30.11.06

Ter Ser

Apenas no amor o ser e o ter se encontram. Uma pessoa está perdida quando sente que não tem amor para dar. Quem não tem amor para dar já não tem nada, já não é. Ter amor para dar é ser, não o ter é não ser.

O drama do psicólogo

Não é possível que alguém compreenda o que se passa dentro de nós se não estivermos dispostos a permitir que esse alguém entre dentro de nós. Mas mesmo entrando, mesmo sendo isso possível, a única coisa que pode acontecer é esse alguém ficar muito confuso, pois nem nós mesmos compreendemos o que se passa dentro de nós. No fundo, todas as pessoas tentam compreender o que são, mesmo quando, supostamente, exercitam o ofício de compreender os outros.

Passamos grande parte da vida a negar impulsos, a criar barreiras entre o que somos e o que devemos ser. A infelicidade advém muito desta negação, sendo a sua consequência mais evidente aquilo a que vulgarmente chamamos de solidão. A solidão não é sentirmo-nos sós, a solidão é antes o corolário da negação de nós mesmos. A solidão é a negação do eu, o homem só é aquele que se nega entre os outros que o rodeiam.

Insectos, percevejos e literatura erótica

A maioria da literatura erótica que vou espreitando entedia-me, não chega sequer a ser erótica, pelo menos para mim, na medida em que a única coisa que me provoca é aquela atenção de quem espera por algo que sabe jamais poder vir a acontecer. Isto porque à partida toda a literatura erótica actual é já uma chegada, ou seja, vive do óbvio, da ausência de mistério, de mostrar tudo como se mostrando tudo desse ares de uma libertinagem e de uma pseudo-modernidade que mais não é do que uma forma tremendamente preconceituosa de viver o sexo. Isto deve ter que ver com modos de olhar as coisas, não sei, mas para mim um bom par de mamas só o é se estiver ligeiramente disfarçado. Um par de mamas manifesto não passa de mais um par de mamas, mas um par de mamas onde, vá lá, o mamilo apenas se insinue pode ser um tremendo par de mamas. Há tempos tive essa experiência num concerto, ao olhar a saliência de uns mamilos entesados debaixo da blusa da cantora que então actuava. Fiquei a pensar naquilo, no prazer provocado pela imagem, pela imaginação de uns mamilos escondidos, oprimidos, investindo contra o tecido, como que a quererem romper dali para fora… O que quero dizer é que onde falta a imaginação faltará também o erotismo. Daí que a “literatura erótica actual” me entedie, falta-lhe a imaginação. A gente percorre meia dúzia de sítios pornográficos e está lá tudo, de forma bem mais escancarada, o que a literatura erótica actual pretende ser e não consegue. Deixo-vos, a título de exemplo, dois parágrafos de Bukowski que são exemplificativos de como insectos e percevejos podem fazer o que 1001 descrições doidivanas de posições improváveis e preliminares disparatados não conseguem:

«Voltei ao quarto. Mindy estava quente, o seu corpo estava quente. Parecia estar a dormir. Eu gostava daquilo. Rocei docemente os meus lábios contra os dela. O meu caralho levantou-se. Senti os seus seios contra mim. Agarrei num e chupei-o. Senti o mamilo endurecer. Mindy mexeu-se. Desci até ao ventre e depois até à cona. Comecei a esfregá-la, lentamente.
Era como estar a abrir um botão de rosa, pensei. Isto faz sentido. É óptimo. Como dois insectos num jardim que se aproximam lentamente um do outro. O macho faz a sua lenta magia. A fêmea abre-se lentamente. Gosto disto, gosto disto. Depois percevejos. Mindy abre-se, começa a ficar molhada. ela é bonita. Depois montei-a. Com a minha na sua boca, enfiei-lha»
(Mulheres, p. 79).

Bloco de apontamentos #45

MJLF, Nós somos os brinquedos / os brinquedos são nossos, 125x240x10cm, 1997.

O telefone toca logo de manhã e ouço uma voz amiga do outro lado: - vá, sai já da cama, toca a ir trabalhar, estou aí daqui a bocado e se voltas a pensar em parvoíces, levas um estalo na cara.
É tão bom te ruma amiga que também está desempregada neste momento e não me quer ver deprimida e a andar às voltas no mesmo sítio.

Maria João

IVG # 15

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Via Arrastão, este PIN (Projecto de Interesse Nacional) mais amarelo que o desejável. Na verdade este “blogue” não vota, mas o seu autor SIM. Ontem, já depois da convocação do referendo para o próximo 11 de Fevereiro, lá tive que ouvir mais uma vez Nuno Melo, o líder do grupo parlamentar do CDS/PP, dizer que vai votar não por «uma questão de civilização». Era bom que alguém lhe perguntasse o que quer ele dizer com: «Uma questão de civilização!» Mas os países que criminalizam as mulheres que praticam um aborto são mais civilizados? Mas permitir que uma mulher interrompa uma gravidez dentro de períodos estabelecidos pela lei é incivilizado? Os países que proíbem qualquer interrupção voluntária da gravidez são mais civilizados que os outros? Os países que mandam mulheres para a prisão porque elas decidem interromper uma gravidez que não desejam são mais civilizados? Enfim, países como a Alemanha, a Bélgica, a Dinamarca, a França, a Grã-Bretanha, a Holanda, a Itália, o Luxemburgo, etc, são menos civilizados do que nós?
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CESARINY

Se não quiseres uma promessa
podes ser um cavalo todo negro
com dentes por abrir
uma criança loira ao pé de uma
floresta
se não quiseres um homem
podes matar mas não podes
morrer
porque a morte tem anjos com
febre nas grutas aflitas
e eu não te vejo ainda
talvez sejas
apenas o brilho que pressinto
o palhaço de cócoras
ou a pegada no
escuro




Rui Costa

29.11.06

Modos de vida

No final do documentário Os Respigadores e a Respigadora, Agnès Varda aborda um homem que encontra a colher restos de vegetais e frutas num mercado municipal. Esse homem revela-lhe que estudou Biologia, possui um mestrado, mas sobrevive dos jornais de rua que vai vendendo à porta da gare Montparnasse. À noite, ensina francês, em regime de voluntariado, a emigrantes. Pratica uma dieta à base de pão e de vegetais, a maior parte respigados, ou seja, considerados lixo, desperdiçados, pelos cidadãos comuns. Penso nesse homem e concluo que um dos aspectos positivos na sociedade em que vivemos é podermos escolher o nosso modo de vida. Trata-se de não permitirmos que nos empurrem para um modo de vida, trata-se de resistirmos, trata-se de sermos nós a escolher o que queremos, como queremos, quando queremos. Isso é possível. O difícil talvez seja mesmo escolher, optar. Como em tudo na vida, optar por um caminho implica deixar muitos outros para trás. O peso da responsabilidade que uma decisão dessas acarreta é talvez o mais difícil de suportar.

O caso Richards

Excelente post de Pedro Mexia. Vou dizer apenas que o assunto me interessa muito, muito mesmo, cada vez mais. Vão lá e leiam. Excelente post, mesmo discordando de um pequeno pormenor. Termina assim: «Sabemos muito pouco sobre nós mesmos. Essa é a triste condição da nossa espécie».

O casal pós-pós-moderno

Somos um casal pós-pós-moderno. Eu trabalho e a minha mulher fica em casa a tomar conta dos filhos.

J. U. said...

E já que estamos a sondar a morte, uma morte boa, era bom lembrarmo-nos dos vivos, daqueles raros que por cá trabalham a literatura e que o fazem de uma forma superior e que já não são novos e que pura e simplesmente não existem para os vivos e para a crítica literária. Assim lembro Vicente Sanches (já nos setentas), um escritor arredio a toda a publicidade e visibilidade pública e que viveu sempre em Castelo Branco. Vicente Sanches não é só um dos muito poucos escritores de excepção do séc. XX, como é o maior dramaturgo português desde Gil Vicente. E para mais em termos de linguagem e de hipnose da linguagem ele é imbatível. Alguns dos seus livros foram editados na segunda metade dos anos 90 pela cotovia mas o essencial está editado pelo próprio e como esses livros fabulosos (para um pós-teatro e para um teatro de aforismos) não estão acessíveis nas livrarias só quem se dignou a visitá-lo tem o privilégio de os ler. Quando o visitei, há poucas semanas, e foi uma visita extraordinária, mesmo com o seu quê de sobrenatural, e lhe perguntei se alguém do teatro alguma vez o visitara ele respondeu-me que não, nunca. Nem ele nunca assistira à representação de uma peça sua, em geral a célebre Birra do Morto. E nem nunca trabalhara dentro de um teatro, e isto porque nunca quis. Bem, e tratou-se de um encontro sobrenatural por muitas razões. Primeiro porque quando entrei na sua enorme casa parecia que estava a entrar na velha casa de um Pascoais ou de um Régio. Mas mal começámos a falar Vicente Sanches como que me testou e começou a contar um episódio que vem num de seus últimos livros (inacessíveis) Van Gogh e Sétimos Aforismos, episódio que ocorreu no ano do centenário da morte (1990) de Van Gogh e de Camilo Castelo Branco. Tratou-se mais de uma visão, pois ele viu no último quadro pintado por Van Gogh, intitulado «Campos sob um céu de tempestade», e transcrevendo o autor, nesse quadro Van Gogh «pintou a fisionomia, e não apenas a fisionomia, digamos: pintou o retrato (o fantasma) - do escritor português Camilo; sim senhores: do homem de S. Miguel de Seide. Que evidentemente Van Gogh nunca viu, nem leu, nem por notícia ou fama conheceu neste mundo em parte alguma...» (Vicente Sanches, Van Gogh e Sétimos Aforismos). O resto não conto, mas é ainda mais extraordinário. Estamos diante de um escritor ímpar e incomparável que está completamente ostracizado, incompreensivelmente. A minha visita (foi uma aventura chegar ao seu endereço e número de telefone) a Vicente Sanches teve como propósito desafiá-lo a escrever para a revista que coordeno. Só mais uma nota: em Vicente Sanches não detectamos o mínimo de agrura e ressentimento em relação ao meio literário que fez e faz de conta que ele não existe. Uma serenidade a milhas da cloaca. E já agora mais uma acha: Vicente Sanches é insuperável na escrita aforística. E é o escritor, o único que pratica até às raias do absurdo a comédia. Volto a dizer, é para mim inconcebível e quase imperdoável que se ignore um autor deste calibre. Até parece que temos génios para dar e vender.
Comentário deixado aqui.

