31.3.06

Bloco de apontamentos # 10

Numa península no outro lado do oceano descobri a escrita mágica que experimentaste em minha casa – a caixa de pandora. Desenhaste no escuro de um pedaço de papel negro com a tinta luminosa. Disseste-me que dava um bom marcador de livros; pensaste numa finalidade para esse pedaço de papel que nunca me passaria pela cabeça. Na península espelho descobri os instrumentos de escrita, mas não soube o que fazer com os sonhos dos outros.
MJLF, Páginas de Halifax 1994, técnica mista s/ papel, 15x40cm

Maria João

HOMO

Penso. Verbo, sou uma voz sonora…
Abalo os mundos, pelo céu alastro…
Asa e fogo. Crepito e subo. Um astro
A arder, errante, pela noite fora.

Transcendo o infinito, Zoroastro,
Jesus ou Buda a procurar a aurora
Do dia eterno, enquanto a dor clamora:
- «Deus passou por aqui: segue-lhe o rastro…»

O soluço imortal! O grito amargo,
Vare embora os abismos, não me assombra
E arremesso-me além! mais alto! e ao largo!

E Deus? Como atingi-lo? Dilacero
A sombra onde se oculta e – ó desespero,
Ó voo inútil – não se acaba a sombra…

Cândido Guerreiro

Cândido Guerreiro nasceu em Alte, Algarve, no dia 3 de Dezembro de 1871. Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, foi notário em Loulé e Faro. Antes de haver concluído o curso em Coimbra, publicou alguns livros de versos. Dos seus livros, destacam-se especialmente os Sonetos (1904) e Às tuas Mãos Misericordiosas (1943). Como poeta inseria-se na corrente pós-simbolista integrado no grupo da Renascença Portuguesa. Muitos dos seus versos foram traduzidos em italiano, francês e alemão e recolhidos em várias antologias nacionais e estrangeiras. Foi presidente da Câmara Municipal de Loulé. Faleceu no dia 11 de Abril de 1953. »

Há dois tipos de pessoas

As que começam por baixo e acabam por cima; as que começam por cima e acabam por baixo. Esta lei aplica-se a tudo na vida.

30.3.06

Se algum dia te suicidares, que o faças lenta e respeitosamente.

THIS IS NOT A LOVE SONG

para a blimunda

na minha imaginação
és uma pica
do tamanho
do mundo
só por isso
já valeu
a pena
nunca te ter conhecido.


Rui Costa

há silêncios, motocicletas
nesta pequena rua
desprezível. prudência,

um sangue dilatado,
mas de prata. e deus,
o seu olhar

sobre os apêndices da alma.

José Carlos Soares

José Carlos Soares nasceu em Leça da Palmeira no dia 14 de Maio de 1951. Publicou, entre outros, os livros Polaroid (1983) e Algia (1985). Representado na antologia Sião, da qual foram organizadores os poetas Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião, publicou alguns poemas, mais recentemente, na revista Telhados de Vidro (n.5, Novembro de 2005). »

Bloco de apontamentos # 9

MJLF, Paisagem, 1991: procurem mar, ar e ir.
Maria João


Juan Hidalgo
Mujer y flor, 1969

29.3.06

Bloco de apontamentos # 8

Viste a seara escrita nas paredes da minha casa. Era o vale que fica ao lado da cidade branca das muralhas. As pedras das palavras planície. Aparição. As pedras que escrevem no chão. Onde nos encontrámos pedras molhadas. O poeta diz que a vida é a arte do encontro quando há tanto desencontro pela vida.

MJLF, Páginas de Diário 1992, técnica mista s/papel, 10x26cm
Maria João

FOTOGRAFIAS VAGAMENTE DESFOCADAS

Uma névoa esconde o sorriso
do noivo, as lágrimas da irmã,
a chuva de arroz na escadaria.
Ficam só os contornos maiores,
a fachada da catedral com os
vitrais de há muitos séculos.
Na verdade a névoa não esconde,
antes protege. A névoa é um filtro
involuntário, um pudor nascido
do acaso e da imperícia.
Talvez as fotografias vagamente
desfocadas sejam as mais belas,
porque são as mais reais (imitam
a vida e a vida é imperfeita, pouco
nítida).

José Mário Silva

José Mário Silva nasceu em Paris em 1972. É jornalista desde 1993, embora a sua formação académica seja em Biologia. Autor de Nuvens & Labirintos, publicado em 2001 pela Gótica, ao qual foi atribuído o Prémio Literário Cidade de Almada, tem poemas dispersos por várias revistas e colectâneas. É autor dos weblogs Invenção de Morel, letra minúsucla, Bibliotecário de Babel.

PROVINCIANISMO

Em Lisboa as pessoas gozam com o meu sotaque à Porto e riem-se e eu também me rio.

No Porto as pessoas “finas” gozam com o meu sotaque e logo pedem desculpa, e eu ensaio um sorriso que não chega a ser.

Rui Costa

28.3.06

custa-me tanto acreditar
quanto me custa creditar

[John Latham]

Para o Rui Gil, por causa do Fahrenheit 451

Continuaremos a incendiar todas as bibliotecas até que não sobre um único livro, uma única palavra impressa, para contar dos relógios que pararam. Se tudo correr como previsto, seremos acusados de pirómanos. Provaremos ao mundo que os problemas não se resolvem quando atacados na raiz. É partindo os ramos às árvores, ateando fogueiras, que eles expirarão. Já escolhi o fato para a minha primeira entrevista, já treinei os gestos frente ao espelho, estou pronto. Hão-de as chamas chegar ao céu. E Deus saltará a fogueira, tal como nós fazíamos no dia de Santo António.

MANHÃ

As estátuas sem mim não podem mover os braços
Minhas antigas namoradas sem mim não podem amar seus maridos
Muitos versos sem mim não poderão existir.

É inútil deter as aparições da musa
É difícil não amar a vida
Mesmo quando explorado pelos outros homens
É absurdo achar mais realidade na lei que nas estrelas
Sou poeta irrevogavelmente.

Murilo Mendes

Murilo Mendes nasceu no dia 13 de Maio de 1901, em Juiz Fora, Minas Gerais. Foi arquivista no Ministério da Fazenda e funcionário do Banco Mercantil. Nesse período, publicou poemas em revistas modernistas. O seu primeiro livro, Poemas, apareceu em 1930. Em 1934 Murilo Mendes converteu-se ao catolicismo. Tuberculoso, foi internado num sanatório na região de Petrópolis. Cumpre missão cultural na Europa, proferindo diversas conferências e mudando-se para a Itália em 1957, onde se torna professor de Cultura Brasileira na Universidade de Roma. Em 1972, recebeu o prémio internacional de poesia Etna-Taormina. Morreu em Lisboa, no dia 13 de Agosto de 1975.

A escola pós-moderna

O político pós-moderno passa a vida a dizer mal dos políticos. O professor pós-moderno passa as aulas a ferro. O poeta pós-moderno só escreve poemas para dizer mal dos poetas seus contemporâneos. O sapateiro pós-moderno passa a vida a queixar-se dos pés. O médico pós-moderno despede-se sempre dos pacientes com um «haja saúde» deslavado. O cidadão pós-moderno acha que a cidadania se resume na frase «isto é tudo uma pouca-vergonha». O bloguista pós-moderno acaba todos os posts com um etc. Este é um post pós-moderno sobre a escola pós-moderna.

Guided by Words: blue

Agora que perguntas, nem sei bem porquê “azul”, não, não teve nada a ver, é apenas uma cor, também podia ter sido branco ou vermelho, ou cor de burro quando foge, se é que o burro deixa cor, coisa mais estapafúrdica, sim também temos uma hora estapafúrdica com a música governada por leds em contagem decrescente – achas que a música serve para alguma coisa? - não sei, a mim torna-me mais humano, - mas toda a música, mesmo a estapafúrdica? – sim, parece-me que sim, toda a música. Não me podes contar nada com piada? (1. voz natural da cria das aves. = PIADO.) Posso, o que te vou contar teve piada (2. dito espirituoso. = BRINCADEIRA, GRAÇA). Ao fundo da cabine foi projectado um vídeo e durante quatro horas a sósia da Ginger Rogers deu à perna como uma louca. – Achas que aceleraram a Ginger Rogers? – Acho, acho que era demasiado rápido, como se as pernas estivessem possuídas por uma vertigem, mas a piada (3. Qualidade da pessoa ou da pessoa que diverte, que é engraçada, que faz rir. = GRAÇA, ESPIRITO) resultava da música porque o Ian Dury cantava “Spasticus (Autisticus)”, o Ian Dury tinha uma paralisia, era espástico, assim meio hirto, mexia o corpo como um bloco, um corpo puxado por elásticos e a sósia da Ginger a dançar toda ligeira e o Ian Dury a cantar “I'm spasticus, I'm spasticus I'm spasticus autisticus”. - E achas que isso tem alguma piada? (Característica de quem ou daquilo que desperta algum interesse. = ATRACTIVO, GRAÇA) - Não sei, não era bem piada (Aum. piadão. Dim. Piadinha), era apenas como se tudo tivesse um segundo sentido triste e ridículo. - Isso não tem nada a ver com aquele bilhete de que me tinhas falado? Qual bilhete? – Aquele que dizia: “Mete Tiga, mete Cure”. – Não, não tem nada a ver. – Já vos pediram algum disco? – Já, ontem pediram rock. – E vocês ? – Primeiro fizemo-nos caros e pusemos um disco estapafúrdico. E ele? – O gajo não gostou, mas depois levou com Sex Pistols. – Boa, fizeram bem. Um dj não é uma jukebox. – Pois não. – Gostas da palavra dj? – Não, mas gosto da palavra jukebox. – Podias substituir a palavra dj por jukebox. – Podia, mas teria de ser uma jukebox caprichosa, só tocava o que lhe apetecia, com ou sem moeda. Tu seleccionavas o “Love Me Tender” e saía-te o “Rita, Hot Pussy I Hate You”. – Ias levar muitos pontapés. Olha mas podia chamar-se jukebox estapafúrdica. – Podia, gosto dessas duas palavras “jukebox estapafúrdica”. - Gostas de palavras? – Às vezes gosto. – Achas que as máquinas têm vontade própria? – Não, acho que não. – Porque é que perguntas isso agora? – Não sei, lembrei-me, apeteceu-me, nem tudo tem que ter sentido. – Tens razão, é como na música. Àquela hora “A Feira de Acari” parecia ser despropositada, uma coisa estranha. - Como o Ian Dury e a sósia da Ginger Rogers? – Sim, como o Ian Dury e a sósia da Ginger Rogers. – Achas que vai continuar a chover por muitos dias? – Não sei, gostava que isso não acontecesse. – Achas a chuva parecida com a música? – Nunca pensei nisso, talvez possam ser muito parecidas. – Achas que podem ser sósias?

