31.10.08
30.10.08
CATÃO
A pátria é triste. Sofro. Estou calmo.
Único honesto, entre desonestos, clarividente,
entre os cegos, a indignação há muito acalmo.
Estou só. Sofro quando ninguém sente.
A honestidade ― que solidão! A coragem cansa.
Em breve, cadáver que a outros mortos fala,
penso em Atenas, plena de alegria mansa,
e no coração afogo palavras que o pudor cala.
Estou cansado de prever o negro acontecer.
Algo nasce. Algo morre. Com quem perde, estou.
Honestidade é pátria de quem outra não sabe ter.
Ao abismo das causas perdidas, quieto, vou.
Melhor do que ocupar-me da minha pobre vida,
agora que os pássaros a cantar começam,
na espada pego, com mão há pouco ferida
― o ventre rasgo. Percebo que meus pés tropeçam.
Lourenço Marques, 7.2.75
29.10.08
APRENDER A CONTAR #35
(I)
Era uma vez uma Ela e um Ele e sabe Deus quantas mais personagens secundárias, que, consideradas sob outra perspectiva, podiam bem ter sido protagonistas; nesta história, porém, são personagens secundárias, o que nos faz muita pena, e pelo facto apresentamos as nossas desculpas. Voltando aos nossos dois heróis e à nossa história de amor, que é uma história muito simples, teríamos a dizer que ele gostava muito dela, por assim dizer, de todo o coração, e que por sua vontade se casaria de imediato com ela, com o profundo desejo de a fazer feliz, bem como a si próprio, que é um desejo que tem sido desejado desde que há homens no mundo. Só que havia um obstáculo, e o obstáculo era este: aquela que ele amava e que desejava tomar como esposa era sobremaneira irascível, tendendo infelizmente a zangar-se por tudo e por nada com grande precipitação, o que não lhe agradava nada, e a ela porventura também não. Parecia ser uma fraqueza dela, que ela provavelmente teria preferido que passasse a ser uma força; infelizmente, porém, a sua fraqueza revelou-se forte, ao passo que a sua força se mostrava bastante fraca, um facto que tanto ela como ele, que em tudo mais a prezava, estavam em posição de lamentar, dito de outro modo, tinham bons motivos para deplorar. Ela tinha um rosto e um porte magníficos, de um esplendor esbelto, para nos servirmos desta expressão enquanto não nos ocorrer nenhuma melhor. A inspiração é rara, e os autores têm de contentar-se com o pouco de espírito que o destino clementemente lhes concede. Se ela era grande e imponente, oh decerto, mas assim que se zangava, a sua beleza quebrava-se e perdia-se, e isso mesmo intuía com consternação aquele que em tudo o mais a admirava, e foi armado com esta intuição que, certo dia,
assim por volta das cinco da tarde, ele lhe disse, em tom confidente e explicativo: «Ouve, meu amor, caso-me contigo e sirvo-te o resto da vida, desde que consigas refrear por um ano inteiro esse teu mau génio, que tanto te diminui quando te domina.» Foi a sorrir que disse estas palavras, como um homem satisfeito com a sua coragem, e com efeito uma declaração tão sincera requer bravura. Isso qualquer um percebe. E ela, acatou o que ele disse? Sim, foi isso mesmo que ela fez, e resta-nos apenas supor que tenha dado provas de grande brandura e paciência, que tenha florido como uma flor na Primavera, e que, findo o período de prova, se tenha mostrado tão amável, revelando tão grande sossego por dentro e saúde por fora, que desse gosto olhar para ela, ocupação a que se terá dedicado com grande atenção aquele que, supomos nós, agora se alegrava com o resultado e se decidia a cumprir a sua palavra. Ao certo, ao certo, não sabemos nada; temos apenas a esperança de que tudo tenha corrido pelo melhor, o que nem sempre é o caso, mas uma vez por outra também pode suceder, e é com esta esperança que pomos a história dentro do cofre onde ela pertence, fechamos a porta e nos regozijamos com o seu valor que, se não é grande, será ao menos modesto.
Robert Walser (1878- 1956), Histórias de Amor, trad. Isabel Castro Silva, Relógio D’Água, pp. 179-180, Abril de 2008.
