Atenção: isto não é um apelo ao consumo, isto é apenas o dar conta de uma paixão. Quanto aos necrófilos, há deles cheios de boas intenções e há os outros. Por mim, se querem saber, é-me indiferente. Se o não comeram em
vida, que o comam na morte. Tenho a certeza que vos desassossegará o estômago da alma. Devo ter começado a ler a poesia de Mário Cesariny pelos meus 16 ou 17 anos, pouco antes de ir estudar para Lisboa, por culpa de um amigo que me desancou depois de eu lhe ter dito que não conhecia o
Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos:
«Há uma hora, há uma hora certa / que um milhão de pessoas está a sair para a rua». Esse meu amigo, agora emigrado em águas não territoriais, julgava ser crime de lesa-poesia eu ter conhecido o próprio Álvaro de Campos antes do poema de Cesariny, que, para ser sincero, constituiu na minha vida todo um programa político ainda por cumprir. Note-se:
«O pouco amor que eu tive à burguesia / deixei-o todo numa casa de passe / quando me perguntaram: quer assim? Ou assim?» Só os mais atentos entenderiam
estes desabafos wireless: na gasolineira perguntam-se se quero factura. Na portagem perguntam-me se quero recibo. No café perguntam-me se quero copo. Um homem não regressa a casa na esperança de uma vida
wireless. Um homem regressa a casa desejando não ter que responder a perguntas inúteis. Ele há coisas que têm
a sua hora de ser ditas. Ontem, como hoje, os meus poetas eram esse tal Álvaro de Campos, o Mestre de Sena, o bom, bom, bom O’Neill, o nosso conterrâneo Ruy Belo e algum Al Berto nas febres de sábado à noite. Naquele tempo era assim, se juntarmos a esses a geração Beat, o Baudelaire, o Artaud e mais uma série de mitos imortais. O meu primeiro livro de Cesariny foi, pois está claro,
Nobilíssima Visão (edição de 1991, na Assírio & Alvim). Recordo uma discussão tremenda, com
alguém que não importa, a propósito de um tal
Nicolau Cansado Escritor. Dizia-me o alguém-que-não-importa:
«Isso não é poesia!» Respondia-lhe eu, já depois da
Migração para a (pena) capital, mas ainda muito timidamente:
«Ah / não me venham dizer / oh / não quero saber / ah / quem me dera esquecer // Só e incerto é que o poema é aberto / e a Palavra flui inesgotável!» O alguém-que-não-importa, Deus o tenha no esquecimento, ria-se e praguejava. Lá teria as suas razões. Foi preciso que passassem três anos para voltar à poesia de Cesariny, isto sem nunca a ter abandonado.
Titânia, obra em prosa, aportou no país das teorias cansadas como um dos acontecimentos literários do ano. O outro foi a recusa do Prémio Pessoa por um tal de Herberto Helder. Daí para cá, não ouvi falar de outro poeta senão do Herberto da
Poesia Toda. Mas eu continuei na minha, atacado daqueles supracitados e cada vez mais de Cesariny:
«O diabo português é o diabo mais grosseiro que há, nunca se definiu». Toca de calcorrear as livrarias à procura da
Primavera Autónoma das Estradas, do
Manual de Prestidigitação, da
Pena Capital, etc. A minha paixão pelo surrealismo atingia por estes vinte anos dimensões
estapafúrdicas. Escrevi uma coisa em forma de assim, que publiquei, tanto quanto possível, em 1997, a que dei o título de
Neoménia. Vinham lá todos os influentes disfarçados em dois afluentes: Álvaro de Campos, António Maria Lisboa. Não me arrependo de, mas ainda tenho vergonha na cara. Coisas de puto da província! Mas voltemos ao que importa. Precisamente em 1997, a Assírio reedita
A Intervenção Surrealista. Lá estão Pedro Oom, Fernando Alves dos Santos, Mário Henrique Leiria, entre outros e entre uma entrevista ao
Jornal de Letras e Artes (1962):
«- Que pensa da literatura portuguesa actual?
/ - Penso que a literatura portuguesa actual é não só a que enfrenta, e representa, algumas das piores condições em que pode gorar-se a literatura, como é também, ela própria, a pior possível». Era assim mesmo, naquele tempo, quem vivia sem ceder ao Tempo. Mas que sei eu disso? Que posso eu saber disso? Nada, pouco mais que nada. Eu limito-me a viver, a respirar, a consumir, ainda em 1997, a voz de Cesariny, tão bem acompanhado, no mais belo CD de poesia alguma vez editado em Portugal e arredores:
entre nós e as palavras, por “os poetas”: Al Berto, Cesariny, Franco Alexandre, Herberto e a tão grande e tão esquecida Luiza Neto Jorge. Um projecto do editor Hermínio Monteiro! Que projecto! Também ele morre mais um pouco, agora por estes dias... Vou vascolhando, um pouco aqui, um pouco acolá. Há não muito tempo encontrei duas antologias organizadas por Mário
Cesariny de Vasconcelos:
Surrealismo-Abjeccionismo (Minotauro, 1963),
Textos de Afirmação e de Combate do Movimento Surrealista Mundial (Perspectiva & Realidades, 1977). Se as virem por aí, não tenham amor à carteira. Mas o investimento mais recente foi outro, um livro do tamanho do mundo, um livro do tamanho de um nome:
Mário Cesariny. João Lima Pinharanda e Perfecto E. Curado assinam a obra. A acompanhar o trabalho pictórico de Cesariny, uma antologia de depoimentos de Raul Leal, Rui Mário Gonçalves, Nelson Di Maggio, Cruzeiro Seixas, Rocha de Sousa, João Gaspar Simões, Natália Correia, Mário de Oliveira, Eurico Gonçalves, Lima de Freitas, Manuel Lourenço, Laurens Vancrevel, Édouard Jaguer, Bernardo Pinto de Almeida, Alexandre Melo, Ernesto Sampaio, António Barahona, etc, como este poema de Maria Helena Vieira da Silva:
VIEIRA DA SILVA «PHALA» DE MÁRIO CESARINY
O Mário e eu somos amigos há muito tempo, entre nós a amizade
tem um intermediário/: as gatas, através dos gatos para mim
para mim é muito difícil dizer com palavras o que é o nosso diálogo que é um diálogo
mudo, as palavras do Mário têm grande
peso na minha memória, mas o que eu digo pode-se traduzir
em linguagem de gato
muitas palavras escritas faladas
O Mário é Pássaro é gato é alguém apenas, cada vez menos parecido
com um ser humano
falar do Mário para mim é falar de flor de borboleta de pássaro
e também de gato nunca penso no Mário como pessoa humana e a
nossa amizade
existe através
Vejo a Poesia do Mário muito forte muito densa… mas vejo
e não sei traduzir em palavras, o que vejo
É uma poesia única, como o Mário é Único: em todo o sentido
da palavra.
A Phala n.º 1, Lisboa, Abril, Maio, Junho de 1986.