# Quinteto TatiUma para o caminho
# Dinosaur LYour bean 1
# Lizzy MercierWawa
# Chico Science & Nação ZumbiRisoflora
# SoulwaxE-Talking
# LCD SoundsystemTribulations
# ToastGet tender
# Ian DurySex and drugs and rock n`roll + Spasticus (autisticus)
# força do RapFeira de Acari
# PeachesFuck pain away
# Domenico + 2Telepatia
# Sven LibaekShark attack theme
# TigaGood as gold
# Lee DorseyWho`s gonna help brother gett further
# Dollis, Bo & The Wild MagnoliaHanda Wanda
# Grupo ArembepeIalá
# Jorge BenComanche
# Ruy MingasMinha infância

Palavra passe da quarta-feira santa: light.
Luis Germano Fonseca

27.3.06

Bloco de apontamentos # 7

Voltei para partir pedra nas palavras; para o verão amarelo terracota; calor de fornos e a argila nas mãos; feridas nas unhas ao lado das pedras distantes; terra que já foi pedra no tempo a tratar disso. A natureza em solos de xistos por camadas nas minhas mãos a escrever. Cidades invisíveis na terra templo nas pedras escrevendo no tempo. E a escrita a percorrer o labirinto das ruas.

MJLF, Escada, 1996, maquete em terracota.
Maria João

ARFE COMTUSA, digo, olha que se lixe (1)

Tenho acompanhado as discussões ou exposições que têm aparecido em vários blogs sobre poesia, arte, o que são ou podem ser, os seus limites ou falta deles, etc.

Um ponto em que grande parte das pessoas parece concordar, é este:

- A obra de arte deve comover, A obra de arte comove, A obra de arte não nos pode deixar indiferentes (…porque se deixa não é obra de arte), A obra de arte provoca um estremecimento, que pode surgir em forma de choque ao nível do discurso, e inúmeras outras formulações e derivações desta ideia.

Mas se é verdade que à primeira vista esta ideia parece razoável a muito boa gente, a facilidade começa a fender-se quando se puxa um pouco mais. Posso então perguntar a uma pessoa:

- És capaz de reconhecer como arte uma obra que não te comove?

Responda-se.

Mas consigo apostar que as respostas, ou semi-respostas, ou as dúvidas, serão muito reveladoras. Reveladores laterais de formas de tratar o mundo, claro (não é a resposta que interessa mas a forma da resposta, porque aqui só a forma revela).

Imaginem que uma das respostas à pergunta era:

- Esse poema que me mostras até pode ser arte ou poesia ou lá o que lhe queiras chamar, mas a mim não me comove e não me interessa (pelo menos uma das pessoas que respondem assim começa por dizer sei lá pá mas quando irritada suficientemente explica que aquele poema pode ser arte para o autor ou a mãe dele mas que para ele ou ela não é).

Parece que temos aqui a intervir a questão do gosto, da(s) idiossincrasia(s) (que palavra idiota) pessoais. Pergunto ainda:

- Se algumas canções pimba me comovem, posso considerá-las obras de arte - ainda que para isso tenha que pôr a acento no lado da emoção, da comoção, em detrimento do talento ou virtuosismo do autor plasmados na obra ?

Repare-se que não se trata apenas de rótulos mas de toda uma vontade de compreender e usufruir o mundo (se eu digo e penso que aquele poema não é arte, não é poesia, as probabilidades de eu ler o livro em que ele está contido, ou de o ler com atenção, diminuem; se me responderem podes chamar arte ao que te apetecer, estão a fugir à questão; ah! e sei bem que algumas pessoas se comovem doidamente diante de um belo bife – mais ou menos artístico).

Pode pôr-se a questão do consenso:

- Será que é possível criar um consenso interessado (próximo ou coincidente com a admiração) através de formas de empatizar (o mundo, a obra) distintas?

Mas uma coisa é verdade. A estas perguntas generalistas é (parece) mais fácil responder: Sim, sim, podemos, podemos!!

Quando é assim é preciso voltar ao Sr. Concreto:

- Consegues admirar uma obra de arte de que não gostes? (que pergunta mal feita…)

Ou então, pegando no que vai atrás:

- Será possível admirarmos – como obra de arte; considerando-a uma obra de arte – uma obra com a qual não empatizamos ou, que não nos comove? E será isso desejável, e porquê?

Rui Costa

26.3.06

Maravilhoso título, maravilhoso

Vem no Diário de Notícias da passada sexta-feira: «Bancada do PS avança com aborto a 15 de Setembro». Bastaria acrescentar «lei do» antes de aborto e tudo seria diferente. Mas não. O jornalista que assina a peça, Francisco Almeida Leite, preferiu este exercício de subtileza. A gente, que é boa gente portuguesa, faz como a maioria: fica pelas gordas. No que dá? Lá para Setembro haverá remodelações na bancada parlamentar do PS? O PS vai acabar em Setembro? Maria de Belém Roseira Martins Coelho Henriques de Pina será a nova líder da bancada parlamentar do PS? Ou será antes Miguel Bernardo Ginestal Machado Monteiro Albuquerque? Não sabemos. Cada bom português, desses que ficam pelas gordas, tal como eu, que puxe pela sua imaginação. Confesso que a primeira coisa que me veio à ideia foi o desejado, ambicionado, tanto quanto disfarçado, desmancho do deputado Manuel Alegre de Melo Duarte. A vingança apronta-se lá para meados de Setembro, quando a malta, amainada pelas férias, nem sequer der pela falta do dito. Por outro lado, bem, por outro lado, o artigo vem acompanhado de uma fotografia. Por baixo daquele título, logo ali à mão, uma fotografia de Manuel Maria Carrilho, ao centro, António Costa, à esquerda, e Alberto Martins, à direita. Há ainda um cidadão obscuro, sinistro, a espreitar por cima do ombro de António Costa. É o carrasco. Só pode ser o carrasco. É o homem das mãos sujas, o enfermeiro, o abortador. Afinal António Costa e Alberto Martins preparam-se para fazer a folha a Carrilho. Está explicada a elipse do título. Maravilhoso e poético título, maravilhoso. Dos tais que perderia toda a tensão e densidade se assumisse a sua verdadeira forma: «Bancada do PS avança com aborto de Carrilho a 15 de Setembro». Afinal este é um título-exemplo que traz ao jornalismo a concisão elíptica da melhor poesia portuguesa contemporânea.

Coisas que fazem espécie

Na crónica que assina semanalmente no Expresso, Miguel Sousa Tavares afirma que lhe faz espécie «que os agricultores (tal como os médicos, os juízes ou os professores)» exijam a demissão de um ministro quando não gostam dele. A razão para tanta espécie feita é o facto, segundo o reputado fazedor de opinião, de o Governo ter sido escolhido em eleições. Como tal, não poderá ser remodelado na rua por umas centenas de pessoas. A mim o que faz espécie é que Miguel Sousa Tavares diga que um Governo é escolhido em eleições. Segundo julgo saber, o que se vota é um programa de Governo. Mas esta afirmação deve levar-nos mais longe. A partir de hoje, sempre que Miguel Sousa Tavares (tal como os agricultores, os médicos, os juízes ou os professores e, já agora, os jornalistas) pedir a demissão de um ministro, a gente vai chapar-lhe com este argumento nas fuças: «Meu, o Governo foi escolhido em eleições. Não ‘tás a ver, pá?! Não é agora um fazedor de opinião qualquer que vai remodelar um Governo legitimamente eleito!»

É uma pergunta difícil, mas tem de ser feita:

Alguém leu ontem o olhar de José Júdice, no programa O Eixo do Mal, após a afirmação convicta de que a implicação de altos dirigentes do Partido Socialista no processo Casa Pia era uma cabala para retaliar Ferro Rodrigues por este ter em tempos chamado patetas a certas e determinadas pessoas de certos e determinados partidos?

25.3.06

DIFÍCIL MEDICINA

Ao curar doenças é preciso usar venenos
uma palavra
não quando o sim está de cama.
Pequenas concessões enfraquecem a voz toda
e se um poeta canta esperemos mais um ovo.

Bom para gemadas. Mas há que juntar veneno.
Beba-se a mistura como um álcool que nos queima
e vai matar da cura. O
não é como um álcool
em verdade envenenante – o século tresanda!

Basta de alcoólicos. Queremo-nos curados
bons a olhar de novo para a esfinge interrogante.
Havemos de beber outra vez de um vinho puro
nós e as palavras – que elas amam não saber

de
sins e de gemadas, de nãos e de venenos.