A BADANA DO LIVRO DA INÊS LOURENÇO NÃO É UMA BADANA COMO OUTRA QUALQUER

Inês Lourenço

A badana do livro
da Inês Lourenço informa
que tem ela uma filha que
se distinguiu na música
e um filho que se distinguiu
na arquitectura. Ficamos
sem saber em que se
distinguem o marido, o gato
e o melhor amigo, e ficamos
também sem saber se os filhos
dela também teriam direito
a badana no caso, improvável,
de nunca se terem distin-
guido?

Rui Costa

28.11.06

Pensar positivo

Há dias, ameaçado pelas unhas de uma depressão mais chata que o costume, recebi um e-mail amigo com uma série de indicações para a felicidade. Numa delas, o meu amigo sugeria-me que fosse inventariando notícias e factos positivos. Julgo tratar-se de método terapêutico antiquado, mas o certo é que não posso queixar-me de não estar a dar resultado. Nunca tendo conhecido o rosto da felicidade, ando agora muito mais alegre. Por exemplo, um dos últimos factos positivos que guardei nos últimos dias foi o cheesecake da Maria João. Pensar no cheesecake da Maria João, procurar lembrar o sabor do cheesecake da Maria João, é um exercício de memória que me deixa optimista e esperançoso. Se algum dia for obrigado a discursar publicamente, o meu discurso terá de começar assim: «Só desejo que todas as crianças do mundo possam um dia provar o cheesecake da Maria João».

A poesia é para comer

Atenção: isto não é um apelo ao consumo, isto é apenas o dar conta de uma paixão. Quanto aos necrófilos, há deles cheios de boas intenções e há os outros. Por mim, se querem saber, é-me indiferente. Se o não comeram em vida, que o comam na morte. Tenho a certeza que vos desassossegará o estômago da alma. Devo ter começado a ler a poesia de Mário Cesariny pelos meus 16 ou 17 anos, pouco antes de ir estudar para Lisboa, por culpa de um amigo que me desancou depois de eu lhe ter dito que não conhecia o Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos: «Há uma hora, há uma hora certa / que um milhão de pessoas está a sair para a rua». Esse meu amigo, agora emigrado em águas não territoriais, julgava ser crime de lesa-poesia eu ter conhecido o próprio Álvaro de Campos antes do poema de Cesariny, que, para ser sincero, constituiu na minha vida todo um programa político ainda por cumprir. Note-se: «O pouco amor que eu tive à burguesia / deixei-o todo numa casa de passe / quando me perguntaram: quer assim? Ou assim?» Só os mais atentos entenderiam estes desabafos wireless: na gasolineira perguntam-se se quero factura. Na portagem perguntam-me se quero recibo. No café perguntam-me se quero copo. Um homem não regressa a casa na esperança de uma vida wireless. Um homem regressa a casa desejando não ter que responder a perguntas inúteis. Ele há coisas que têm a sua hora de ser ditas. Ontem, como hoje, os meus poetas eram esse tal Álvaro de Campos, o Mestre de Sena, o bom, bom, bom O’Neill, o nosso conterrâneo Ruy Belo e algum Al Berto nas febres de sábado à noite. Naquele tempo era assim, se juntarmos a esses a geração Beat, o Baudelaire, o Artaud e mais uma série de mitos imortais. O meu primeiro livro de Cesariny foi, pois está claro, Nobilíssima Visão (edição de 1991, na Assírio & Alvim). Recordo uma discussão tremenda, com alguém que não importa, a propósito de um tal Nicolau Cansado Escritor. Dizia-me o alguém-que-não-importa: «Isso não é poesia!» Respondia-lhe eu, já depois da Migração para a (pena) capital, mas ainda muito timidamente: «Ah / não me venham dizer / oh / não quero saber / ah / quem me dera esquecer // Só e incerto é que o poema é aberto / e a Palavra flui inesgotável!» O alguém-que-não-importa, Deus o tenha no esquecimento, ria-se e praguejava. Lá teria as suas razões. Foi preciso que passassem três anos para voltar à poesia de Cesariny, isto sem nunca a ter abandonado. Titânia, obra em prosa, aportou no país das teorias cansadas como um dos acontecimentos literários do ano. O outro foi a recusa do Prémio Pessoa por um tal de Herberto Helder. Daí para cá, não ouvi falar de outro poeta senão do Herberto da Poesia Toda. Mas eu continuei na minha, atacado daqueles supracitados e cada vez mais de Cesariny: «O diabo português é o diabo mais grosseiro que há, nunca se definiu». Toca de calcorrear as livrarias à procura da Primavera Autónoma das Estradas, do Manual de Prestidigitação, da Pena Capital, etc. A minha paixão pelo surrealismo atingia por estes vinte anos dimensões estapafúrdicas. Escrevi uma coisa em forma de assim, que publiquei, tanto quanto possível, em 1997, a que dei o título de Neoménia. Vinham lá todos os influentes disfarçados em dois afluentes: Álvaro de Campos, António Maria Lisboa. Não me arrependo de, mas ainda tenho vergonha na cara. Coisas de puto da província! Mas voltemos ao que importa. Precisamente em 1997, a Assírio reedita A Intervenção Surrealista. Lá estão Pedro Oom, Fernando Alves dos Santos, Mário Henrique Leiria, entre outros e entre uma entrevista ao Jornal de Letras e Artes (1962): «- Que pensa da literatura portuguesa actual? / - Penso que a literatura portuguesa actual é não só a que enfrenta, e representa, algumas das piores condições em que pode gorar-se a literatura, como é também, ela própria, a pior possível». Era assim mesmo, naquele tempo, quem vivia sem ceder ao Tempo. Mas que sei eu disso? Que posso eu saber disso? Nada, pouco mais que nada. Eu limito-me a viver, a respirar, a consumir, ainda em 1997, a voz de Cesariny, tão bem acompanhado, no mais belo CD de poesia alguma vez editado em Portugal e arredores: entre nós e as palavras, por “os poetas”: Al Berto, Cesariny, Franco Alexandre, Herberto e a tão grande e tão esquecida Luiza Neto Jorge. Um projecto do editor Hermínio Monteiro! Que projecto! Também ele morre mais um pouco, agora por estes dias... Vou vascolhando, um pouco aqui, um pouco acolá. Há não muito tempo encontrei duas antologias organizadas por Mário Cesariny de Vasconcelos: Surrealismo-Abjeccionismo (Minotauro, 1963), Textos de Afirmação e de Combate do Movimento Surrealista Mundial (Perspectiva & Realidades, 1977). Se as virem por aí, não tenham amor à carteira. Mas o investimento mais recente foi outro, um livro do tamanho do mundo, um livro do tamanho de um nome: Mário Cesariny. João Lima Pinharanda e Perfecto E. Curado assinam a obra. A acompanhar o trabalho pictórico de Cesariny, uma antologia de depoimentos de Raul Leal, Rui Mário Gonçalves, Nelson Di Maggio, Cruzeiro Seixas, Rocha de Sousa, João Gaspar Simões, Natália Correia, Mário de Oliveira, Eurico Gonçalves, Lima de Freitas, Manuel Lourenço, Laurens Vancrevel, Édouard Jaguer, Bernardo Pinto de Almeida, Alexandre Melo, Ernesto Sampaio, António Barahona, etc, como este poema de Maria Helena Vieira da Silva:

VIEIRA DA SILVA «PHALA» DE MÁRIO CESARINY

O Mário e eu somos amigos há muito tempo, entre nós a amizade
tem um intermediário/: as gatas, através dos gatos para mim

para mim é muito difícil dizer com palavras o que é o nosso diálogo que é um diálogo
mudo, as palavras do Mário têm grande
peso na minha memória, mas o que eu digo pode-se traduzir
em linguagem de gato
muitas palavras escritas faladas

O Mário é Pássaro é gato é alguém apenas, cada vez menos parecido
com um ser humano

falar do Mário para mim é falar de flor de borboleta de pássaro
e também de gato nunca penso no Mário como pessoa humana e a
nossa amizade
existe através


Vejo a Poesia do Mário muito forte muito densa… mas vejo
e não sei traduzir em palavras, o que vejo
É uma poesia única, como o Mário é Único: em todo o sentido
da palavra.

A Phala n.º 1, Lisboa, Abril, Maio, Junho de 1986.

