não espalhem por aí que isto existe, o meu bacalhau ganhou um prémio, está aqui pendurado, mas bacalhau só com marcação, nesta sala não entra toda a gente – gaita! Não entendo, eu nem consigo comer bacalhau, é muito fibroso, têm guardado para mim um pargo, privilégios gástricos, mas vingo-me no fim com uma mousse de chocolate com macieira – ou pensam que ando aqui brincar? Devagarinho entra, que me apertaram a drástica há pouco e desde aí vomito quase tudo, tenho que ruminar que nem uma vaca e fico envergonhada de comer em público, o que vale é que quando vomito consigo sair discretamente da mesa em direcção ao gregório. Bom, calho ao lado de um ex-Belas, lembro-me dele, mas são sempre tantos que os confundo; muito fechado o rapaz, bem tento que ele abra a boca sem ser para comer, mas é quase impossível; a aniversariante é demais, está mais nova com a idade e também ainda não escreveu a tese, é só rir; lembramo-nos do tio Leonel, um kantiano que a tratava por Emília – e chi patrão, agora na escola ela tem um chefe que é amiguinho do tio, eles propagam-se e reproduzem-se que nem coelhos; e conheço mais uma filósofa, só fala no Carlinhos, uma criança que a avisou de um teste com uma semana de antecedência – tem de ir fazer porque vai adorar! - Eu relato-lhe os diálogos com o mesmo Carlinhos no café, o homem sonhava em viver em Évora e eu alertava-o, não vá para dentro das muralhas, olhe que se torna uma alma penada; essa criança, um dia não resisti e disse-lhe preto no branco que escreveu um livro de poesia genial, mas os textos teóricos eram intragáveis – não se dizem estas coisas a um possível orientador, sou mesmo desbocada, mas ele era uma criança que nasceu na música, ainda não tinha chorado e já estava mergulhado naquilo, anunciou a morte de Ligeti em conferência pública – enganou-se, Ligeti fazia anos, o Bério é que tinha morrido. De qualquer modo, estava próximo, o aniversário é uma espécie de morte – Funerais? Rituais, calha-me uma historiadora na rifa, ela vai dizendo baixinho: os meus irmãos também são de história e o pessoal de história não sabe tudo, é mentira; adoro isso, ela sabe como a memória falha, como somos incompletos, eu também habito no tempo. Adormeço no Tejo Bar, pareceu-me pouco tempo, mas quando acordo avisam-me que dormi durante umas horas – nem dei por nada – não era motivo de preocupação, estou em casa nesta cidade; e apesar da metamorfose, tomam conta de mim, dão-me boleia porque sabem que até na Av. da Liberdade me posso perder – é já ali agora – habito esta cidade no tempo.

Maria João

COMPARAÇÕES

Não posso dizer que tenha deixado de fumar, prefiro antes sublinhar o esforço que tenho feito para não fumar desde o início do ano corrente. O que fumei do dia 1 de Janeiro de 2007 até hoje, provavelmente, não dava para encher um maço de tabaco. O problema é que adoro fumar e, estou certo disso, mais tarde ou mais cedo não resistirei a entrar num café e comprar uns cigarritos para acompanhar a imperial e os tremoços. A minha mulher fuma esporadicamente, já fumou mais. Cá em casa nenhuma visita está proibida de fumar, embora o façam geralmente, por cuidado para com as miúdas, ou no sótão, ou na varanda ou à janela. Nunca pedi a ninguém que o fizesse, são as pessoas que tomam essa iniciativa livremente. Às vezes, um amigo ou outro pergunta-me se pode fumar no carro. Respondo sempre que sim, que nem é preciso perguntar, não me incomoda nada e até agradeço. Sempre mato o vício pelo cheiro. Cortei no tabaco por razões de saúde. Sou asmático, os pulmões começaram a dar de si, a sinusite tornou-se insuportável. No entanto, quando leio contra-argumentos destes relativos às medidas restritivas do consumo de tabaco dá-me ganas de me tornar num fundamentalista antitabágico. Vamos lá a ver uma coisa. Não é por a cirrose hepática matar mais que o cancro do pulmão que o consumo de álcool nos locais públicos deve ser proibido, pois eu posso ingerir as pipas de vinho que eu bem entender que daí não vem mal ao mundo, não estou a prejudicar ninguém que não eu mesmo com o vinho que ingiro. O mesmo não se passa com o fumo do meu cigarro, que ao ser consumido pode, por caminhos ínvios, chegar aos pulmões de quem não tem nada que ver com a minha opção de fumar. O mesmo se passa com os doces e subsequentes mazelas provocadas pelo excesso de açúcar. Ao comer um bolo esse bolo só está a ser comido por mim e por mais ninguém. O exemplo dos acidentes de viação também não vinga, dado serem já bastante restritivas as leis no que ao assunto diz respeito. E é bom lembrar que as medidas antitabagistas em nada, pelo menos que eu saiba, beneficiam o Estado. Com o dinheirinho que o Estado vai buscar a um maço de cigarros, o contrário, ou seja, o estímulo ao consumo de tabaco seria, parece-me, muito mais do interesse do próprio Estado. Mas se eu estiver enganado façam o favor de me corrigir.

Apêndice do Apócrifo: aqui.