Carlos Poças Falcão

Carlos Poças Falcão nasceu em Guimarães em 1951. Licenciou-se em Direito pela Universidade de Coimbra em 1976. Exerceu advocacia durante algum tempo, acabando por dedicar-se à docência e à escrita. Estreou-se na poesia em 1987 com o livro O número perfeito, com o qual havia obtido, em 1984, o prémio revelação da APE. Com O invisível simples, de 1988, obteve o prémio Vítor Matos e Sá, atribuído pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Com colaboração dispersa por várias revistas (Limiar, Via latina, Orpheu 4, Phala, Cadernos do Tâmega, Telhados de Vidro), Carlos Poças Falcão é um dos mais singulares poetas portugueses da sua geração.

Bloco de apontamentos # 6

A noite é fria neste tempo não criado, lentamente. O tempo apenas se inventa no som, porque o frio é um dado que não te lembraste. O som frio do piano preto e branco no norte do planeta. O tempo afasta-se como o mar ao longe. Um tempo distante como as ondas do mar que vimos. Ao longe. Temo esse tempo porque o meu não é assim. Tu querias avançar. Lá estava o mar que não era o meu. O lá outra vês.

MJLF, As Cidades Invisíveis, 1997.
Maria João

23.3.06

No tememos a las ruinas.

CONSELHO AOS CRÍTICOS DO NOVO SÉCULO

Admit nothing
Blame everyone
Be bitter

Barbara Kruger

Se queres parecer inteligente,
desdenha de quem escreve coisas simples
e desconfia, desconfia sempre
dos sentimentos, das convicções.

Diz mal da tua época,
procura dar a tudo um ar difícil
e cita alguns autores que ninguém leu.

Se queres que te respeitem,
reserva a admiração e o elogio
pra certos mortos bem escolhidos,
de preferência estrangeiros,
e acima de tudo
não caias nunca na vulgaridade
de ser compreendido pelos que te lerem.

Fernando Pinto do Amaral

Fernando Pinto do Amaral nasceu no dia 12 de Maio de 1960 em Lisboa. Frequentou a Faculdade de Medicina, desistindo a meio do curso para optar mais tarde pelas Letras. É, desde 1987, professor na Faculdade de Letras de Lisboa. Colaborou em revistas como Ler, A Phala, Colóquio/Letras e o jornal Público. É autor de uma tradução de As Flores do Mal, de Baudelaire, que lhe valeu o Prémio Pen Club e o Prémio da Associação Portuguesa de Tradutores. Traduziu também outros poetas, como Verlaine e Jorge Luis Borges, organizou diversas edições e publicou dois livros de ensaio literário. Publicou cinco livros de poesia, tendo reunido os primeiros quatro no volume Poesia Reunida (2000). Estreou-se com Acedia, em 1990.

22.3.06

Bloco de apontamentos # 5

Na cidade maldita escrevi palavras de água; perdi as palavras que não aguentava ler; rasguei-as. Venho da muralha do centro estrada romana por baixo do arco porta; resta uma única porta sorte. Tu fora delas no centro também largo das portas da fonte; outras portas, outro centro em torno das minhas muralhas rodeando. Já não aguento as palavras a ressoarem na cabeça. A circularem. Rasgo o tempo silencioso onde não consegui usar as palavras.
Babilónia
MJLF, Babilónia, 1996
barro s/madeira, 80x75x15cm
Maria João

Reflexões cépticas

A liberdade ainda te piscou o olho
- só umas três ou quatro vezes, não penses –
com dulcíssimas promessas que nunca se cumpriram.
Aquele dia na feira sem os teus pais
inaugurou o engano:
um cândido fragor entre a multidão:
consagrou-o um café a meio da tarde
durante as horas de aulas.
O que veio depois já tu sabes:
a liberdade não se consome
e, como num comboio de corda,
aproxima-se incitante e mentirosa
com promessas calorosas que vêm e remetem
para promessas calorosas que remetem
para promessas calorosas.
Tradução de José Colaço Barreiros.

Inmaculada Moreno
Inmaculada Moreno nasceu em 1960 em Puerto de santa Maria (Cádiz). Professora de Filologia Hispânica, deu-se a conhecer com a obra Son los Rios, vencedora do prémio Ciudad de San Fernando, em 1998. Representada em várias obras colectivas, tais como Ellas son la tierra (2001) ou Madrid 11-M (2004), possui igualmente colaboração espalhada por diversas revistas literárias. São disso exemplo La Ronda del Libro e Nadie parecia. Participou no n.º 2, de Maio de 1998, da revista de literatura Canal.

21.3.06

Ao cuidado do peixe-frade:

Há peixeiras cultas e peixeiras incultas. As primeiras vendem peixe.

Que poderei do mundo já querer,
que naquilo em que pus tamanho amor,
não vi senão desgosto e desamor,
e morte, enfim; que mais não pode ser!

Pois vida me não farta de viver,
pois já sei que não mata grande dor,
se cousa há que mágoa dê maior,
eu a verei, que tudo posso ver.

A morte, a meu pesar, me assegurou
de quanto mal me vinha; já perdi
o que perder o medo me ensinou.

Na vida desamor sòmente vi,
Na morte a grande dor que me ficou:
Parece que para isto só nasci!

Luís Vaz de Camões

Camões nasceu muito provavelmente em 1524, embora pouco se saiba certo sobre sua vida. Viveu muito tempo em Lisboa e residiu em Coimbra. Seguindo a carreira das armas, bateu-se em Ceuta – onde perdeu o olho direito. Célebre pelas brigas e valentia, tinha a alcunha de Trinca-fortes. Teve na vida e na morte um destino doloroso e infamado. Regressado de Ceuta, levou uma vida de prazeres, de rixas e de penúria. Corre a fama de que sofreu vários desterros por castigo: no Ribatejo, em Ceuta e, durante a sua estada em Goa, em Ternate. Mas a única pena que se sabe ao certo que lhe aplicaram foi a de 4.000 reais, quando, em 1553, feriu um homem do Paço. É natural que a partida para a Índia tenha relação com a vida acidentada. Estando na Índia, viajou também pelas Molucas. Nas costas da Indochina naufragou junto da foz do Mecon, pondo em risco o manuscrito de Os Lusíadas. Vivendo muito tempo em Goa, regressou a Portugal em 1556. Depois de uma longa estadia em Moçambique, em 1569 partiu para Lisboa. A primeira edição de Os Lusíadas saiu em 1572. Camões morreu 8 anos depois. (segundo Vitorino Nemésio)

As elipses são como os figos.
Só os grandes lhes chegam.

Bloco de apontamentos # 4

Sempre me senti estrangeira no mundo, sou uma alma errante que está aqui de passagem, com alguns portos de abrigo – os amigos sobretudo são os abrigos, são os locais onde estou em casa – mas são poucos os abrigos nos quais me sinto assim. Vejo-me sempre de passagem por onde passo, mesmo nos locais onde habito; é uma sensação estranha, nem sempre confortável, não é bem por estar deslocada, é mais por ficar sempre com a impressão que tudo é efémero, tudo tem o seu tempo próprio, hoje estou aqui, mas amanhã vou para outro lugar.
Sem Título
MJLF, S/título, 1998


Maria João

O UNIVERSO SENSUAL

João Habitualmente, Os Animais Antigos, Objecto Cardíaco, Janeiro de 2006
“Animais antigos”, de João Habitualmente, recentemente lançado pela novíssima Objecto Cardíaco. Há muito neste livro.

Há a memória, primeiros versos onde se anuncia a predisposição de sempre: a bicicleta que o levou ao sol, à praia, ao sal, às raparigas. O movimento da bicicleta é o de um ser curioso e para este o único caminho é o que o leva às coisas. Esse movimento é pessoal e constitui o mundo, nenhum olhar é passivo. A bicicleta é uma metáfora da vida. Essa viagem é “astral” porque tudo quer. E este olhar é táctil, feito da atenção que toca as coisas e as distingue e quando merecem se demora nelas: “Seria vulgar falar duns olhos/ se não se desse o caso de serem os teus”. Tudo conta e nada se pré-exclui: “A frase mais linda pode ser irrisória”. A fruição pode deter-se, como em quem sabe a paciência: “Vou aprender a espera/…/E esperar o dia em que ergas a casa comigo”. Cria-se movimento imóvel, paradoxalmente: “Fixo-te ao meu desejo:/não partes nem chegas/…/Acabou-se o antes e o depois”. Conhecer nem sempre é fácil – sendo viagem, é tão difícil como partir: há “Pássaros que não migram/só para não sofrerem a partida”. Ou assim: “Primeiro, tudo são carícias/…/Depois abre-se o tempo em abismo.”

A aldeia. João Habitualmente escreve da aldeia “o abismo do seu tempo”, é aí que as coisas se mexem e não saem do lugar, o “lugar onde os cães se afastam por profissão”. A aldeia é também o lugar mítico onde a sensualidade se realiza na sua impossibilidade, quer dizer: “as raparigas da aldeia” estão lá, ou estiveram, ou “eu” estive lá e sei que elas existem mas se elas (ainda) existem é por causa do poema. Este desejo não é o de Lacan (o preenchimento de uma falta), é mais do que isso: somos “desiring-machines” (Deleuze) e é do puro movimento do sujeito que se trata. Não perdemos nada, nada nos falta. No entanto desejamos – somos a própria matéria do desejo – e escrevemos, o texto é agora o lugar do conhecimento (também em sentido bíblico).