Bloco de apontamentos #44

Electrocardiopoema
MJLF, Electrocardiopoema, 1997.
Antes de me terem colocado a drástica no estômago, se me zangava comia algo doce para acalmar, se tinha frio bebia um chocolate quente, se me chateava vomitava, qualquer contrariedade era sentida e compensada no estômago. Agora, depois de me livrar de 35kg, quando me zango grito com as pessoas, se tenho frio exijo um abraço, se me chateio choro; é como se tivesse negado ao estômago o seu papel intermediário com o mundo; agora tudo o que está à minha volta invade-me com uma intensidade que por vezes se torna insuportável.

Maria João

Se o Governo esteve no funeral?

Pró caralho mais o Governo. Esteve a chuva. E chega.

J.U. said...

Que dizer... Lembro-me do Cesariny nos anos 80, na segunda metade, quando era um frequentador assíduo de um bar (no Bairro alto) que ficava logo abaixo do Luso, um bar que era completamente fora de moda. Mas nessa altura ele andava rodeado de assessores da cultura do Mário Soares, criaturas abomináveis. E era difícil chegar à fala com ele, pois ele só queria cabritos. Ainda tentei falar com ele do António Maria Lisboa, mas nada e com a agravante de estar rodeado por uma espécie de polícias soaristas que se interpunham, vedavam o acesso ao poeta. Aliás, se repararem bem os poetas mais velhos e consagrados e que gostam ou gostavam de vadiar costumam andar com uma côrte de criaturas deploráveis. Quem conheça o Herberto e tenha convivido com ele nos cafés ali para a Praça da Alegria na segunda metade dos anos 90 assistia ao desfilar de uma fauna que ia de comunistas saídos não se sabe de onde e de outra gente megalítica e só por vezes aparecia um ou outro personagem gratificante, de um Barahona a um César Monteiro. Ainda me lembro de uma longa conversa com o César Monteiro em que me pus a "atacar" os seus filmes, aquele excesso onânico, etc, e no fim ele convida-me para assistente de filmagens, mas entretanto aparece uma loiraça que o envolve e se transforma de repente numa espécie de secretária, de intermediária entre nós. Alta comédia, em suma. Como curiosidade a ligação de César Monteiro a Herberto vem dessa figura para ambos central que fora Carlos de Oliveira. Mas de resto, nessas tertúlias, parava por ali uma fauna de bradar aos céus, que se postava, à espreita, em geral nas mesas que rodeavam a do mestre. O Herberto é um contador de histórias fabuloso, e as de Angola são quase lendárias. E isto tudo apenas para dizer que quando perguntava ao Herberto Helder pelo maior poeta vivo ele sem hesitar afirmava: Cesariny. Mas na sombra de alguém que partiu depois de ter desfrutado tudo que tinha a desfrutar, bem-aventurado, ficou esse outro que foi demasiado cedo e que quanto a mim foi a figura mais potente do nosso surrealismo: António Maria Lisboa. Quando uma tarde dessas perguntei ao Herberto se tinha conhecido António Maria Lisboa ele disse que não. Quando eu no fio da conversa lhe disse que se A. M. Lisboa não tivesse partido tão cedo, etc., etc., ele deu-me a entender que de algum modo ele entregara-se à tuberculose. E tudo isto a propósito de Cesariny.
Comentário deixado aqui.

27.11.06

RUA MAGRA


Os punks da rua amamentam os cães porque os cães não amam o capital. Os cães amam os paralelepípedos - se lhes pedem patinha porquanto osso de roer. Quando eu desço acorrem-me aos braços por abelhas extintas, arranjos florais luzentes. Luciluzem-lhes os cabelos, digo, têm infâncias remotas com peixinhos. Eu gostava de gothic, heaven’s rua Fernão de Magalhães 120 Porto. Vinha do negrume a um prato de arroz com morangos, que artifício lindo. O meu degredo e o teu. States Coimbra, hoje strip club e quando trafiquei o disco, não via nada. Deixei o corpo ao fundo da garagem. Mais tarde estava lá, um pouco afundado em tratamento esconso, nil remorso. Nihil. Depois de tudo, candeeiros, bitaites, mulheres a fio na calçada. Foram colares, móveis, caixas de carregar os que ainda era condição de mover. E pousadas, carros, óculos partidos de ver até ao outro mundo. Um aquário ao rés do jardim, completamente investido nos destroços, na porcaria da tua namorada. Morta. O desplante! Desocultar as sombras assim tão devagarinho. Se queres, vais ter. Sequelas baixas, um torpor de morrer, o cão que ainda sorri ao arremesso do mundo. Vidros coloridos, a terra e o céu se tu me tocas. Uma coisa tão parola, tipo, não sei___
alegria imensa pairando sobre todas as coisas


Rui Costa

Cesariny, um Cadáver-Esquisito:

(aqui)

Cesar inyciou a subida. Cesariny chegou hoje a Elsinore. Gostava de ter daquelas mortes boas, em que uma pessoa se deita para dormir e nunca mais acorda... Morreu esta madrugada um Homem completo, maior. Não há morte na morte de Mário Cesariny. 1923-2006. Uma vida inteira. Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada! Neste momento todas as palavras seriam excessivas. Ama como a estrada começa. A morte propriamente não existe. Se morreu, morreu... é o momento! O surrealismo foi ainda um modernismo. E esse modernismo está a morrer. Não sou um adepto confesso do surrealismo. Porque tu és o dia porque tu és. Se a morte de cesariny significa a morte simbólica do surrealismo português a partir de agora deve ser muito mais simples visitar uma qualquer repartição. Como acabar com um corpo corajoso e humílimo morto em pleno exercício da sua lira? Quando ouvi falar pela primeria vez de Mário Cesariny (na TSF, recitando poesia sua, há não muitos anos) o país cresceu, literalmente fiquei com a sensação de que se tinha acrescentado uma província ao pequeno Portugal que conhecia. Por que escrevi um poema? Cesariny foi pouco amado e muito rotulado. Pelos literatos, e pela polícia por quem foi perseguido e tratado como uma puta. Surrealista e homossexual foram os rotulos de que os sistemas literários e político-políciais se serviram para arrumar a sua obra. Da importância dos seus poetas os portugueses são informados na ocasião da sua morte. Hoje à noite, ao jantar, deixarei cair no chão a primeira gota do copo de vinho. E quando for anunciada a criação de um PRÉMIO CESARINY cá estarei para levantar a gola do peludo e rir de tudo. Aqui no Mal fizémos o que devíamos. Na rua deserta por detrás da Estação Nova, em manifestação convocada por sms a que todos faltaram, atirámos ao rio palavras que ele tinha desemparedado... Assim, sem ir à estante, aos títulos, às páginas, faço gotejar a memória, porventura com alguma palavra inexacta: O jovem mágico das mãos de ouro desaparecido nu de todos os sítios da Terra. Contudo e já agora penso que os gatos são os únicos burgueses com quem ainda é possível pactuar — vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista! Servem-se dela, mas do alto, desdenhando-a... Não digo como o outro: sei que não sei nada sei muito bem que soube sempre umas coisas... É preciso dizer rosa em vez de dizer ideia... Talvez ele quisesse projectar mais uma vez essa trilogia fundamental do surrealismo: Amor, Liberdade e Poesia. Hoje, o surrealismo é "ce qu'il sera", mas o nosso mundo continua a precisar desse lema. O que mais o caracteriza é a provocação. Venha a estátua e o seu nome dado a um importante equipamento cultural da capital (Carmona Rodrigues) que a provocação ainda perdura. Durou 83 anos. Fez o que pôde e como pôde para exemplificar que as palavras que de facto contam passam pelos continentes da liberdade, do amor humano e do espírito sem algemas. Cesariny artista poeta já deixou de morrer. Eu acho que se se é surrealista, não é porque se pinta uma ave, ou um porco de pernas para o ar. É-se surrealista porque se é surrealista! Alegre triste meigo feroz bêbedo. E porque a morte biológica pode ser apenas mais uma semente... já tenho a agua, o leite e os cigarros. falta-me ainda o espaço no jazigo. quando tiver eu ligo-te. É apenas isto: assinalar os dias e as noites, as correntes que os juntam e os separam. Antes, dizia, aplaudiam-no muito, mas depois deixavam-no ir para casa sozinho. Sentia-se sozinho. Ainda mais sozinho desde que lhe morreu a irmã, Henriette, oito anos mais velha e companheira de uma vida inteira. Desde que os cafés passaram a ter televisão aos berros, impedindo-o de ir para lá escrever poemas e conversar com os amigos que apareciam. E desde que deixou de foder. Estar para aqui a debitar palavras bonitas na morte de Cesariny daria direito a que ele me mandasse tranquilamente para o caralho. Dele diz-se que a obra se confunde com a sua vida. Os poemas reunidos e definitivos de Mário Cesariny ficarão como um dos dez ou doze momentos excepcionais de um século excepcional na poesia portuguesa. Lembra-te que todos os momentos que nos coroaram todas as estradas radiosas que abrimos irão achando sem fim seu ansioso lugar... Em todas as ruas te encontro em todas as ruas te perco... Mesmo, ou sobretudo, nestas ruas tao distantes, e que um dia ja foram percorridas pelos marinheiros do poema. Mais secos e áridos, todos nós, na morte de um dos últimos homens verdadeiramente livres que ainda andava por aqui. Solene é a poesia do rato, a morte uma paródia meta-narrativa. Lugar-comum verdadeiro: poetas e romancistas não morrem. Nós é que morremos um pouco, se não deixarmos que eles nos tornem vivos enquanto ainda podemos sê-lo. A morte de Cesariny foi anunciada hoje e já há perto de 150 referências a MCV nos blogues da blogspot. Ontem às onze fumaste um cigarro... Não irei ao funeral porque o Cesariny não merece essa maldade. Nunca estive tão só diz o meu corpo... cada qual procure com cada um o poente que lhe convém e vão todos para casa ler Cesariny, “que ainda há passeios ainda poetas cá no país!”