NOJO

A discussão que para aí vai sobre a criança desapreciada no Algarve mete-me nojo. Toda essa discussão me mete nojo. Podem acusar os media portugueses de subserviência, podem decretar o servilismo da polícia portuguesa, podem perder-se nas mais variadas conjecturas. E se fosse assim? E se fosse assado? Nada disso importa neste momento, porque neste momento só importa descobrir o paradeiro de uma criança desapreciada. Mas é curioso verificar que os génios para quem os outros são sempre os palonços do costume não resistem à mais típica e estampada atitude tuga: perante uma tragédia, preferem primeiro discutir os pormenores. Enfim, como não têm nada para resolver sempre se entretêm a discutir. Concedamos-lhes o beneplácito da inutilidade.
Adenda: A ler, em versão alternativa, três posts do Lutz Brückelmann: Da Paloncice, Madeleine: O dever público e a solidariedade privada, Xooo?. Acrescentar ainda que, para que fique bem claro, em nada me incomoda a discussão, o debate, a crítica, a especulação, etc. A minha questão é apenas esta: não é a altura certa para “tirar nabos da púcara”. Para já, acho muito bem que a polícia se esforce ao máximo para encontrar a criança. Se noutras alturas não se empenhou da mesma forma, isso é irrelevante neste momento. Quantos aos media, são os media de sempre (depois do que vi aquando da tragédia de Entre-os-Rios e durante os incêndios de 2003 e 2005 já nada me espanta). Só lhes dá crédito quem quer.
Adenda2: Mais um post do Lutz, desta feita a retractar-se. Aproveito ainda para felicitar Eduardo Sá e Isabel Stilwell, estejam lá onde estiverem, pela excelente intervenção de ontem no programa que mantêm na Antena 1. Tocaram na ferida, ao censurarem veementemente os sabichões da ética e da perfeição que, com a facilidade e ligeireza costumeiras, vêm para os media crucificar os pais da menina desaparecida, acusando-os de negligência, como se não fosse já bastante a dor que neste momento sofrem. Pelo menos, razões não temos para pensar o contrário.
Adenda3: Corrijo: uma hiena (Luís Villas-Boas acusa pais de negligência) e um abutre (João Miguel Tavares: A não ser que, em nome do supremo amor às boas maneiras, se faça como os paizinhos da pequena Madeleine: deixá-la em casa a dormir com os irmãos, que é para não incomodar o jantar.) Vergonha na cara é que já não há.

6.5.07

FAZER PENSAR

Faz-me pensar que façamos pensar a Luísa, o David Luz, o Paulo Kellerman e a Alice M. de Campos. E o Ricardo António Alves e SalsolaKali. Fico agradecido a todos pelas honrosas nomeações.

5.5.07

CÂNONE

Gostei muito deste texto de Eduardo Pitta sobre um livro de contos de Florbela Espanca recentemente publicado pelas Quasi. O texto saiu no Público com o título Nevrose Kitsch, expressão que Pitta parece aplicar mais em tom depreciativo que laudatório. Mesmo que não tenha sido essa a intenção, digo que é precisamente essa toada de nevrose kitsch que me agrada muito em Florbela. Mas eu sou suspeito, pois amo todos os poetas que se mataram. Principalmente se não fizerem questão de se sentar na primeira fila à hora do espectáculo.

4.5.07

IMAGEM

Sou daquele tipo de pessoas que veste o que tem mais à mão. Faço a barba semanalmente e há anos que o meu cabelo não vê um pente. Nunca passo a roupa a ferro, calço frequentemente meias rotas e não me nego a uns boxers de elástico relaxado. Muito raramente engraxo sapatos. Só faço questão de usar roupa escura, embora já me vá rendendo a t-shirts mais coloridas e, no verão, a calças de algodão doce. Em suma, sou muito cuidadoso com a minha imagem.

BRASIL


Fosse eu pintor ou músico
(Pobre de sons, embora! Pálido de cor, que importa!)
Sempre haveria alguém que me entendesse
Em qualquer canto incógnito do Mundo.
Sempre haveria alguém que me dissesse:
- Músico, vem! Entra, pintor! – e abrir-me-ia a porta.

Mas da palavra eu fiz a minha ferramenta.
Sim, da palavra, como os loucos.
E quanto sinto e penso unicamente o digo em português,
Quase em silêncio, porque somos poucos,
Quase em família. E só por uma vez.

Brasil, que bom saber
Que tu também, se por acaso, entre o rumor do mar,
A minha voz escutas, poderás dizer:
- Compreendi-te, irmão. Torna a falar.

Cabral do Nascimento

Cabral do Nascimento nasceu no Funchal a 22 de Março de 1897. Concluiu, em 1922, o curso de Direito na Universidade de Coimbra. Fundou a revista Ícaro (1919) com Américo Cortês Pinto, Alfredo Brochado e Luís Vieira de Castro. Traduziu para português autores importantes da literatura inglesa, norte-americana e francesa, tais como George Eliot, H. G. Wells, Henry James e Pearl S. Buck. Poeta, editor, colaborador de importantes jornais e revistas da sua época, foi também professor. Estreou-se em 1916 com As Três Princesas Mortas num Palácio em Ruínas, livro elogiado por Fernando Pessoa na revista Exílio. Em 1943 obteve o prémio Antero de Quental. Fixou residência em Lisboa em 1937, tendo aí falecido a 2 de Março de 1978.