E mais a ironia. Mas ainda o desejo - Porque o desejo é tudo, também é enormemente inconsequente ou até fútil – não há um “algo” que o satisfaça. Não há - por isso é que é desejo. E a ironia é isso que nos mostra em “Plano estratégico”. “Ele” trabalhando longamente em seu plano de sedução, o tal que o levaria a “Tirar-te a blusa/passar rente à seda do púbis”. Mas libertando-a mesmo sem preparar a bebida: “já não bebo/e se bebesse não era contigo/agora que já te bebi/Tinha para ti um plano em que trabalhei longamente/mas já o perdi”. Não é o facto que interessa, é a construção que dele fazemos. O contexto, as ligações que cada cérebro estabelece para cada lado em que vivemos. Projectamo-nos, sempre, antes e depois, nenhuma resposta é de um só estímulo e toda a causalidade é “nonsense”: “não te quero a nudez/só quero despir-te”.

Há o humor, com trocadilho temático de menina à janela em “Canção alentejana” (menina que afinal não estava lá), mais vocabular em “Ideias fixas” (mas sempre este recurso estilístico mais contido do que em “Notícias do Pensamento Desconexo”, livro anterior da Edições Mortas), e o pastiche de “Mosaico”, colagem de versos de autores como Pessoa ou Eugénio de Andrade, por exemplo assim: “E já te disse: os poetas estão gastos./Trata-os como a fedelhos/vai-lhes ao cu, dá-lhes conselhos/manda-os apanhar chuva oblíqua.”

Não se trata de uma linguagem “legível” à luz de debates que ao purismo (puritanismo?) da palavra oponham a “poesia da experiência”. Há lirismo e metáfora mas também há o que eu chamaria a épica do concreto. É a potente alegria de saber que tudo existe em sua pequena glória sempre que se (re)vive o corpo das coisas, se evoca num texto a sensualidade do mundo, e é então que o olhar ilumina e nós sabemos o lugar ainda cheio destes animais antigos. Comprem o livro e leiam pérolas como esta:


AS RAPARIGAS DA ALDEIA

Tenho sonhado às vezes
com as coradas raparigas da aldeia
trazem um leve cheiro à palha
e preenchem-me a necessidade
de mamas abundantes.
Convidam-me
mesmo quando olham para o chão

Tenho a impressão
de que fodem como animais antigos:
na lentidão de enormes carapaças
num fragor de pedras
cravando espinhos ao rebolar

Preferem a luz turva
do fim do dia
retornam ao povoado discretas
na companhia dos bois
e um botão a menos na blusa

Gosto das raparigas da aldeia.
Aos domingos de manhã
varrem o lar e dão lustro às panelas
de tarde andam em ranchos
dão gritinhos, fogem para o mato

Quem me dera pôr-me nelas!


Rui Costa

20.3.06

Bloco de apontamentos # 3

agora só nos encontramos em sonhos
sombra da minha mão seguindo aqui
palavras passos como me pediste
sempre a tua mão em casa na minha
a escrever palavras de água no tempo
tocando o silêncio da noite até nos
encontrarmos finalmente para sempre

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MJLF, Página de Meu mar, 2005
técnica mista sobre papel, 15x20cm
Maria João

19.3.06

Começar de novo nunca é completamente verdadeiro.*

Renascer involuntariamente porque assim o tempo determinou. Cumprir a morte no dever de ir vivendo. Por vezes, o tempo prega-nos partidas, joga-nos contra a evidência de uma natureza que pretenderíamos diferente. Para a cada raiz que mergulha na terra, radiografarmos os músculos e retomarmos o andamento - rumo a um universo que sabemos inevitável, mas por atalhos que se pedem desbravados. A nós, caminhantes, restará a decisão pelo itinerário que mais nos convir. Pouco mais. O suficiente.

* Título desavergonhadamente usurpado aqui.

Conselho de mãe:


Não querias ser como o teu pai.

N.R.: A redacção resolveu publicar este poema por considerá-lo um exemplo perfeito de poesia tensa, concisa, densa, elíptica. É, sem dúvida, um exemplar perfeito de poesia hiperrealista, ainda que altíssimamente subjectiva. Note-se-lhe também a densidade imagética e a capacidade de risco, consolidada na exemplaridade de uma tensão extraordinariamente quotidiana. Este é, de facto, um poema-exemplo que traz à poesia o presente assim como o presente à poesia. Terei muito gosto em que tenham gosto neste poema.

Bloco de apontamentos # 2

Volto às páginas no tempo com a claridade de um vinho frutado, que me anunciam ao longe uma suite para violoncelo de Bach. Aqui mergulho numa silenciosa pausa, após o tempo me escorregar dos dedos na forma de uma cadeira vazia ao luar; um nocturno de Chopin tocou piano na planície.
Maria João
MJLF, Páginas de Diário 1992
técnica mista s/ papel, 10x26cm
Maria João

INMACULADA LUNA

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Inmaculada Luna, Rui Costa, Sara Monteiro, José Carlos Barros, Josefa Virella


SUEÑO DE MENTIRA

Me hacía la dormida.
No lo estaba.
Me lo hacía.
No había nada fuera que a mí me interesase.
Te oí llegar y me segui haciendo la dormida.
Oí que te morías a mi lado y no movi ni un dedo.
Me preguntabas algo o me implorabas
y pensé que ya habría otros que lo resolverían.
Sé que estoy en ausencia,
que soy un cauce,
que a veces duelo,
que puedo ser febril.
Pero ahora tengo sueño de mentira,
de ojos pegados con loctite.
No tengo implicación ni por recuerdos,
soy una irresponsabilidad color cansancio.
Me hacía la dormida mientras me acariciabas
y, poco a poco,
cambiaba de postura para alejarme de tu miedo.
Sé que no quiero ahora despertarme
ni atenerme a las normas
y sé que estoy haciéndome de humo,
saliendo por debajo de las puertas
y sé que te das cuenta.
No quiero hacerte heridas.

Me estoy marchando un rato para siempre.


INMACULADA LUNA
(“Nada para cenar”, El Árbol Espiral, 2005)
Rui Costa

18.3.06

Segunda lei abrupta sobre a pantominice na blogolândia:

Contrapor um comentário chamando a atenção para os erros ortográficos que este contenha é como contestar comportamentos apontando os defeitos físicos daquele que é contestado.

FUNDO DE DESEMPREGO

Uma borboleta, um colar de coral
o rapaz não quer saber de competência.
Está por agora aqui
amanhã pode sentar-se noutro lado
não tem opinião sobre coisa nenhuma
e nada nem ninguém o desconvocam
do seu concílio com a indiferença.
Veio de Colónia e na volta é semelhante
suprimiu hamburguers
com pescadores ao lado.
O resvale da tarde sobre rochas
não lhe prega na alma
precipícios.
Um ocaso onde há melancolia
desperta-lhe a contra-gosto
recessões
e perde tempo a descobrir ao sol
a loura rapariga inanimada
enquanto apalpa
na bolsinha a erva.
No outro dia é com resignação
que se saúdam
e a tarde nos contunde
mineral.

Fátima Maldonado

Fátima Maldonado nasceu em 1941. Jornalista e crítica literária, fez a sua estreia como poeta em 1980 com Cidades Indefesas. É autora, entre outros, dos livros Cidades Indefesas (Centelha), Presságios (Presença), Selo Selvagem (Gota d´Água), Cadeias de Transmissão (Frenesi) e do álbum sobre os Açores, Lava de Espera, em colaboração com o fotógrafo António Pedro Ferreira. Na sua poesia, encontramos uma temática explicitamente erótica e uma condição feminina claramente assumida que se conjugam com o mundo quotidiano e a evocação da infância e da adolescência. »

Antonio Saura
Furious strip-tease II

17.3.06

Bloco de apontamentos # 1

A cidade alberga uma confusão de vozes que se funde no metal de um livro sempre aberto. O livro suspende a cidade labiríntica no tempo, numa escrita de ruas ao entardecer. As letras são as casas das palavras que encaixam nas veias da cidade, onde as vozes habitam escritas quando o sol mergulha em sangue.

MJLF, O livro de Babel, 1997
acrílico s/ escultura em fibra de vidro, 35x60x10cm
Maria João

Neva em Ushuaia

Neva em Ushuaia por alguns instantes. São os primeiros
sinais do Outono, vindos de El Martial ao fim da tarde.
Os poetas locais compõem os versos adequados à
circunstância
- o Diário del fin del Mundo publicará depois sonetos, odes,
vilancetes e até uma milonga irregular sobre a brancura
que emudece diante do canal. Para isso serve a poesia,
que é mais útil nas pequenas cidades: ilustra os museus,
os jardins,
estátuas de almirantes, exploradores, viajantes da Antártida,

almocreves heróicos que atravessaram o estreito de Magalhães
para chegarem a Ushuaia. Neva em Ushuaia e comovo-me
nas ruas molhadas diante das livrarias e das lojas de tabacos,
e digo o nome dos meus filhos, Maria, Manuel, Francisco,
subo as escadarias, vejo a neve diante dos museus, das portas,
vejo os caminhantes que se abrigam nos cafés e olham
com surpresa a primeira neve do Outono. Mudo os meus versos
e empobreço-os, tocados pela primeira neve, a primeira neve

do Outono que cai sobre o fim do mundo, cai sobre a baía,
cai sobre o glaciar, cai sobre a mudez mais fria da pedra,
sobre as montanhas escuras, e nada resta do primeiro verso,
nada fica da primeira palavra, como uma ventania do sul.

Francisco José Viegas

Francisco José Viegas nasceu a 14 de Março de 1962 em Vila Nova de Foz Côa. Foi professor universitário e jornalista (nomeadamente director das revistas LER e Grande Reportagem). Actualmente é escritor e colaborador freelancer de vários jornais e revistas (entre os quais, Jornal de Notícias; Elle; LER; Grande Reportagem; Volta ao Mundo), trabalhando também para a rádio (Antena 1) e para a televisão (RTP, onde mantém o programa Livro Aberto, depois de ter sido autor e apresentador de Escrita em Dia, Ler para Crer, Primeira Página, Avenida Brasil, Prazeres ou Um Café no Majestic). É autor de diversos livros de poesia, de livros de viagem e de romances. Escreve no weblog A Origem das Espécies.