A política

Terá alguma vez a política sido solidária? A espaços, somente a espaços. A política é uma actividade humana. Quem quiser, tire daqui as suas conclusões.

A política

A política, tal como é praticada nos dias de hoje, conspurca tudo. Onde mete as mãos, a política borra, estraga, arruína. A solidariedade, o voluntarismo, já não são política. São um modo de sobrevivência. No fundo, a política morreu.

OS MÂNFIOS

E ao fundo dos sonhos, que fica ao fundo dos sonhos? Os mânfios de sempre. Têm estilo, é certo. Ninguém lhes nega o estilo, de tão só estilo estiolado que são. Têm um estilo que se aproxima de uma certa forma de instruir o crime na beleza, a tese de uma libertinagem de pacotilha, cheia de autoridade de si própria, mas receosa do tiro, da porrada, do escarro contra as trombas de uma pedantice que não se aconselha nem aos piores inimigos. Eles andam aí, os mânfios. Cumpre-nos olhá-los e, quando possível, aproximarmo-nos cuidadosamente para logo de seguida lhes desancarmos uma biqueirada nas trombas. Eles andam aí, insinuados, concedendo um lugar à pesporrência mais da treta, são as Marias Cantigas na primeira fila da Igreja, amigos de, privados de, sabedores de tudo o que os outros não vêem, não sabem, não alcançam. Eles andam aí, os mânfios. Parecem regateiras, coitados, tão provincianos decorados de urbanidade, adoptados de um discurso tão corrosivo quão inócuo, supremamente anódino e inconsequente. Eles andam aí, tão só estilo estiolado que são. Palavras, verborreia, creme hidratante, incontinentes verbais. Falta-lhes a vida dissoluta de quem bebe, bebe, bebe, para acalmar a vida, de quem fuma beatas dos cinzeiros à luz pardacenta de um dia sombrio, falta-lhes o negócio das estradas corridas, são já só horas gastas a ver por onde pode a Babilónia entrar. Falta-lhes a berma da estrada, à chuva, com os dedos aquecidos pela ponta do cigarro. Há tipos que, definitivamente, não sabem envelhecer. E depois dizem que os outros não têm vida.

26.11.06

Mário Cesariny de Vasconcelos 1923-2006

Mário Cesariny, Este é o meu testamento de Poeta, 1994.


coro dos maus oficiais de serviço
na corte de epaminondas, imperador



uma morte loura
simpática
acolhedora
que não dê muito muito que falar
mas que também não gere
um silêncio excessivo


uma morte boa
a uma boa hora
uma morte ginasta tradutora
relativamente compensadora
uma morte pedal espinha de biciclete quase carapau
com quatro a cinco sôltas a dizer
que se êle não tivesse ido embora
tão jovem tão salino
boas probabilidades haveria de ter
de vir a ser
dos melhores poetas pós-fernandino

vá lá vá lá Mário
uma morte
naniôra
que não deixe o esqueleto de fora como nos casos do mau gôsto
os esqueletos têm sempre um quê de arrependidos
se bem que por aí já convinha lá isso já também era verdade


o demais demora
e
francamente
nunca será teu

vá vá vamos embora

custava-te menos agora
e ainda ias para o céu

Mário Cesariny, in Manual de Prestidigitação.

25.11.06

A vida

A vida é uma história. Cada um narra-a como sabe, cada um pontua-a como pode. A ortografia da vida é a imaginação.

MANA CALÓRICA

foto: Henrique Monteiro

A banda MANA CALÓRICA agradece às 400 pessoas que se materializaram na Casa das Artes de Famalicão para assistir ao concerto do dia 24 de Novembro. A gente curte ser a maior banda do mundo.


Rui Costa

24.11.06

IVG # 14

Tenciono escrever um texto sobre a questão do aborto explicando a minha posição, quando o Presidente da República convocar formalmente o referendo. Devo esclarecer que se em 1998 votei não, no próximo referendo votarei sim. A mudança de opinião numa matéria tão sensível como o aborto tem uma dimensão pessoalmente dramática que não pretendo minimizar. A minha posição não é a mesma e isso, confesso, não me deixa indiferente. Tenho aprendido que as nossas convicções devem ser sempre cuidadosamente testadas e reanalisadas. Perante os factos, perante nós mesmos, perante outros argumentos. Não se trata de insegurança nem de oscilação. É uma questão de prudência. Não conheço argumento mais conservador do que a prudência.
Pedro Lomba, in Vício de Forma.
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Do trabalho

Nada há mais detestável que um burocrata armado em competente. Falso. Um burocrata competente é bem pior.

Bloco de apontamentos #43

Maio Moço
MJLF, Maio Moço, técnica mista s/papel, 30x21cm, 1995.

O gato Plácido reapareceu na janela da marquise – já não o via desde o Verão e está com muito bom aspecto, com o pêlo luzidio; nota-se que arranjou quem cuide dele e não tem apanhado chuva de certeza. Eu continuo a dar-lhe biscoitos, mas nada de confianças, não estou para levar dentadas. A Lua não o quer aqui em casa e só gosta de o observar através do vidro; ele fixa-se com os olhos nela, sempre pronto a atacar com um ar furioso. Ontem não tinha biscoitos, ele exigiu-os continuamente em miados graves, profundos e por fim, quando se fartou, fez uma mijadinha na porta de modo a que o cheiro se sentisse em todo o atelier. Raios parta o machinho, isto de demarcação de territórios dos gatos é terrível.

Maria João

Está de Shiva

Shiva

EM DIA BRADO

Eu barco bêbedo rimbaldiano
atracado aos balcões de tascas e bares.
Eu hiper hipocondríaco posto de castigo
a uma janela com vista para a morte.
Eu nó cego de contradições.
Eu com um globo debaixo do braço
a estilhaçá-lo de encontro a uma parede.
Eu de mãos no fogo e corpo estendido na grelha.
Eu tétrico libertinário
num tempo de falinhas e falos mansos.
Eu electroselvagem com o estômago ronronante
em seminários de civilidade.
Eu herança genética das incompatibilidades
entre o meu pai e a minha mãe.
Eu heterónimo póstumo do Fernando Pessoa
no expediente a trabalhar num escritório inglês
e nas horas livres a trabalhar a cirrose.
Eu poeta demo’neíllico.
Eu e as minhas noitadas nim.

Eu em dia brado.

Vitor Vicente

Vítor Vicente nasceu em 1983 no Barreiro. Frequentou o curso de Filosofia da FCSH e da FLUL. Estreou-se na poesia com um pequeno folheto, intitulado Tríptico do Narciso, publicado em Abril de 2006 na editora Canto Escuro, projecto editorial que dirige desde 2005. Escreve crónicas literárias para o Notícias do Nordeste. Vive, neste momento, em Barcelona.

23.11.06

SEM ESPINHAS

Peixe
É teatro, comunicação ao texto. Eu olho para o Presidente e digo assim: Presidente, tu tens os olhos todos por fora da cara. O Presidente não percebe e, enaltecido de receios, sorri a mim. E diz: tu és um homem inteligente. E também: é pena que sejas um pouco desligado, quer dizer, parece que tens potencial mas não o queres utilizar.»

Eu pergunto:
Presidente, queria dizer potencial ou virtual, não serei eu uma actualização do virtual, já que o potencial não existe e o que existe não resulta da potência, que afinal nunca se vê, mas das virtualidades do amor?

O Presidente fica ligeiramente incomodado,
não tanto por ter que decidir se vai responder a nível infra-estrutural, mas sobretudo porque queria um sinal meu, um pequeno aceno da cabeça (como se costuma dizer) que confirmasse o seu intuito de me ajudar__

É aqui que eu (sabido na mentira) me distingo do resto da humanidade, digo ao Presidente. Que se um indivíduo tenta ajudar-me, Presidente, eu fico logo turbulento e sinto uma urgente vontade de o matar. _____Só me lembro de mais uma coisa que lhe queria dizer: não são lindos os pontinhos luminosos que temos por em cima da cabeça?


Rui Costa

Fixação

Muitas pessoas mantêm com a localidade onde nasceram uma espécie de complexo de Édipo. Fixam-se de tal forma nas memórias que têm do local, que a aversão que lhe mostram no presente não é mais do que um amor velado que lhe trazem do passado.

Estratégia

Conheço pessoas que passam a vida a dizer mal do que amam. E outras que dizem muito bem do que odeiam. É tudo uma questão de estratégia.

Mérito

Há medalhas de mérito para tudo e mais alguma coisa. O mundo estará equilibrado quando os que não têm mérito algum receberem medalhas por isso.

Da competência

Somos o país do mundo mais competente a denunciar incompetentes. No fundo, só somos mesmo competentes a descobrir defeitos nos outros. Ou como diria o meu pai: cala-te e trabalha, pá!

