Caro Umleitorquevaiescrevendo,
Há uma enorme dificuldade em falar para alguém que nos quer dar conselhos e pretende ser a nossa consciência, mas nem sequer tem a hombridade de se apresentar. Você, para mim, é apenas alguém que não me conhece, só isso desculpa as barbaridades por si proferidas. Fala da arrogância recrudescente do meu discurso mas não dá exemplos, não me diz onde a encontrou. Onde é que eu fui arrogante? Depois diz-me que eu deveria atentar na forma como digo as coisas. Bem, se a minha arrogância é apenas uma questão de forma, e não de conteúdo, então estamos falados. Sou, de facto, um homem do campo, não aprecio bocas cheias de papa, formalidades no discurso, gosto de dizer as coisas como as penso, de modo claro, havendo quem chame a isso frontalidade, detesto meninos calculistas e prudentes, cheios de estilo e muito urbanos, com muito futuro no nariz e gravatas apertadas ao pescoço, adoro andar descalço, a ferir os pés sobre as minhas próprias palavras. E ninguém me tire estradas poeirentas, carreiros de pedra, caminhos de terra batida. Quem me conhece, sabe que sou assim. Quem não gostar, tem bom remédio. Dê-me um pontapé no cu e vá à vida.
Depois você aconselha-me a repensar o processo criativo inerente à minha escrita. Como se houvesse um processo, como se houvesse a minha escrita. Não há. Já disse e repito: não escrevo, nunca escrevi para ser escritor. Os editores que me editaram livros sabem bem disso, eu disse-lhes isso olhos nos olhos. Não ando aqui para ser escritor, eu escrevo com o corpo todo, não me interessa escrever com a cabeça nem com o coração, interessa-me escrever com o corpo todo. É verdade que leio muito, que vejo muitos filmes, que vejo muita arte pelo caminho, que ouço muita música. Haverá quem veja muito mais que eu. E haverá mal nisso? Olhe, veja em mim apenas um bom cliente da coisa cultural. Apenas um bom cliente. Mas também lhe vou dizendo, e acredite que é verdade, que ainda prefiro as pessoas, mesmo com todos os seus defeitos, aos livros, aos filmes, às canções… e se há coisa que me faz estar aqui a responder-lhe é partir do pressuposto que você seja uma pessoa e, só por isso, mais nada do que isso, merece que eu perca um pouco do meu precioso tempo a responder-lhe. Mais valia estar a ver os Perdidos, mas aqui estou eu a perder-me na sua companhia, na ilha de todas as provocações, na ilha mágica onde a morte deixa de ser morte, onde a vida não é já senão uma coisa fantasmagórica.
Se o que escrevo lhe parece mastigado do que outros escreveram, paciência. Deve ser do ecfrástico, das intertextualidades, das invocações e convocações. São modas, tendências. Uma perdição. Eu adoro gajos originais, mas não olho para mim como um deles. E se os meus pobres textos lhe parecem reacções ao alheio, então parecem-lhe muito bem. É mesmo isso que eles são, reacções espontâneas, autênticas e honestas ao alheio, ao de fora que está dentro, ao dentro que se faz em relação com o que está fora. Não sei se ‘tá a ver, é uma coisa fenomenológica esta da escrita. Sempre em relação com… Até irrita. Eu gostava muito de viver enclausurado dentro de mim próprio, adorava ser esquizofrénico, adorava não ter janelas por onde saltar, ser ensimesmado e super-original, mas deus nosso senhor não me deu a graça desse dom. Deixo isso para os génios a pontapé que há por aí neste país. Eu gostava muito de ser eu mais o mundo à minha volta, mas o filho da puta do Heidegger há muito me ensinou que eu não sou senão um entre os demais, parte integrante de um todo com o qual me relaciono porque outra coisa não me é possível. Os outros não são todos os demais além de mim, são aqueles entre os quais também eu me encontro. Demos um abraço.