Esclarecimento:

Na sequência de dois e-mails recebidos há pouco, resolvi apagar alguns comentários a este post, assim como o post que aqui se encontrava. Como sabem os leitores do Insónia, não é minha política apagar comentários. Até há bem pouco tempo não sabia sequer como fazê-lo. Se o fiz, foi apenas por considerar justo, independentemente da sua veracidade, um pedido que me chegou por e-mail.

Sempre que olhava a sua própria sombra, sentia-se acossado por si mesmo.

16.3.06

Fragmento # 32 - Sonhos

Sonhei que tinha a primeira lição de piano em adulta. Aprendia a fazer escalas nas teclas brancas com os dedos nas posições correctas, mas as teclas eram livros, por vezes muito finos. Os meus dedos eram mais largos que as lombadas destes e assim não podia tocar. Tentei com as unhas mas elas estavam cortadas. Os sons seriam mais fortes se aproximasse os dedos das teclas pretas, lá intactas entre os livros. Depois discutia numa aula de filosofia da educação porque é que a estética pode tornar os seres humano melhores. O professor estava apenas preocupado com o papel dos artistas na sociedade, um frustado, ele defendia que a liberdade do génio deveria ser controlada, devido aos artistas serem uns ditadores, porque bela é a natureza e lúdica excessiva já de si: campos primaveris cheios de flores. O professor defendia a contemplação da natureza, porque a filosofia terminava com a arte. Dava cabo de tudo. Eu respondia-lhe que não tinha culpa da sua infância ser tão horrível e que a natureza nos dá tudo, mas também nos tira tudo: a doença e a dor não têm nada de belo e fazem parte da natureza; que era a razão e não a filosofia que terminava com alguma coisa, a objectiva filosofia da razão. Depois tinha de fugir como uma criminosa, deambulava furiosa pelas ruas de Évora, circulando por fim em torno das muralhas a alta velocidade. A polícia perseguia-me, mas eu estava livre, sentia o vento no meu rosto com prazer. Do que estaria eu a fugir?

Maria João

15.3.06

Fragmentos # 31 - Babilónia

A cidade alberga uma confusão de vozes que se funde no metal de um livro sempre aberto. No metal, a cidade labiríntica foi suspensa no tempo, com uma escrita de ruas ao entardecer. As letras são as casas das palavras que encaixam nas veias da cidade, em ruas que caem no chão dos meus passos aqui. Os meus passos fundem-se nas vozes que habitam escritas a cidade, quando o sol mergulha em sangue. Na cidade labiríntica escrevi palavras de água, perdi as palavras que não aguentava ler, rasguei-as. Saí da muralha ao centro, estrada romana por baixo do arco-porta; resta uma única porta-sorte. Tu estavas fora delas no centro, também, largo das portas da fonte; outras portas, outro centro em torno das minhas muralhas, às voltas. Já não aguento as palavras a ressoarem na cabeça, a circularem. Rasgo o tempo silencioso onde não as consegui usar. Volto às páginas no tempo com o aroma de um vinho frutado, que me anunciam ao longe uma suite para violoncelo de Bach, após o tempo me escorregar dos dedos na forma de uma cadeira vazia ao luar. Na cidade sente um cheiro a maresia ao entardecer, ou será que é da luz?

Maria João

Ele leva a cidade para casa.
Entra na sala e aí permanece
como se estivesse no meio de uma praça.
Nem o rumor frágil
nem a essência imperdoável
o fazem desistir do falso cenário.
Evita os objectos amados
e sobre a sua cidade se movimenta
tão subtil e intermitente
recolhendo no corpo os sinais
de uma cumplicidade insubmissa.

Fernando Esteves Pinto

Fernando Esteves Pinto nasceu em Cascais em 1961. Vive em Olhão desde os 20 anos. Colaborou no "DN Jovem" e no "Jornal de Letras". Em 1990 recebeu o Prémio Inasset Revelação de Poesia do Centro Nacional de Cultura. É publicado em Espanha por revistas literárias e editores independentes. Em 1998 obteve uma bolsa de criação literária pelo Ministério da Cultura / Instituto Português do Livro e das Bibliotecas. Publicou Na Escrita e No Rosto, Siete Planos Coreográficos (edição bilingue, Huelva), Ensaio Entre Portas, Conversas Terminais (2000) e Sexo entre mentiras (2005). É autor do weblog Escrita Ibérica. »

Antonio Seguí
Sin pena ni gloria

se eu soubesse que era para ser assim
não te tinha escrito poemas
tinha-te antes prendado com equações
e teoremas

14.3.06

MOTIVO

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
Se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno, a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Cecília Meireles

Cecília Meireles nasceu no Rio de Janeiro em 1901. Concluiu, em 1917, o Curso Normal, e passou a trabalhar como professora primária. Dois anos depois publicou Espectros, seu primeiro livro de poesia, de tendência parnasiana. Seguiram-se Nunca Mais... e Poema dos Poemas (1923) e Baladas para El-Rei (1925), nos quais já aparecem elementos simbolistas. A partir de 1922 aproximou-se das vanguardas modernistas, principalmente dos poetas católicos. Em 1938 ganhou o Prémio de Poesia, concedido pela Academia Brasileira de Letras, pelo livro Viagem. Nos anos seguintes, conciliou à produção poética os trabalhos de professora universitária, tradutora, conferencista, colaboradora em periódicos, pesquisadora do folclore brasileiro. Publicou também poesia infantil. A Academia Brasileira de Letras concedeu a Cecília, postumamente, o Prémio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra, em 1965. Faleceu em 1964. »

PALAVRA IBÉRICA

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Tá-se um gajo a apanhar sol e a ler Buzzati e vem o Fernando Esteves Pinto, pelo lado direito. Começámos à porrada na praça que as mulheres e as pessoas percebam bem que os poetas são homens machos como os outros e para mais até. Apanhei do chão o que restou do Buzzati e do casaco e ajudei o Fernando a procurar o braço que lhe arrancara à dentada. Cumprimentámo-nos então e fomos tomar um café, abrindo caminho por entre a floresta de raparigas que davam gritinhos assustados. Chega o João Bentes, a Sara Monteiro, o Joaquim Paulo Nogueira, vamos para Punta Umbría. Encontro em Punta Umbría entre escritores portugueses e espanhóis, a Aullido publicando uma bela Antologia de Poesia Portuguesa Actual chamada Poema Poema.

Ouvimos a Josefa a ler poemas portugueses e espanhóis. Que bela voz. Foi boa a ideia de a amarrarmos à cadeira para ela continuar a dizer poemas. E boa a surpresa de descobrir o José Carlos Barros, de quem nunca tinha lido nada (e já por aí anda há uns tempos). O Ensaio entre Portas (1997), do Fernando Esteves Pinto, um belíssimo livro de poesia a pedir uma re-edição (quem se candidata?) com distribuição mais eficaz. Suave, intimista, ao mesmo tempo perspicaz e seguro de linguagem, e os passos à volta da casa e o subentendido diálogo entre mim e ti, as portas abertas ou fechadas dentro da casa, a porta principal que dá para a rua e existe para os que lá fora passam e não a vêem, e assim o pequeno passeio através das portas que atravessamos entre nós e os outros e se chamam por exemplo sentimentos e nunca sabemos bem se são portas abertas ou fechadas. Lembro-me de como ainda existe o mito de que as coisas bonitas e elevadas, verdadeiramente bonitas e elevadas, não se explicam, não se podem nem devem explicar, que coisa tão tola. O facto de o amor ser o resultado de uma reacção química a faiscar algures no nosso cérebro (e seja mais onde for) e não uma coisa vinda do céu, soprado pelo Belo Deus para nosso terreno encantamento, não o torna um sentimento menos nobre ou menos assombroso. Tentar perceber o sentimento, atravessá-lo de inteligência, embora seja certamente modificá-lo, não é exterminá-lo. Não querer ver é que é estúpido e destruidor e/porque gerador de mitos, essas supremas tão humanas ilusões. Perceber é corromper, mas todos somos corruptos como tudo o que sentimos. Ser corrupto é ser sensível ao sol, à presença de um corpo ao nosso lado, à insistência de uma ausência tão premente como a tua. Um toque teu serve para recompor o meu olhar, o meu passado todo.

Sessão improvisada de micro-contos no Café Viejo, a mote da amiga escritora Inmaculada Luna, com o Luís Ene “em casa”. De memória:
- Era uma vez um guardanapo imaculado antes de ser meu (escrito no guardanapo por mim oferecido);
- Ela queria ser maculada e só o nome a impedia (Luís Ene).

Logo a seguir as bases do mundo-gelatina, esse mundo que não se explica porque, este sim, não se consegue explicar. Tem a ver com bolas de basquete e coisas grandiosas como mamas, não sei se tão a ver.

A antologia (voltarei a falar dela; pena algumas gralhas, essa passarada que sempre descobre o seu lugar, aqui sobretudo na versão espanhola desta edição bilingue) tem textos de Ana de Sousa, Fernando Cabrita, Fernando Dinis, Fernando Esteves Pinto, Francisco José Viegas, Henrique Manuel Bento Fialho, João Bentes, José Agostinho Baptista, José Carlos Barros, José Félix, José Mário Silva, Luís Ene, Pedro Afonso, Rui Costa, Sandra Costa, Sara Monteiro e Teresa Rita Lopes.

Mas, que vejo agora, é ela, gelatina, é a gelatina, e o mundo estremece nos seus eixos, e os gelatinas deste mundo sorriem.