22.11.06

Raramente têm dúvidas e nunca se arrependem.

Ao ver a notícia dos 7054 civis mortos no Iraque durante os passados meses de Setembro e Outubro, lembrei-me de muitos rostos. Não são rostos de mortos, mas rostos de vivos. Gente que apareceu nas primeiras filas da TV, nas páginas de opinião dos jornais, na rádio, a defender aquela invasão, a defender aquela guerra. Arrependam-se, é a única coisa que podem agora fazer pelos mortos.

IVG # 13

Estou disposto de discutir a despenalização do aborto, porque deve e pode argumentar-se sobre ela como seriedade. Sobre a questão lateral mas pertinente, por exemplo, de se a despenalização não põe uma mulher grávida, frágil, à mercê de pressões para fazer o que ela não quer; e sobre a questão central de se uma pessoa em potência merece protecção ou não. Mas com quem insiste em chamar um embrião pessoa, não posso discutir. Crenças irracionais não estão ao alcance de argumentos. Só resta combatê-las, isto é, combater a sua influência na nossa sociedade.
Lutz Brückelmann, in quase em português.
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O QUE É POESIA

A cidade medieval, com faixas
dos jovens escoteiros de Nagoya? A neve

Que apareceu quando queríamos que nevasse?
Imagens belas? Tentando evitar

Ideias, tal como neste poema? Mas nós
Voltamos para elas como para uma esposa, deixando

A amante que desejámos? Agora eles
Terão que acreditar nisto

Tal como nós acreditámos. Na escola
Todo o pensamento foi eliminado:

O que deixaram era como um campo.
Fecha os olhos, e poderás senti-lo à distância.

Agora abre-os num fino carreiro vertical.
Em breve poderá dar-nos – o quê? – algumas flores?


Versão livre de HMBF.

John Ashbery

John Ashbery nasceu em Nova Iorque no ano de 1927. É autor de mais de vinte livros de poesia, tendo-se estreado em 1953 com Turandot and Other Poems. Recebeu o Pulitzer Prize for Poetry em 1975, pelo livro Self-Portrait in a Convex Mirror. Publicou também peças de teatro, ensaios, um romance. Estudou em Deerfield, Harvard, onde foi membro do Harvard Advocate, e Columbia. Em Harvard tornou-se amigo de, entre outros, Frank O’Hara, tendo sido colega de sala de Robert Creeley. Trabalhou como editor e foi crítico de arte no New York Herald Tribune, de Paris. Bastas vezes premiado, foi o primeiro poeta de língua inglesa a vencer o Grand Prix de Biennales Internationales de Poésie.

21.11.06

Deixar de fumar

Comecei a fumar ainda muito miúdo, às escondidas, uns cigarros conhecidos pela inspirada designação de Mata-Ratos. No caso, só alguém de muito má fé poderia processar uma tabaqueira com um nome tão pouco persuasivo. Quando não conseguia sacar os Mata-Ratos a um amigo, que, por sua vez, os extorquia ao pai, fumava barba de milho enrolada, imaginem, em carrinhos de linha. A primeira vez que travei deu-me uma martelada cá na peitaça que julguei ter ficado para sempre com o tórax junto ao queixo. Os anos foram passando e as marcas sucedendo-se: Camel, Marlboro, Ventil, Português Suave. Acontece que sou asmático. O tabaco faz-me um mal danado e há muito que tento abandonar o vício. Nunca fui fumador de mais que um maço por dia, faço interrupções frequentes, pois tem semanas que o catarro é tanto que só de levantar o braço para levar um cigarro à boca já me falta o ar. Tenho andado numa dessas fases, o que significa que não fumo para aí há uma semana. A minha mais velha diz que o pai tem lixo na garganta, a outra não diz nada (fez ontem dois meses). Vem isto tudo a propósito de uma coisa que me passou hoje pela cabeça: desta é que vou mesmo deixar de fumar. E já sei como. Só não sei até quando.

Amigos de infância

Alguns amigos de infância, felizmente poucos, provocam-me vómitos. Como pode um homem dormir bem quando constata ter passado os melhores anos da sua vida ao lado de gente tão indigente, arrivista e pedante? Este país está mesmo podre. Quando vejo tipos que nem um ovo sabem estrelar contratados para gerirem aviários, tudo porque a cor do cartão coincide com a cor do poder, dá-me ganas de emigrar para um longe daqui que fosse bem perto do esquecimento absoluto. Agora chamem-me invejoso.

ESPINOSA, MEU AMOR

Falava-se de elegância, não era. Tenho-a bífida, activa, sou a mónada galante a escavacar metáforas. Tratá-las como bichos, elas a si também, minha senhora: Sempre a dar gramática. O mar.

Depois (é) a face da lua. Um homem que inclina os braços, não fala de trabalho. Tem uma espécie de roupa sobre a pele, aguça os instintos e indica-lhe uma catedral. E você entra, (minha senhora), por esta altura já só pensa amá-lo. Havemos de rir, que tal correu o dia, ofereça-me o código para o paraíso__Estamos dentro de uma catedral, tem a consciência disso? Não vejo televisão, há quinze anos que não, por vezes dou um ar provinciano mas não é por mal. Ui que se assustam as minhas amizades!

Quando mordo mesmo não aviso, trabalho pouco. Você nota-me o talento nas mãos. Nem sabe quanto lhe agradeço. Um livro de BD, pode ser de Boucq. Um disco de Mana. Onde pôs a minha maçã? É tão breve a água a reparar contornos__

Agora estas vozes ficam a dialogar com o seu silêncio. Se um dia voltarmos a esta catedral, vai ver – estarão crescidas, como os bons filhos concretizam a beleza dos pais que nunca viram. BEIJÁ-LOS-EMOS COM A ADMIRAÇãO DOS INDIGNOS. A solidão apura o perfil das formas, a tristeza devolve o imperfeito ao esquecimento______Ah minha senhora__ se escutásseis o esforço que faço para que a mais ínfima linha permaneça por dizer!!

Fujamos. Alinhemos nossos corpos com a próxima onda.


Rui Costa

Penas que escrevem

Penas de Aço

Homens que são como lugares mal situados
Homens que são como casas saqueadas
Que são como sítios fora dos mapas
Como pedras fora do chão
Como crianças órfãs
Homens agitados sem bússola onde repousem

Homens que são como fronteiras invadidas
Que são como caminhos barricados
Homens que querem passar pelos atalhos sufocados
Homens sulfatados por todos os destinos
Desempregados das suas vidas

Homens que são como a negação das estratégias
Que são como os esconderijos dos contrabandistas
Homens encarcerados abrindo-se com facas

Homens que são como danos irreparáveis
Homens que são sobreviventes vivos
Homens que são sítios desviados
Do lugar

Daniel Faria

Daniel Faria nasceu em Baltar, Paredes, no dia 10 de Abril de 1971. Licenciado em Teologia e em Estudos Portugueses, faleceu com apenas 28 anos, a 9 de Junho de 1999, quando era noviço no Mosteiro de Singeverga. Estreou-se em 1992, com um pequeno volume intitulado Oxálida. Recebeu vários prémios literários relativos a inéditos de poesia e conto. Colaborou nas revistas Atrium, Humanística e Teologia, Via Spiritus, e Limiar. A sua obra poética encontra-se reunida num volume editado, em Novembro de 2003, pelas Quasi Edições.

Ah, a coerência!

Não sei se alguém ainda se recorda, mas há não muito tempo houve para aí uma grande algaraviada sobre denúncias anónimas. Em crónicas de inspiração inquestionável os caluniadores foram apelidados de invejosos, cobardes, canalhas, medíocres, desavergonhados, etc. Ficamos à espera que quem assim falou, volte a fazer uso dos mesmos adjectivos para vituperar o, a ou os, autor, autora ou autores, da carta anónima que está neste momento a pôr em causa o bom-nome e anos a fio de trabalho honesto de um empresário de futebol que me abstenho de nomear.

O que é a loucura?

É uma louvação à vida que nos cura da normalidade.

20.11.06

MENOS QUE POESIA

Temos tudo. Dias que
quase nos merecem, risos ou
as nuvens que voam. Coração
(coroado) a incerta desgraça, mais ou
mais ou menos lêveda, mais ou
menos passageira. Os cimos.

Puxadores de portas lembram-nos
a importância das passagens.
Dormimos. O sono venceu as
saudades, quase sinto vergonha; e
sonho-me espiral em demonstração
de esforço teorema compensando o
mal.

Falta-me um corpo para
saber que existo. Por isso escrevo,
mentindo sempre tanto. E sei a
ponta dos teus dedos. É tão pouco
para um poema, não é?