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28.10.08
O MAIS IMPORTANTE NÃO É O MELHOR #2
APRENDER A CONTAR #34
Era uma vez um pé de lápis. Saído de casa de manhã encontrou um sapato. Surpreendido pela estranha forma disse para consigo: que será isto? Estacou diante do sapato e começou a rodeá-lo, da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, depois para cima, depois para baixo. Mas para dentro? Aí o lápis quis dobrar a cabeça. Mas não via nada. Recomeçou a rodear o sapato dando voltas sobre voltas. Mas para dentro? Recomeçou da direita para a esquerda, da esquerda para a direita, subindo aos poucos pelo corpo do sapato. Começou a estar estonteado. Para dentro, dizia, para dentro. E continuava às voltas, às voltas, às voltas. Até que por fim, exausto, caiu no chão. Atordoado ia fechar os olhos quando viu que estava dentro de água. Dentro de água? À sua volta flutuavam inúmeros outros lápis emergindo nos mais variados ângulos. Eram muitos lápis. Como? ― disse para consigo ― então sou tantos? Olhou para cima e viu o sapato. Ao erguer os olhos ergueu também a cabeça, mas todos os outros lápis se ergueram ao mesmo tempo, possuídos de uma flexibilidade amolecida que a tontura colectiva não chegava para explicar. Erguiam-se como ondulantes fitas, mas não ondulantes: coleantes. Era um erguer de rastejar. Começaram subindo pelo sapato. Ascensão sinuosa, achatada. O sapato era enorme, acidentado. Agora todos os lápis gritavam: Para cima! Para dentro! Um exército de ondulações, tacteantes, platelmintes de lábios pintados. Para cima! Para dentro! Os lápis subiam de cores. Para cima! Para dentro! O bordo do sapato. Bastante estreito. Inesperado para os lápis, no seu esforço de subida. O impulso fora em excesso. Agora as cabeças pendiam para dentro mas para baixo. Pendiam exaustamente desordenadas. Era uma dentadura mole da fenda. Para dentro era fora. Um instante de reflexão e todos os lápis escorregam pelo sapato fora. O sapato flutuava coberto de marcas da passagem dos lápis desaparecidos.
Ana Hatherly (1929), 463 Tisanas, Quimera, pp. 173-174, 2006.
LIDOS OU RELIDOS EM 2008 (6)
“Breve história do progresso”, Ronald Wright, Dom Quixote (2006)
Amy Whinehouse, antes de ler.
1. Ronald Wright cita as três perguntas que Gauguin escreve no mural:
Quem somos? Donde vimos? Para onde vamos?; e diz que vai tentar responder à terceira pergunta.
2. Wright lembra o “progresso” dos “estrondos” a propósito da pólvora: do foguete ao canhão e por ali fora até à bomba atómica, capaz de estourar o mundo e o progresso. “A tecnologia é viciante. O progresso material cria problemas que são – ou parecem ser – solúveis apenas com mais progresso. Também aqui, o demónio está na escala: um bom estouro pode ser útil; um estouro melhor pode acabar com o mundo.” O mesmo quando o caçador passa a matar 200 mamutes – levando a manada inteira a cair de um penhasco –: demasiado progresso!
4. Wright lembra também como o colapso da União Soviética levou algumas pessoas – um dos mais célebres é Fukuyama, um “pensador” sobrevalorizado – a concluir que o capitalismo e a democracia eram o fim da História.
5. Mas Wright afinal responde às duas primeiras perguntas: 1) somos macacos; 2) vimos de África. Diferentemente do que se passa com os macacos, nos últimos 3 milhões de anos temos sido moldados cada vez mais pela natureza e menos pela cultura. Wright introduz o conceito de “armadilha do progresso”, explicando-a a partir da bomba atómica que, representando uma progressão lógica da seta e da bala, se tornou “a primeira tecnologia a ameaçar a nossa espécie inteira com a extinção”. No capítulo intitulado “A grande experiência”, Wright propõe-se ver como o aperfeiçoamento dos métodos de caça “terminou com a antiga Idade da Pedra e como a fuga dessa armadilha, com a invenção da lavoura, levou à nossa maior experiência: a civilização mundial”.
7. Durante a Antiga Idade da Pedra (que começou há cerca de 3 milhões de anos e terminou há apenas 12 mil anos, quando os gelos se retraíram para os pólos e cordilheiras), há cerca de 15 mil anos, a Humanidade atingira todos os continentes, com excepção da Antárctica, fazendo a caça grossa escassear. Mamutes e rinocerontes acabariam por desaparecer da Europa e da Ásia, camelos e bisontes gigantes extinguem-se nas Américas, um rasto de extinção que “segue o Homo Sapiens à volta do mundo.” E o que se passa com a caça é isto: “A perfeição dos métodos de caça determinou o fim da caça como modo de vida. Carne acessível queria dizer mais bebés. Mais bebés queria dizer mais caçadores. Muitos caçadores queria dizer menos caça disponível (...) e assim acabamos por exaurir a terra com os nossos banquetes móveis.” Já Woody Allen dizia: o nosso mundo é um vasto restaurante.