(ver tb aqui: http://escritaiberica.weblog.com.pt/)

Rui Costa

13.3.06

Uma grande desgraça, dom, uma grande
desgraça, abandonado por toda a gente, o dom
compreende, pode ser amarguinha, a mim sabe-me
doce, mas depois recompus-me e tenho-me
divertido à grande e à francesa. A propósito,
ó dom, quem diabo seria a francesa? Vozes
ouvidas, guitarras chorai, que eu tenho um fígado
que não há pai. Vão aos três quatro de uma vez,
metem medo e cheiram mal, de vez em quando
vai um a enterrar. Verdadeiras lágrimas salgadas, ó
baía de cascais, quantos dos teus iates
matavam a fome em moçambique e que tais?

Helder Moura Pereira
Fotografia de João Carlos Santos (Expresso).

Helder Moura Pereira nasceu em Setúbal em 1949. Reuniu a sua poesia publicada entre 1976 e 1990 no volume De Novo as Sombras e as Calmas (Contexto, 1990). Desde então publicou vários livros de sua autoria, entre os quais Um Raio de Sol (2000) e Mútuo Consentimento (2005). Tradutor de obras de Ernest Hemingway, Jorge Luis Borges, Sylvia Plath, Sade, Guy Debord, entre outros, é também autor de livros para crianças: A pensar morreu um burro e outras histórias (1999) e Os poemas do coelho Ramon (2001). Tem colaboração dispersa por várias revistas. Estreou-se em 1976, num volume colectivo intitulado Cartucho.

12.3.06

[Gramaticar] # 1

Gramaticar um verso pode ser um acto de coragem. Quando é uma afirmação de liberdade e quando é um acto de confissão, ou seja, quando uma certa forma de perspectivar o mundo aí se revela. Gramaticar confunde-se com respirar. Gramaticar? Perguntam-me. Respondo que sim, ainda que ciente da relativa facilidade com que as palavras nos desmoronam. Um dia, era eu muito pequeno, contaram-me da vida como um puzzle que se vai construindo. Cada peça seria um pedaço de futuro, cada decisão uma estratégia com um fim previamente definido. Eu deixei sempre os puzzles por acabar, porque não me anima essa ideia de um futuro que não seja definido senão pela minha própria vontade. Quantos se permitirão descortinar-me as razões que me alicerçam, já não sei. Mas, muito sinceramente, também pouco me importa.

[Gramaticar] # 2

Hoje desenho-te uma sombra sobre o chão. E uma outra onde possas repousar o cansaço. Desenho-te uma sombra que me espreita do avesso, pelas janelas reclinadas do desespero. Hoje desenho-te uma sombra acidentada. No meio de um lago de silêncio, boiando como uma rolha de cortiça no movimento erguido dos oceanos. Desenho-te uma sombra que se volte como a página de um jornal, para que amanhã possas dizer: sim.

[Gramaticar] # 3

Um cão desmanchado gritou dentro de mim, um cão agachado, submisso e obediente. Por ele desaprenderia o espanto para me concentrar apenas na arte de roer as unhas até ao sabugo. Tolerei durante anos, atrelado, a volta ao quarteirão, enquanto farejava a hora de fazer cocó e chichi. Um cão desmanchado espevitou para fora de mim, veio morrer-me aos pés com um sorriso embuchado. Que esse animal entorpecente que outrora me habitou, não mais volte a ganir os seus dentes. Com a boca bem gritada, hei-de ser o sonho dos seus pesadelos. Quiçá o antídoto dos seus venenos.

11.3.06

Uma pérola do tratamento jornalístico

Vem no Público de hoje, assinada por Joana Ferreira da Costa:

«As autoridades de saúde, juntamente com um grupo de peritos, fizeram um levantamento dos portugueses considerados essenciais para “manter o tecido social a funcionar” durante a fase mais aguda da eventual (mas considerada inevitável) pandemia provocada por um novo vírus da gripe.»

A propósito destes desenvolvimentos sobre a eventual (mas considerada inevitável) pandemia da gripe, também eu me abalancei em indagações sobre quais os cem mil portugueses mais essenciais que os restantes. Mas depois considerei que o verdadeiro tema não é esse. O verdadeiro tema é a «manutenção do funcionamento do tecido social». Quem é que quererá manter uma coisa destas? Vocês já repararam bem na contradição, no paradoxo que se avizinha! A gente vai ter de escolher cem mil portugueses eventuais (mas considerados inevitáveis) para a manutenção do que, julgo eu, mais queríamos fazer desaparecer: o actual funcionamento do denominado tecido social. Sem pretender parecer cínico, fui mais uma vez servir-me dos ensinamentos do grande Albino Forjaz Sampaio. Segundo tão dota inteligência, como sabeis, «para triunfar, é preciso ser mau, muito mau.» É preciso ser cínico, hipócrita, egoísta, raivoso, desonesto, canalha, crápula, vil, patife e todas as demais qualidades facilmente reconhecíveis num português eventualmente (mas considerado inevitável) fundamental. Onde estarão esses nossos cem mil portugueses? Onde param eles? Dir-me-ão, os mais cínicos que eu, que disso é o que para aí não falta. Pois bem: só essa, mais nenhuma, é a verdadeira dificuldade com que nos deparamos. Tal como o mister Scolari tem demonstrado dificuldades na formação da nossa selecção de futebol, dada a proliferação de talentos da bola em território nacional, prevejo eu iguais dificuldades na selecção futura de cem mil canalhas eventuais (mas considerados inevitáveis) para a manutenção do funcionamento do nosso querido tecido social. Maus tempos se avizinham, pois, caros (con)cidadãos. Eu, se fosse vossas excelências, começaria quanto antes a confeccionar a mais variada indumentária com o tecido que, tudo leva a crer, só estará disponível, dentro em breve, para cem mil eventuais (mas considerados inevitáveis) ilustres portugueses.

Cartão do cidadão

Há uma coisa que me chateia na história do neófito “cartão único”: passar a andar com a carteira ainda mais leve. Assim como assim, com a catrefada de cartões que se avolumam na carteira sempre ia disfarçando a pobreza em que vivo.

Soares é isto:

Baixos…

O maior derrotado das últimas eleições presidenciais deixou a Assembleia da República sem cumprimentar o vencedor. De passo estugado, Soares deve ter sido o primeiro a sair e de nada servirá vir alguém dizer que se dispensou de congratular Cavaco Silva para não ter de estar horas na fila de espera: o semblante que exibia e a recusa em falar aos jornalistas eram provas concludentes de que ainda não digeriu os resultados de 22 de Janeiro nem percebeu que a sobranceria (tão evidente na campanha como esta semana) não o levará a reconquistar o coração dos portugueses.

In Expresso, 11 de Março de 2006, p. 10.


… & Altos

Pode não ter ido ao beija-mão ao novo Presidente, está no seu direito, até porque tem a desculpa das regras do protocolo relegarem para segundo plano os ex-Chefes de Estado na apresentação de cumprimentos (ao contrário do que acontece com o cardeal patriarca de Lisboa, ao lado de quem teve de sentar-se). Pode não ter estado sorridente. Pode até ter estado em “meditação profunda” durante o discurso de tomada de posse de Cavaco. Em tudo esteve igual a si próprio, agiu de acordo com a sua consciência, sem hipocrisia. Mas esteve lá! Algo que o recém-empossado Presidente não fez, quando, há dez anos, foi derrotado por Sampaio.

In Público, 11 de Março de 2006, p. 11.

Ao cuidado de um dos amigos do povo.


MANOLO MILLARES
Fallen Personage 1

10.3.06

Ingenuismo

Eu queria fazer uma pintura que fosse toda ela uma colagem de pinturas anteriores. Eu queria fazer uma colagem que fosse uma pintura. Eu queria pintar-me como quem se cola. Eu queria colar-me como quem se pinta.