Rui Costa

18.11.06

Morrer de loucura

Houve um tempo em que era tabu dizer-se que uma pessoa tinha morrido com SIDA. Falava-se de doença prolongada. Os tempos parecem ter mudado, pelo menos relativamente, e hoje já se ouve com mais frequência a referência à doença nos obituários do mundo. Só a loucura parece resistir a esta mudança. Nunca se ouve dizer que alguém morreu de loucura. E no entanto…

Tabu

Em defesa da boa imagem do Cazaquistão e do bom-nome dos cazaques, os russos proibiram a estreia do filme «Borat» em suas imaculadas terras. «Borat» é a saga levada à cena de uma das personagens do comediante Sacha Baron Cohen. Não gosto de Borat, mas gosto muito menos da censura. Depois da polémica dos cartoons já houve a polémica em torno do cancelamento de uma ópera de Mozart. O que para aí não faltará é filmes proibidos, obras amaldiçoadas, risos censurados. Dir-me-ão que estas coisas não têm nada que ver umas com as outras, dir-me-ão que os russos estão no direito de proibirem o que quer que seja. Prefiro interpretar o gesto como sinal de um fenómeno de retrocesso cada vez mais patente no mundo. Chamo a esse fenómeno o preço da liberdade, ou seja, quando a liberdade é exercitada nos seus limites, seja em que circunstância for, o preço a pagar por isso é a censura – seja esta mais ou menos subtil, mais ou menos legitimada pelo regime político que a executa. A liberdade não devia ter outro preço que não fosse o da responsabilidade. Porém, quer no mundo dito incivilizado quer no outro, dito civilizado, essa responsabilidade é suprida de múltiplas formas. Censura-se proibindo, ostracizando, silenciando, marginalizando, etc. Borat é só mais um exemplo de que o riso ainda assusta muita gente. Tal como o terrorismo, o riso ainda mantém a sua carga sinistra e diabólica. Se o lugar das vanguardas for de facto o lugar do terrorismo, então ele será também, numa das suas instâncias, o lugar do riso na sua dimensão mais profanadora.

Os génios

Platão deu o nome a um tipo de amor, Dante é ao mesmo tempo sinónimo de grandioso e terrível, Maquiavel serve para adjectivarmos a perfídia de um Estado, Kafka surge sempre que nos referimos ao triste mundo burocrático e Beckett é, por si só, a nomeação do absurdo. Por outro lado, ninguém ousa falar hoje de arte contemporânea sem referir Duchamp. E quem se atreve a pensar o silêncio sem mencionar John Milton Cage? Os génios são uma vida convertida em lugar-comum.

Câmara Clara

Ontem falou-se de poesia na televisão. Falou-se da relação sempre difícil entre televisão e poesia, lembrou-se o trabalho de Manuel Hermínio Monteiro, citaram-se editoras, elegeram-se poetas, sugeriram-se livros, discutiram-se recitais. Já opinei sobre este tema dos recitais, afirmando que os poetas portugueses, na generalidade, não sabem ler em voz alta. Manuel Antónia Pina foi a confirmação desta ideia, deixando-se levar pela comoção ao ler um poema em memória de Manuel Hermínio Monteiro. O momento foi bonito, a leitura foi péssima. A comoção engasgou o poeta, a voz tremeu-se-lhe, as palavras só muito a custo foram arrancadas ao pulmão. O próprio disse preferir o silêncio das palavras às palavras com voz, posição, de resto, similar à de poetas como Joaquim Manuel Magalhães que dizia ter a poesia «pouco a ver com teatralizações da voz e, sobretudo, nada a ver com a pacatez de gente colectiva sentada a ouvir». A cada qual as suas razões. Eu cá continuo na minha, depois de ter assistido recentemente à violentação de um poeta e ao tremor de um outro no confronto com as suas próprias palavras, julgo que o melhor será mesmo evitar tais momentos de televisão e optar pelos recitais nas casas de má fama. Ainda assim não posso deixar de fazer notar aquela que foi, quanto a mim, a afirmação da noite (à excepção das citações de Valéry, Borges e Winnie the Pooh). Nuno Artur Silva é o autor do feito, ao afirmar, num breve momento de maior excitação, que «a poesia raramente acontece nos livros». Ok.

aderir ao eterno instante

17.11.06

Fragmento #40 – Cadeirão individual

A minha colega de carteira no secundário telefonou-me um dia para a ajudar a estudar na véspera de um teste. Saí de casa após o jantar, com os livros de geografia na mão e percorri o mapa que me era habitual na altura: fui para fora da muralha romana rumo ao bairro da moraria, com as suas ruas sinuosas, os televisores com o telejornal, o som dos pássaros ao fim da tarde e os miúdos a jogarem à bola nas calçadas. Na casa em frente da minha colega, àquela hora ouviam-se sempre gritos, por vezes alguém deitava restos do jantar pela janela fora, ou torradas queimadas, ou algum objecto voava e partia-se nas pedras da rua – a violência sempre me assustou, sobretudo quando se passa entre portas. Bati à sua porta e a avó atendeu-me, indicando-me o quarto de onde inesperadamente ouvi várias vozes e o som da aparelhagem de vinil a tocar. No interior do quarto, deparei-me com a minha colega e um namorado, mais dois casais muito entretidos e eu com os livros na mão a pensar no teste de geografia do dia seguinte. Cumprimentei toda a gente, observando onde me poderia sentar naquele mapa, descobri um cadeirão individual à minha espera; puxei de um cigarro e por ali fiquei como se nada em meu redor me dissesse respeito; olhava os livros no colo entre cigarros, já sabia que era uma ilha à muito tempo e que os outros também o são; tentei não dar importância ao que se passava. No fim daquela sessão, voltei para casa triste e sem saber o que pensar, não me lembro do que aconteceu no dia seguinte, mas acho que tudo seguiu no seu rumo natural. Durante muito tempo pensei que a colega era a minha melhor amiga, visto que a conhecia desde a infância, mas só mais tarde me apercebi que muitos amigos são apenas portos de passagem e nada é eterno. Entretanto, construi mapas por mares nunca antes navegados como qualquer portuguesa que tem curiosidade em conhecer o mundo, mesmo que seja em estado contemplativo. À medida que isso acontecia, apercebia-me que são poucos os amigos que crescem com vontade de compartilhar alguma coisa no momento presente, alguns tornam-se apenas passado. Por aqui vive-se numa civilização antiga em que tudo se encontra enterrado por descobrir, está tudo por camadas e por escavar; é por isso que os arqueólogos ainda arranjam emprego – e os antropólogos também têm muitos esqueletos para estudar. O momento presente neste país tem sempre um excesso de passado histórico, devo pensar assim porque dei cabo de muitos sapatos a percorrer as ruas de Évora durante os anos em que lá vivi. Quanto à minha colega, separámo-nos no primeiro ano da universidade porque tomámos rumos de vida diferentes. Um amigo telefonou-me na altura, estava doente a morrer, mas não me disse, deu-me sim uma enorme lição de vida avisando-me que eu não me podia rodear de pessoas que me querem comer energia, porque sou muito mais forte. Ele deixou-me como herança a paixão pela pintura. Telefonei à minha amiga quando ele morreu, mas ela não foi ao funeral, nunca entendi porquê. Entretanto, desisti de intervir na vida dos outros, sobretudo quando me sinto impotente ao observar a geografia onde se encontram; por vezes tento avisar de alguma coisa, mas normalmente não me dão ouvidos e ainda por cima me interpretam mal. No entanto, na despedida de solteira desta rapariga perguntei-lhe como é que ela podia confiar e se ia casar com um homem que já tinha encontrado em sua casa na cama com uma amiga da mãe. Perguntei-lhe se não seria uma grande falta de respeito por ela própria e pelo mundo. Ela não me respondeu, sorriu apenas cinicamente e aqueles olhos estavam num vácuo muito estranho. Encontrei-a há pouco tempo num concerto e os seus olhos estão iguais, limitei-me a cumprimentá-la com civismo. Outro amigo já me tinha avisado que ela mergulhou num deserto há muito tempo. Ele também já morreu, estava muito doente e não me disse quando me procurou antes de partir, deu-me também uma grande lição de vida ao pedir-me para escrever. Hoje escrevo e pinto, a minha geografia vai-se alterando todos os dias porque sei que apenas é importante alguns momentos de ternura que vivemos e compartilhamos com os que amamos.

Maria João

Das palavras

Os bebés são assim. Os adultos também. Mas nos adultos isso é defeito.

Das palavras 1

Tornamo-nos adultos quando começamos a ter medo das palavras, quando as palavras nos oprimem e medimos muito bem aquilo que dizemos. Não temer as palavras é sinal de infantilidade. Daí que a principal característica de alguns poetas seja a infantilidade, na medida em que não temam as palavras. Quem raramente mede o alcance das afirmações que profere arrisca-se a sofrer alguns dissabores.

Das palavras 2

Dou muito menos importância ao que digo do que à forma como o digo. Aquilo que dizemos é principalmente a forma como o dizemos. Se dissermos a um bebé, com ternura e alegria, que o odiamos, ele vai pensar que lhe estamos a dizer uma coisa muito boa. Ele interpreta o que ouve a partir da percepção que tem da forma como as coisas lhe são ditas.

Das palavras 3

Grande parte dos conflitos quotidianos acontece devido a falhas de interpretação, isto porque muitas vezes dizemos as coisas de um modo errado ou porque, pura e simplesmente, quem nos ouve não sabe ouvir. Os nossos interlocutores sentem-se ofendidos. Se o disséssemos de outra forma, muito possivelmente, eles sentir-se-iam elogiados. Como em tudo, o problema nunca é o objecto. É sempre o uso que se dá a esse objecto.

Cara nova

Pede-se o favor aos prestimosos utentes deste weblog que deixem eventuais reclamações na caixa de comentários.
Adenda: obrigado a todos pelas sugestões. Acho que vou ficar por aqui. Inté.

16.11.06

A peça do paneleiro

Embora julgue muito interessante o facto do autor ter sido assassinado pelo amante com uma série de marteladas na cabeça, gostaria de saber se vale a pena ir ver a peça.