Depois preocupas-te com a minha saúde, dizendo que não achas saudável uma tal derisão para comigo mesmo. Tens razão, tens toda a razão. Devia levar-me mais a sério. Não é nada saudável. Daí que eu tenha tanto problema com a saúde: são as micoses, a asma, as rinites, as alergias, os nervos, a ansiedade, os ataques de pânico, o amor, até acho que estou a ficar alcoólico e agarrado à droga… Olha, só ainda não dei um tiro na cabeça, caro leitor, porque tu existes. Não há meias-verdades nisto, nem sequer há verdades. O que são verdades? Sei de quem prefira a verdade acima de tudo. Sim, a verdade. Outros preferem a liberdade, outros o amor. Não há meias-verdades. As meias-verdades são mentiras. Já imaginaste meios-amores, meias-liberdades? Isso não existe. Ou se é autêntico ou não se é, ou se é honesto ou não se é. E ser-se autêntico é amar por inteiro. Quanto a isso, só te posso dizer que aqui estou eu a perder o meu tempo contigo, a dar a minha cara, o meu corpo-alma perante o mundo, não me escondo, não sou uma meia-verdade, sou um rosto e um nome atrás de cada palavra que profiro.
Se compreendes que o que torna este meu espaço de partilha interessante é o ritmo que nele se impõe, por que duvidas que tudo isto não seja febre? As fábricas não adoecem. E eu estou doente, muito doente, e tu já reparaste. Obrigado. Fabril ou febril, que não te incomodem os meus ritmos. A minha família há 5 anos que convive bem com eles. Dizem que sou uma fábrica de febres e que tu, caro leitor amigo que me lês, que perdes tempo com as minhas febres, tu és o ser oculto que faz das minhas febres uma refeição. Alimenta-te de mim, leitor amigo. Só por isso te amo até ao mais fundo lugar do meu pobre e doentio coração.
As tuas epístolas são muito bonitas e sinceras. Terminas com uma suposição, mas também com muitas certezas, dizendo que te pareço dividido: «Suponho que a questão é se de facto és um criador ou apenas um funcionário... pareces-me dividido. Não que definires-te seja fundamental... Mas a boa arte nasce quase invariavelmente de um grande esforço consciente, deves ter ao menos consciência disto. Para haver reflexão é preciso tempo (que nem sempre há, eu sei). E eu não investirei contra o crítico de arte, desde que ele saiba onde é que fica na cadeia alimentar». Pareço-te dividido? Entre um funcionário e um criador? Funcionário de quê e de quem? Criador de quê? Ah! Tu sabes, tu estás certo, tu tens dentro de ti a ditadura do pensamento. Tu sim, tu é que és o crítico de arte. Eu há muito disse bye bye à razão, ó coisa linda. Aqui estás tu a criticar, consciente, por certo, do teu lugar na tua cadeia alimentar. Tu é que és o crítico, o crítico de um pobre miserável.
Por certo que reflectiste muito, tiveste tempo para isso, até chegares a essa conclusão mágica, genial, inaudita: "a boa arte nasce quase invariavelmente de um grande esforço consciente". Como é que eu não cheguei aqui antes de ti?! Ó Mestre, ó génio! Não tive tempo para aqui chegar. Não tive a tua agilidade reflexiva. Um grande esforço consciente, sim. A arte, pois claro. O crítico, os funcionários, os criadores. É tudo tão maravilhosamente Kant. Ou será anti-Kant? Mas olha, não tenho estofo para pensar essas coisas. Sou um pobre diabo. Não quero a boa arte nem esforçar-me conscientemente. Eu só quero continuar a ser inconsciente na prática da minha consciência. Prefiro, por isso mesmo, citar-te um excerto muito breve, apenas um muito pequenino, da Carta Aberta a Freud, escrita pela(s) pena(s) da senhora dona Lou Andres-Salomé: «a vida humana – como digo eu, a Vida! – é obra poética. Sem sermos conscientes disso, nós a vivemos, dia após dia, por fragmentos, mas é Ela, em sua inatingível totalidade, quem tece a nossa vida, e compõe o poema».
Fialho
Caldas da Rainha, 28 de Junho de 2008.