Edward Middleditch
Landscape Study

O meu primeiro encontro com a voz de Daniel Filipe

Isto já se passou há mais de dez anos. Não tinha eu, portanto, vinte primaveras concluídas. De um encontro com um amigo, como tantos outros encontros, surgiu, no entremeio da conversa circunstancial, a partilha de leituras, gostos literários, obsessões. Calhou que nesse dia o meu amigo me presenteasse com uma cassete de áudio, uma daquelas cassetes BASF que já não se encontram nem nas lojas dos chineses, com um alinhamento que trago à memória por razões que vão-se tornar evidentes. O Lado B era composto por dois poemas de Vitorino Nemésio, do livro Limite de Idade, mais quatro de Alexandre O’Neill, do livro Entre a Cortina e a Vidraça, e um outro de David Mourão-Ferreira. Todos esses poemas eram ditos pela voz dos próprios autores. O Lado A da cassete continha três poemas de Grito Plural, de José Gomes Ferreira, o Monólogo de Orfeu e O Dia da Criação, de Vinicius de Moraes, mais a Defesa do Poeta, de Natália Correia, todos eles declamados igualmente pelos respectivos autores. No entanto, o que importa aqui recordar não são bem esses magníficos momentos de poesia dita a alta voz. É que a abertura desse Lado A dava-se com dois actos poéticos que foram o meu primeiro encontro com a voz do poeta cabo-verdiano Daniel Filipe: A Invenção do Amor, dito pelo próprio, e o primeiro poema da sequência intitulada Canto e Lamentação na Cidade Ocupada, pela voz dramática de um saudoso Mário Viegas. Passados estes anos, interpreto esse primeiro encontro com a voz de um poeta, proporcionado por um encontro com os gestos de uma amigo, como prenunciador da relação que vim a desenvolver com a poesia de Daniel Filipe. Passo a explicar. Dos amigos a gente não espera obrigações, a gente espera apenas disponibilidade. Aos amigos, pelo menos eu encaro os meus desse modo, não se fazem exigências que não sejam as de, isso mesmo, continuarem nossos amigos. Pessoalmente, sinto uma enorme dificuldade em compreender a ideia de tipos inferiores e superiores de amizade. Reconheço no desejo de bem para o outro, sem outras motivações senão as encerradas no próprio acto de desejar, uma possível conceptualização da amizade. Isto porque a amizade não pode ser uma espécie de panela de pressão onde misturamos certos ingredientes com vista à obtenção de um determinado efeito. A amizade não é um mimo momentâneo, um aconchego servido como quem serve aperitivos. A amizade tem de ser mais do que o prazer de nos fazermos ouvir ou de nos sabermos ouvidos. A amizade só faz sentido se for um dever sem compromisso, um sentimento espontâneo e desinteressado. Não que a amizade proceda do desinteresse, mas encontra aí a sua razão mais profunda. É quando encontramos os outros dentro de nós, metamorfoseados num sentimento de querer bem, que a amizade deslumbra. Porque a amizade, quando transformada numa obrigação, facilmente se confunde com comércio de afectos, negócio ou especulação sentimental. Algo muito semelhante sinto eu por alguns poemas. A Invenção do Amor, de Daniel Filipe, é um desses poemas pelos quais nutro uma profunda amizade. Julgo mesmo ser mútuo tal sentimento, pois sempre que necessito lá está o poema a marcar presença, disponível como um amigo, pronto para me dar um pouco desse consolo que a vida na cidade nos vai permutando quotidianamente. Eu podia vir para aqui falar da poesia de Daniel Filipe como uma exímia manifestação da poesia de intervenção (como se toda e qualquer poesia o não fosse), da poesia que viu no amor uma arma, a mais bela das coisas odiadas pelo poder, o poder que odeia o amor tanto (ou mais) quanto odeia todas as coisas belas. Recentemente, num filme sobre o poeta cubano Reynaldo Arenas, o realizador e pintor norte-americano Julian Schnabel passou-nos exactamente a mesma mensagem: os ditadores odeiam tudo o que é belo, o belo ameaça-os como nenhuma outra coisa e, por isso mesmo, o amor, enquanto a mais bela e indomável das matérias humanas, é temível. É por isso que «é preciso ir mais longe / destruir para sempre o pecado da infância / erguer muros de prisão em círculos fechados / impor a violência a tirania o ódio». Perdoem-me os teóricos, desculpem-me os académicos, mas à voz de Daniel Filipe (n. 1925 – f. 1964) eu não vou exigir mais que aquilo que ela já me deu: a reinvenção da amizade através d' A Invenção do Amor.

Henrique Manuel Bento Fialho
Em resposta a uma solicitação que me chegou por e-mail.

9.3.06

SOLIDÃO A DOIS

Anjo, triste
de serenidade obscura.
Com o asfalto trepidante
sob a pele de veludo difícil.
Canção nocturna e fatal
sem solução;
guardador de Igrejas encerradas,
asas cansadas,
voo interrompido
por solidões anémicas e cruéis.
Bebedor de absinto,
sem motivo, sem nada.
Gritador de uivos
- o que encerra à noite
as portas da madrugada.
Sem nome nem direcção
filho abstracto e nu duma não-geração.
Ferida aberta na avenida indiferente,
crepúsculo de gente.
Criatura estranha, indefinida
defensor da minha escuridão.
Tenho-te como cúmplice, um anjo sujo
e sinto-me – apenas – só.

Artur Rockzane
Artur Rockzane nasceu no Porto em 1953. Performer e poeta, autor de edições caseiras, algumas delas perdidas, outras dispersas e fragmentadas, viu poemas seus incluídos na antologia Sião (1986, Frenesi), organizada por Al Berto, Paulo da Costa Domingos e Rui Baião. Em 1983 publicou na Fenda o livro Cavalos, Heróis e Lunáticos. Tem ainda dois livros publicados nas Quasi. »

8.3.06

ESPLANADA

É o processo da forma seca e pobre
na calma aceitação de mais torpor:
nada que persista ou que demore
mais que o minuto calmo em que descobre
que, se o cenário mudou, a forma
continua.
E não transtorna,
nem ousa (ronceirosa)
mudar a cor da lua
ou pôr ordem no caos.

Esta é a fábula da lesma preguiçosa
à temperatura de 35 graus.

Fernanda Botelho

Fernanda Botelho nasceu no Porto em 1926. Poetisa e ficcionista, frequentou o curso de Filologia Clássica em Coimbra, curso que completaria em Lisboa. Colaborou nos cadernos de poesia Távola Redonda, no primeiro dos quais (Janeiro de 1950) se estreou com seis poemas. Colaborou também em várias outras revistas e jornais, como Graal, Europa, Panorama, Tempo Presente, Diário de Notícias, e ainda na TV, no programa "Convergência". Fez bastantes traduções, tendo igualmente seleccionado, traduzido e prefaciado uma Antologia da Literatura Flamenga. »

SONETÃO

O crítico
português
é desta rês:
político.

Agrada
a seu amigo.
Não digo
mais nada

que o chateio.
Par´donde veio,
vá. Porca rima

guardo para ti.
Passas aqui,
pum: cago-te em cima!

Rui Costa

MASHA RASPUTINA

Rui Costa

7.3.06

Alegadamente

«Os portugueses são um povo do futebol.» Tenho tentado recordar-me da autoria de tão arguta definição, porém não consigo. A memória anda gorada, sinal de tempos em que tudo agoira a memória. Talvez por serem um povo do futebol, os portugueses são um povo de memórias agoiradas. Rectifico: não sei se tal atributo é exclusivo dos portugueses. Eu até sou dos portugueses que crê piamente na impossível objectivação dos portugueses. O que sei é que temos, vamos tendo, as memórias agoiradas. Deve ser por isso, só pode ser por isso, que ultimamente tudo o que é notícia se fica por ser alegadamente notícia. Qualquer dia deixamos de ser um povo do futebol para passarmos a ser alegadamente um povo. Mas que raio será isso do alegadamente? Alegar significa, segundo os dicionários cá de casa, «citar – e passo a citar – um facto ou razão para prova». Serei apenas eu a notar algo de errado aqui? É que o alegadamente aparece amiúde utilizado no sentido de possivelmente, hipoteticamente, provavelmente, presumivelmente. É a memória que nos anda agoirada, somos um povo do futebol. Somos o povo do clube dos “alegadamentes”. Alegadamente um sem-abrigo foi assassinado, alegadamente era um sem-abrigo travesti, alegadamente passou a ser um sem-abrigo travesti toxicodependente, alegadamente um sem-abrigo travesti toxicodependente transexual, alegadamente prostituto, alegadamente seropositivo, alegadamente assassinado, alegadamente homem, alegadamente mulher, alegadamente: cidadão brasileiro, imigrante, de nome Gisberto, conhecido por Gis. Tenho uma teoria acerca do assunto. Os portugueses, enquanto povo do futebol, são um povo tipicamente clubista. Temos uma grande dificuldade em pensar pela nossa própria cabeça, pelo que preferimos – reparem que me faço incluir na generalização, não vá alegadamente ferir susceptibilidades – pensar pela cabeça dos clubes dos quais fazemos parte. Depois é no que dá. Passa a ser tudo alegadamente. Não é por acaso, por exemplo, que os portugueses não foram participativos aquando dos referendos a que foram convocados. A razão é esta: os clubes estavam divididos no seu âmago, fragmentados, o que levou a que os portugueses ficassem sem saber o que pensar. Isto porque os portugueses só se manifestam quando sabem que as suas manifestações reflectirão as perspectivas dos demais membros do clube. É a chamada “clubite”. Já não há heróis, tipos solitários a pensar pela sua própria cabeça. Os poetas morreram, estão todos mortos e enterrados. O português é aquele tipo que nasceu para ser mandado, não nasceu para ser livre, para pensar pela sua própria cabeça, nasceu para fazer o que lhe dizem. Somos um sucesso tremendo na estranja. Não é o que se diz? O alegadamente vem desta fadada prática. Não há nada a fazer. Quem estará por aí disposto a remar contra a maré? A ir contra os demais? Quem se quer armar em herói? Haverá por aí alguém que alegadamente queira correr o risco de um discurso assertivo? Ou preferiremos todos, quais “ovelhinhas” de rebanho, continuar a seguir a marcha do clube? Restarão ovelhas negras? Alegadamente, diz que…

PEDIDO

Se algum leitor souber onde poderei comprar calças de ganga normais (azuis, tamanho 36, nada a assinalar) que permitam que um gajo (nada a assinalar) se sente sem ficar com metade do rabo à mostra, agradeço que me informe. De preferência na região do Porto ou arredores.
Rui Costa

Teorema

Repugna-me a solidão ensaiada, os hífens no lugar, o tédio pantagruélico e o amor de joelhos. Odeio passarinhos à brocha, petulância a boiar nas palavras, gente anã com guinéus de gigante. Não gosto de meninos providos cheios de artigos definidos, retóricos paulistas de língua abat-jour. O relativismo é uma saia cintada tão determinativa quanto o objectivismo da inteligência que s’ arroga. Acho abjectos os homens sem lugar - por conveniência, presunção ou água benta. Agonizo com arrulhos ameijoados, meio-mortos à nascença. Botas-de-elástico há mais que chapéus. Com esses posso eu bem, pago-lhes em moeda estrangeira. Mas o qu’ eu mais patetizo é gente nova com pose d’ ancião e mata-borrões com chicotes de veludo. Falta-me a pachorra para os ver de baixo para cima. Vomito nos onanismos de boca em boca, nas ondas, nas modinhas, nas onças travestidas. Cago nos trejeitos de trazer por casa, na bandeira pseudo-anti-pseudo-intelectual, como se o báculo do bom senso fosse matéria de dicionário. Prefiro-me bom-serás e humilde, feito às canhas em dia de sumiço, a palerma convencido de navegante. Arrumado nos rancores que o tempo me naufragou para dentro, como um castigo, eu refaço-me: nem sei se alguma coisa sei.