MAYAKOVSKY COMEÇA

Hoje
as folhas arrancam-se das árvores,
e o eixo
da terra
muda o seu ângulo,
e a floresta
torna-se um casaco de pele de raposa –
batida pelo vento
e dourada de lés a lés.
E no assobio
dessas ventadas brutais,
que levantam e arrastam
um rastro poeirento, -
o escritor
pensava em sobretudos
e mais roupas
nos ombros dos outros.
Ser escritor –
não é a arte do lucro,
e o rublo domina
o nosso tempo.
Aqui
revelar-se-ão os falsos,
afundar-se-ão –
os que amam a poesia.
Mas
para quê fazer acusações?
O corpo precisa
de nervos
e humores.
O país era luz,
mas eles eram sombras
pois a luz sem sombras
não pode existir.
Pois então que existam
mas não me incomodem,
e se
delas não escrevo agora, -
firme a minha força,
dura a minha pele, -
cultivo a terra
para o nosso futuro.
Para uma nova
era de alegria –
densa semente escolhida
do homem -
de joio
e de cardos
liberta
e limpa.
Que não haja nela
nem condições
nem lugar
para lacaios engraxadores,
hipócritas e mentirosos,
para palavras aduladoras
e gestos covardes,
para que à vista desarmada
o homem conheça o homem.
Para que um Mayakovsky,
sorrindo,
através dos séculos
abra sempre caminho…
E o seu nome será
- eu sei! –
ó vindouros da terra,
dado
a qualquer estrela.
Tradução de Manuel de Seabra.

Nikolay Aseev
Nikolay Aseev nasceu em Lgov, na região de Kursk, em 1889. Estudou filologia nas universidades de Moscovo e Khárkov. A sua primeira colecção de poemas, Flauta da noite, foi publicada em 1914, já depois de ter conhecido Mayakovsky. Colaborou na publicação da revista Lef e foi autor de muitos importantes trabalhos de teoria poética. Faleceu em 1963.

Naquele tempo é que era bom:

Postcard
Eu não vivi no país com postcards de meninas deslavadas, carneiros surrados e mãos inchadas. Eu sou desse país de estrume, caldeiras velhas e elegantes parelhas de cornos.
Mulheres
Eu não vivi no país de mulheres sentadas em burras, pousando para a fotografia, em exposição na feira da aldeia. Eu sou desse país das feiras, fato domingueiro e burras cansadas.

Teatro

Eu não vivi no país em que as charruas serviam de palco para peças duvidosas e actores improváveis. Eu sou desse país subsidiado até nos pobres teatros e nas desgraçadas representações.

Carro

Eu não vivi nesse país em que as mulheres se reuniam para lavarem o único carro da aldeia. Eu sou desse país reunido em torno dos veículos do patronato, dando lustro à vocação de povo de limpezas.

VARANASI


Este sítio é uma biblioteca. A rapariga levanta-se, vejo-lhe a barriga. Olha o computador, depois, e não lê. Tenho a certeza que não lê. Pensei oferecer-lhe um livro, assim desisto. De que serve?

Estão a perceber, é assim que começam todas as histórias. Não podes é deixar-te levar pelo impulso do começo, ter os olhos muito abertos a percorrer a casca muito fina. [No entanto o impulso não desaparece].

O namorado olha para mim; finjo continuar a reparar na presença dela. Não quero desiludi-lo, é por certo indeciso e provavelmente o corpo é uma matéria ardente. Agora faço parte do que não sabem chamar: estratégias de sobrevivência. Sem querer - não estou sozinho - Adoptaram-me. Não que eu quisesse. Sou incapaz de alimentar imagens por mulheres com sonhos perto. O sonho deve ser uma matéria ardente.

Foram-se embora__ Introduzo o tempo no relato. É muito desagradável usar os verbos com intenções tão claras: Foram-se!

Acho que já disse tudo. Talvez que esperavas uma espécie de disparo universal, do tipo: levam-me com eles, ficam-se comigo. Sei, porém, que não és tão ingénuo: querias ver a forma como sou capaz de dizer isto; ou não dizer; se me espalho na parede onde me recolhes com a espátula ou o teu colo feito de ternura.

Hoje não me leias.

Constrói-me tu sozinho, faz de conta que não preciso de cuidado. Mas dobra-te, consulta a paisagem, toma conta de ti.

O amor de um homem pela sua sombra é uma matéria ardente.

Rui Costa

Fragmento # 39 – Telhado

Quando tinha vinte anos apaixonei-me por um rapaz daqueles que se acha piada aos vinte, mas numa festa em minha casa ele fez-me o favor de preferir uma amiga minha; no dia seguinte, ela disse-me que tudo aconteceu porque ambos eram mesmo assim e ninguém pertence a ninguém. Eu compreendi e limitei-me a observar o desenrolar dos factos sem julgamentos precoces. Ao fim da tarde, o rapaz dos vinte convidou-nos às duas para irmos a casa de um amigo gay que nos queria apresentar. Isso de chamar gay a alguém é sempre um assunto delicado e eu acho que quem tem telhados de vidro não deve andar à pedrada. Por estranho que pareça, a minha amiga entusiasmou-se, trocou o dos vinte pelo “gay” com o qual casou, teve um filho e divorciou – com violência doméstica à mistura. Passado sete anos, dei por mim a curtir com a paixão dos vinte numa noite de copos e quando ambos íamos a sair do Bairro Alto, cruzámo-nos com um amigo meu das Belas que não via há cerca de cinco; ele estava a viver em Nova Iorque e abraçou-me, efusivamente, beijando-me na boca como era usual; infelizmente, o amigo querido das Belas é homossexual, porque é uma estampa de homem; nunca mais o vi, nem lhe agradeci o facto de ele ter sido um anjo. Quanto ao dos vinte, ficou sem palavras perante a minha felicidade naquele reencontro casual, despedimo-nos como se nada tivesse acontecido, já nos voltámos a cruzar muitas vezes e permanecemos sempre em silêncio sobre estes assuntos naturais.
Maria João

14.11.06

Mosaico

Komeni
Estanco neste mosaico e penso: com o povo, pelo povo, para o povo. Fica aqui o meu contributo para um inventário da psicopatologia política.

O meu lugar é o E6.

Há quem procure o seu lugar no mundo como quem procura um lugar na sala de cinema. Uns e outros, às escuras, vão tacteando os espaços vazios. Quando encontram o lugar sentam-se, mais ou menos confortavelmente, esperançados que valha a pena o que pagaram pelo bilhete. Entretanto, os mais irrequietos abandonam o filme a meio. Já os conformados esforçam-se sempre por ficar, pelo menos, até que o filme acabe. No entanto, só uns poucos, muito poucos, têm paciência para ler os créditos até ao fim.

13.11.06

ENTREVISTA MINISCENTE

O que lhe diz a palavra blogosfera?

A blogosfera é uma logosfera, uma fera do logos. Um logaritmo b, um ritmo logo, uma coisa quase tão boa como o sexo mas mais pra, pronto, práli. Riquita, tira a beiçuxas, pere lá, tou aqui a responder a um senhor.

Qual foi o acontecimento (nacional ou internacional) que mais intensamente seguiu apenas através de blogues?

Eh lá. Mas espero seguir intensamente o fim da blogosfera em todos os blogues, sem excepção. Sou um apocalíptico, não um integrado, sobretudo quando os afazeres me obrigam a contrariar a Riquita por causa das minhas superiores capacidades para responder a…tudo.

Qual foi o maior impacto que os blogues tiveram na sua vida pessoal?

Pronto, eu hoje portei-me mal. Mas também eu disse que não gosto de iogurte apresuntado. Porque sou sincero. Que é como gostar de presunto iogurtado, e fui fazer as chaves e depois não tive tempo pra levantar os remédios dela.

Sim, mas qual foi o maior impacto que os blogues tiveram na sua vida pessoal?

Eu tinha lhe dito, ainda te vais dar mal com essa mania. E fui, não tenho problemas, eu vi muito, pá, canícula, cenas. Mas vou na mesma, quero lá saber se olham, se não olham, quem quiser que se meta na sua vida que eu não me meto na vida de ninguém. Percebes, tás a olhar assim porquê?

Acredita que a blogosfera é uma forma de expressão editorialmente livre?

Não meto, pá, não meto. Mas tava a porta aberta e eu entrei, não fui buscar os remédios, a porta é que tava aberta que eu nem me costumo meter nisso quando tenho as chaves do carro na mão. Nem era. Eu tava a passar, sossegado, quando vi um cavalo em chamas à minha frente com a santa teresinha a guiar. A blogosfeira é uma feira onde nem a merda está livre de encontrar um editor à altura.



Rui Costa

Quem adora pequenos deuses não se livra de ser anão.

A lei de SadBush

Saddam foi condenado por crimes praticados quando era um aliado dos EUA na luta contra o terrorismo islâmico. Certo. Que Bush e Cheney e Rumsfeld são cínicos e hipócritas já quase toda a gente sabe. Para que o quase deixe de ser quase faltam só alguns bushistas tugas mais resistentes. Era bom, no entanto, que a hipocrisia de Rumsfeld, Cheney e Bush não obnubilasse o essencial: ainda que alguns criminosos continuem a monte, os crimes foram e continuam a ser cometidos.