RESPIGANÇOS

Mouse Painting # 8

Visão Celestial


aqui: http://locainfecta.blogspot.com/

The vision of Edwin Hubble


magic fly paula / Paula C.
mais aqui:
http://www.flickr.com/photos/magic_fly/

Inominável

Da minha boca só saíram estrelas
Tentei
mas um vulcão irrompeu da traqueia
uma onda da faringe
um dragão da laringe
um hipocampo do esófago
(pois no meio de todos estes colossos algum elemento teria de
remeter para a doçura)
Procurei dizer-to mas o mundo
que era dentro de mim
toldou-me as palavras
roubou-me todo e qualquer sentido
Nunca to direi
não poderei fazê-lo

Articulei um sonoro
Amo-te
mas este verbo pareceu um sussurro de imperfeição

aqui: http://cassiopeianablogosfera.blogspot.com/

Rui Costa

PARA OS DEMAIS

colecciono postais e outros
objectos lâmpadas parafusos
assim tenho a certeza dos anos
e lugares deste quarto a seguir
igual procedimento os meus haveres
a roupa a carne vou aqui deixar
arsénico para os demais

José Ricardo Nunes

José Ricardo Nunes nasceu em Lisboa, a 14 de Dezembro de 1964. Licenciado em Direiro, exerce funções no Ministério da Justiça. É mestre em Literatura e Cultura Portuguesas - Época Comtemprânea, com uma dissertação sobre Luiza Neto Jorge. Publicou o seu primeiro livro de poesia, Rua 31 de Janeiro, em 1998. No domínio do ensaio e da crítica literária é de registar a publicação de trabalhos em Colóquios/Letras, Ciberkiosk (publicação on-line), Ler e Relâmpago. Tem ainda poemas publicados em Di Versos, Relâmpago e Arsenal. Vive em Caldas da Rainha.

Há dois tipos de pessoas

As que são exigentes consigo próprias e as que não são exigentes consigo próprias. As primeiras têm poucos amigos, as segundas têm muitos amigos.

Há dois tipos de pessoas

As que são exigentes com os outros e as que não são exigentes com os outros. As primeiras têm muitos inimigos, as segundas têm poucos inimigos.

6.3.06

São sinais de uma tristeza
profundíssima e remota:
a “patada no peito”
e a saída na espera.

Ca-
pitulação
capitólios, pitulinas
kaputos & kaluandas
turras e pulas
e o resto da merda toda
a fermentar no contentor da História
aonde os “vagabundos da verdade”
vêm sondar
os detritos do sonho.

Tem muito filho-de-puta a povoar a crónica.
As criaturas honestas
estão sentadas na sua honestidade
e já agora aproveitam
para ficar quietas
enquanto os outros garantem
o produto nacional.

Se houver cerveja
manda-me chamar.
Talvez encontre então
razão para festas.

Ruy Duarte de Carvalho

Ruy Duarte de Carvalho
nasceu em 1941. Angolano de origem portuguesa, antropólogo doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, Paris, é poeta com obra iniciada em Chão de Oferta (1972) e prosseguida em A Decisão da Idade (1976), e Observação Directa (2000), entre outros. Autor ainda de duas obras de ficção, Os Papéis do Inglês (2000) e Como se o mundo não tivesse Leste, obra publicada pela primeira vez em 1977. Professor da Universidade de Luanda, foi Professor Convidado na Universidade de Coimbra e da Universidade de São Paulo. »

Man in the Cafe

5.3.06

A sinuosidade do meu pensamento:

Penso que penso poderá sarar a minha ferida. Para a ferida que penso não há penso. Nem rápido nem higiénico. Há poesia.

4.3.06

sempre que o vento bate na chuva
e o céu desce à altura das árvores
chego-me para dentro da memória
futura como quem se despe numa
dança de sabres

DISTRIBUIÇÃO DA POESIA

Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Escutai, meus irmãos: poesia tirei de tudo
para oferecer ao Senhor.
Não tirei ouro da terra
nem sangue de meus irmãos.
Estalajadeiros não me incomodeis.
Bufarinheiros e banqueiros
sei fabricar distâncias
para vos recuar.
A vida está malograda,
creio nas mágicas de Deus.
Os galos não cantam,
a manhã não raiou.
Vi os navios irem e voltarem.
Vi os infelizes irem e voltarem.
Vi homens obezos dentro do fogo.
Vi ziguezagues na escuridão.
Capitão-mor, onde é o Congo?
Onde é a Ilha de São Brandão?
Capitão-mor que noite escura!
Uivam molossos na escuridão.
Ó indesejáveis, qual o país,
qual o país que desejais?
Mel silvestre tirei das plantas,
sal tirei das águas, luz tirei do céu.
Só tenho poesia para vos dar.
Abancai-vos, meus irmãos.

Jorge de Lima

Jorge de Lima nasceu em Alagoas, a 3 de Abril de 1893. Estudou Medicina em Salvador, transferindo-se posteriormente para o Rio de Janeiro. Ainda estudante de Medicina, publicou o seu primeiro livro: XIV Alexandrinos (1914). Elegeu-se Deputado Estadual pelo Partido Republicano de Alagoas (1926) e vereador pela UDN (1946), assumindo a Presidência da Câmara dois anos depois. Iniciou-se, de maneira autodidacta, nas artes plásticas, em 1940, no Rio de Janeiro. Foi homenageado com o Grande Prémio de Poesia (1940), concedido pela Academia Brasileira de Letras. Faleceu, no Rio de Janeiro, em 1953. »

Chuva

Não a que cai do céu e afaga os vidros. Não a que fecunda a terra, deixando no ar um cheiro insuportavelmente aprazível. Mas esta onde me vejo estampado, sentado num sofá bafiento, ameaçadora, num ecrã de televisão. Esta é a chuva que mais nos limpa. Em sua honra deveríamos cantar, escrever longas litanias, hinos, poemas épicos e versos proverbiais. Em honra desta chuva e não da outra que nos obrigou a ficar em casa a olharmo-nos estampados num ecrã chuvoso de televisão: bafientos, ameaçadores, mortiços.

A ratoeira de valter


Primeira lei abrupta sobre a pantominice na blogolândia: Uma patacoada atrai sempre outra patacoada.

Caminhos redondos

Roda a roda em círculos perfeitos.
“Mais uma volta, mais uma corrida, quem está de fora não se diverte!” grita o altifalante na feira.
Volta meia volta para. Depois lá recomeça rodopiando.
Os caminhos que se pretendem rectos nunca o são, por inerência da forma do planeta.
“Vamos lá minha gente, é só 1є a corrida! Quem está de fora não se diverte”
Caminhos, estradas, atalhos…rectos, curvos, planos ou tortuosos. Todos teremos que os percorrer, com sorte pode ser que nos levem a algum lugar.
“É p`ro menino e p`ra menina! Quem está de fora não se diverte!”
Aurora Silva

1.3.06

PANFLETO CONTRA O PANFLETO


(sob a forma de conselhos a um jovem poeta)

Se uma imagem te surge no lance de um poema
usa-a para o amor – jamais para a política.

Há sempre a pôr em verso duas coxas;
há sempre um coito, real ou imaginado,
com que esquives armadilhas panfletárias.

Os campos de concentração, as guerras,
os estados de angústia, não abundam
a arte em que propões engrandecer-te.

Fala do teu exílio, da infância perdida,
do castelo em que vives após o escritório.

Não te é vedado o rumo das flores, mas sempre
longe da campa de inúteis fuzilados.
Desabrocha-as no orvalho. Elas servem
para iluminar o quarto… aquele… tu sabes!

Se recorres às rosas faze que sejam brancas
e elimina as papoilas por motivo igual.
Não despistes a caneta em perigos inglórios:
os caçadores de símbolos
são graves e desconfiados.

Egito Gonçalves

Egito Gonçalves nasceu em Matosinhos no ano de 1920. Poeta, editor e tradutor, publicou os primeiros livros na década de 1950. Teve como actividade profissional a administração de uma editora. A sua intensa actividade de divulgação cultural e literária concretizou-se, a partir dos anos 50, na fundação e/ou direcção de diversas revistas literárias, como A Serpente (1951), Árvore (1952-54), Notícias do Bloqueio (1957-61), Plano (1965-68; publicada pelo Cineclube do Porto) e Limiar. Foi-lhe atribuído o Prémio de Tradução Calouste Gulbenkian, da Academia das Ciências de Lisboa - 1977, com a sua selecção de Poemas da Resistência Chilena e, em 1985, o Prémio Internacional Nicola Vaptzarov, da União de Escritores Búlgaros. Obteve ainda o Prémio de Poesia do Pen Clube - 1995 e o Grande Prémio de Poesia da APE com o seu livro E No Entanto Move-se (1995), obra que teve igualmente o Prémio Complementar Eça de Queirós, da Câmara Municipal de Lisboa. A sua obra encontra-se traduzida em francês, polaco, búlgaro, inglês, turco, romeno, catalão e castelhano. Faleceu no ano de 2001. »

Jesus!!!

Vou ter de faltar ao prometido? Esta de Eduardo Prado Coelho, que outro Eduardo sintetizou, se não fosse trágica seria humorística. Como nos filmes, decidam-se pela versão que mais vos encante. Mas leiam bem isto, por favor: «Há uma pergunta que nos atravessa e horroriza: como foi possível ir tão longe na experiência do vazio? Uma das respostas parece-me óbvia: desesteticizando a arte que se transforma em mero ambiente aquático onde a identidade se esbate.» A que se refere Eduardo, o Prado, o Coelho?