BALADA

(EM MEMÓRIA DE UM POETA SUICIDA)

Não conseguiu firmar o nobre pacto
Entre o cosmos sangrento e a alma pura.
Porém, não se dobrou perante o facto
Da vitória do caos sobre a vontade
Augusta de ordenar a criatura
Ao menos: luz ao sul da tempestade.
Gladiador defunto mas intacto
(tanta violência, mas tanta ternura)

Jogou-se contra um mar de sofrimentos
Não para pôr-lhes fim, Hamlet, e sim
Para afirmar-se além de seus tormentos
De monstros cegos contra um só delfim,
Frágil porém vidente, morto ao som
De vagas de verdade e de loucura.
Bateu-se delicado e fino, com
Tanta violência, mas tanta ternura!

Cruel foi teu triunfo, torpe mar.
Celebrara-te tanto, te adorava
Do fundo atroz à superfície, altar
De seus deuses solares – tanto amava
Teu dorso cavalgado de tortura!
Com que fervor enfim te penetrou
No mergulho fatal com que mostrou
Tanta violência, mas tanta ternura!

Envoi

Senhor, que perdão tem o meu amigo
Por tão clara aventura, mas tão dura?
Não estás mais comigo. Nem conTigo:
Tanta violência. Mas tanta ternura.

Mário Faustino
Mário Faustino nasceu em Teresina, Piauí, a 22 de Outubro de 1930. Estudou Direito em Belém do Pará, entre 1949 e 1951, mas não chegou a concluir o curso. Trabalhou como redactor de vários jornais, criou e dirigiu a página "Poesia-Experiência" no Suplemento Literário do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro, exerceu vários cargos públicos. Em 1955 publicou O Homem e Sua Hora, seu único livro de poesia em vida. Faleceu em 1962, num acidente de aviação, durante uma viagem a caminho da cidade do México. »

A casa no tempo # 16


Fragmento #16 - As Janelas.
Maria João

12.11.06

Lar de idosos

«Lar de idosos» é uma expressão terrível. Lembra-me uma casa mortuária de gente ainda viva. A última vez que entrei num lar de idosos foi para visitar a minha avó materna, poucos meses antes de ela partir para o lugar dos justos. Os meus avós paternos eram personagens dignas de conta. Pessoas simples, do campo, admiradores incondicionais das tabernas, tinham pormenores de distinta excentricidade. Meu avô, ainda mal o Sol se via, roubava dois ovos à capoeira, partia-os para dentro de uma caneca que enchia de bagaço e mandava a mistela goela abaixo. Era a sua forma de ganhar coragem para as treze horas seguidas de enxada na terra. Trabalhador incansável, vingava-se da subvida nas tabernas. Dizem que era um grande e original apostador. Certo dia, apostou uma pernoitada no cemitério lá da terra, comprometendo-se a trazer, como prova do feito, uma santinha que se encontrava na capela. Naquele tempo, de certa forma ainda hoje, os cemitérios eram lugares temerosos, sítios fantasmagóricos que se predispunham às mais eloquentes fantasias. Com o bucho atestado, caído de cansaço, não deu por uma beata mal apagada que acabaria a incendiar umas moitas que circundavam o cemitério. Foi um ver se te avias. O velho julgava-se, finalmente, a pagar pelos seus pecados. Minha avó também tinha das suas. Comia manteiga como quem papa iogurtes e ninguém se atrevesse a dizer-lhe que o homem tinha pisado a Lua. Ela logo indagava: Porque não foram antes ao Sol, que é muito mais bonito? Minha avó, na tal última visita que lhe fiz, usou de uma expressão que tenho conservado na memória que me resta dela: Que nossa senhora me guarde uma esmolinha no céu... Não pedia mais que isso, uma esmolinha no céu. Sempre que recordo meus avós, prefiro recordá-los desta forma. O contexto é pitoresco e risível, eu sei. Mas é como eles eram. Sempre prefiro lembrá-los bêbedos a lembrá-los senis, sós, entrevados no canto duma sala mórbida, à espera que a morte lhes desse uma boleia para esses leitos de pedra que, confesso, me atraem tanto quanto as palavras do Senhor.

Febre

A febre provoca-me alucinações. Hoje, por exemplo, acordei a ver Pedro Costa no bairro das Fontainhas. Lá estava ele a passar um prato de arroz da janela da sua barraca para a barraca do vizinho.

Ferramenta

É uma ferramenta utilíssima para a compreensão de alguns bloggers nacionais: E-Dicionário de Termos Literários.

Eixo do Mal

Daniel Oliveira chamou neo-coninhas aos bushistas cá do burgo. Clara Ferreira Alves riu-se muito.

10.11.06

O carnaval é quando um homem quiser

O facciosismo, tanto à esquerda como ao centro como à direita, é uma praga ao serviço da estupidificação. O melhor seria não lhe darmos expressão, mas não deixa de ser caricato verificar que o que para uns é um exemplo de repressão violentíssima para outros pode ser uma boa razão para defender um Estado. Um deles estará longe da verdade, cada qual acredita no que quer. Eu, apesar de gripado, tentarei não me deixar “influenziar”.

Amor seguro

Dizer amo-te por sms, ou por msn, ou num weblog, dizer amo-te, enfim, sem ser olhos nos olhos, é uma forma segura de dizer amo-te. É como colocar as emoções num preservativo.

Book-boom

A época natalícia é um autêntico book-boom. Interrogo-me apenas se haverá pão para tanta boca.

António Franco Alexandre

Passei o dia de cama, com febre, a ver televisão. Entre filmes, séries e documentários, apanho uma entrevista a António Franco Alexandre. Um momento: a entrevistadora pede-lhe que leia um poema de Aracne, o poeta folheia o livro, hesita, sente-se um pouco atrapalhado, não consegue escolher. Explica que os seus livros não são colectâneas de poemas, que há uma ordem, como num romance, que liga todos os versos uns aos outros. Enquanto folheia o livro, claramente vacilante, o poeta é interrompido pelo dedo da apresentadora que lhe sugere, assim mesmo, «por exemplo este aqui». O poeta, simpática e serenamente, pelo menos em aparência, concedeu. Eu fiquei a olhar para aquilo como se estivesse a olhar alguém a ser violado.

9.11.06

IVG # 12

Inconveniências
Confesso que já me apetecia pouco falar do tema do aborto, depois de todos os argumentos terem sido já tão amplamente discutidos e a obstinação condenatória persistir. Mas depois de algumas vozes inesperadas terem vindo a público afirmar coisas espantosas, algumas delas neste mesmo jornal, talvez faça sentido reafirmar algumas verdades óbvias, ainda que incómodas.
1. O aborto existe, sempre existiu e não vai deixar de existir. Seja por ignorância, imprudência, erro de julgamento ou simples azar, as mulheres ficam grávidas sem querer. E por vezes sentem que efectivamente não querem ou não podem seguir em frente com aquela gravidez. Claro que todos queremos diminuir essas situações - e devemos fazer esforços sérios, não moralistas e não paternalistas nesse sentido. Mas o problema nunca será totalmente resolvido a montante. As questões que importa, por isso, colocar são: onde e em que condições é que esse aborto vai ser feito? Deve uma mulher pagar com risco de morte ou dano severo para a saúde essa decisão? Que legitimidade existe no enriquecimento feito com base no aborto clandestino?
2. E, já agora, deve a mulher pagar essa decisão com a prisão? Porque, como ficou amplamente demonstrado, efectivamente há condenações por causa do aborto. E que me desculpem os defensores de soluções intermédias: ou é crime e é penalizado ou não é penalizado e não é crime de todo. Porque, que sentido faz perpetuar uma lei que não é para cumprir? Que traduz esse incumprimento senão o seu radical alheamento da realidade e vontade social?
3. E agora que me desculpem alguns sectores feministas: não, o aborto não é uma questão de mulheres. Ou antes, é-o, mas não deveria ser, pelo menos não deveria ser equacionado como uma questão apenas de mulheres. E neste erro tanto os defensores do "sim" como do "não" têm caído. Claro que há questões de género no aborto, desde a desigual repartição dos cuidados com os filhos, aos desequilíbrios salariais. E, claro, o simples facto de ser no corpo da mulher que a decisão de ter ou não filhos assume uma violência "incarnada". Mas, a não ser que estejamos perante novos mistérios transcendentais, cada embrião tem dois seres humanos na sua génese. Onde estão os homens, no equacionar público desta questão? E, já agora, onde estão os homens condenados pela decisão de abortar (ou será - coisa conveniente - que todas as mulheres condenadas por aborto em Portugal decidiram sozinhas, sem participação ou conhecimento dos respectivos parceiros?).
4. Finalmente, o que sinto como uma última verdade, para mim própria inconveniente: por muito que os defensores do "sim" a evitem - e eu, como defensora do "sim", compreendo a estratégia -, a questão da vida humana é de facto relevante. Porque, se entendermos o embrião como igual a uma pessoa - se acreditarmos mesmo nisso -, então o aborto apenas se justificaria em situações de risco de vida da mãe. Porque apenas aí estaríamos a falar de valores de igual ordem moral. Mas será que acreditamos mesmo que um embrião é uma pessoa? Reagimos da mesma forma ao aborto espontâneo às 10 ou 12 ou até mais semanas como reagiríamos à morte de um recém-nascido? Sofremos da mesma forma? Ritualizamos da mesma forma a sua perda? Alguém pode, em consciência, dizer que sim?
Carla Machado, in Público, via Vidro Duplo.
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