9. Com a Revolução Neolítica, ou Agrícola, subiu-se a fasquia. Os recolectores repararam que as sementes acidentalmente caídas no solo germinavam no ano seguinte. A agricultura desenvolveu-se independentemente e ao mesmo tempo no Médio Oriente, no Oriente, na Mesoamérica (México e regiões vizinhas da América Central) e na América do Sul, entre outras áreas menos importantes.
10. Há cerca de 3 mil anos, a civilização tinha crescido em pelo menos sete locais: Mesopotâmia, Egipto, Mediterrâneo, Índia, China, México e Peru, o que aponta para a seguinte conclusão: “Dadas certas condições gerais, em toda a parte as sociedades humanas caminham para uma maior dimensão e complexidade, e também para uma maior pressão ambiental.”
11. Wright explica como os homens foram obrigados a deixar o Crescente Fértil – florestas destruídas por excesso de queimadas e pelos fornos para fazer cal e estuque, destruição das pastagens pelas cabras – e a procurar um segundo paraíso mais abaixo, na Mesopotâmia.
12. Conta-se como os habitantes da Ilha da Páscoa deitaram abaixo todas as árvores e como “a palavra para madeira, rakau, se tornou a mais preciosa da sua língua”; e como, antes (em 2000 a.c.), a terra onde viviam os Sumérios se tornara branca, por causa do sal – os rios lavam o sal das rochas e da terra e levam-no para o mar “mas quando as pessoas desviam a água para terras áridas a maior parte evapora-se e o sal fica.” Wright percorre o “colapso interno” de Roma e dos Maias e analisa as situações mais “resistentes” da China e do Egipto.
13. A invenção da agricultura não resolveu o problema alimentar por duas ordens de razões: a) biológica: “a população cresce até atingir os limites do fornecimento de alimentos”; b) social: todas as civilizações se tornam hierarquizadas e a concentração no topo faz com que não haja o suficiente “para dar a volta.”
14. As notas de rodapé, que são centenas e aparecem no fim do livro, estão quase todas trocadas. É o que dá facilitar, em vez de comprar a versão original.
Rui Costa
27.10.08
TELEJORNAL
APRENDER A CONTAR #33
O homem caminhava três passos à frente da mulher. Parava, voltava-se. Ela parava também. O homem punha o dedo no ar, invectivava-a. A mulher, com os olhos nele, esperava, pacientemente, que o homem acabasse. Mas o homem não se mostrava disposto a acabar. Continuava a ralhar-lhe como se não tivesse fim o ressentimento que contra ela acumulara ao longo dos anos, de toda uma vida, afinal, de desencontros. Teria sido alguma vez digno da sua afeição aquele homem, ali, de dedo no ar, a ralhar, a ralhar?, pensava a mulher. Ou nem tanto pensava. Sobre que ralhava o homem, afinal? Difícil perceber. Era uma mistura de roupa por engomar com infidelidades antigas.
*
Mariana pregava o botão na camisa e podia ver-se que o fazia com aquela ponta de que as mães põem, por exemplo, no pentear dos filhos. Adivinhavam-se-lhe nos ademanes um propósito: quero que o que é meu pareça bem ou, pelo menos, não faça má figura diante dos outros. Donde é que vinha essa impressão? De gestos indefinidos, mal esboçados, que eram como carícias arrependidas a meio do caminho, como gestos de ternura que, por vontade dela, não chegassem ao destinatário. Vítor compreendia-o e sentia-se triste de morrer. Não gostava de Mariana a ponto de se juntar com ela. Antecipadamente, a camisa ficava-lhe apertada no pescoço.
*
No dia do seu casamento Virgínia foi feliz. Via realizado o seu desejo de deixar de viver com os pais, ia passar a lua-de-mel ao Algarve, região de que tanto gostava, podia comer um quilo de sorvete de morango, que ninguém ralharia com ela.
Trinta anos depois, da luta de mel a lembrança mais forte e sempre evocada era o desarranjo intestinal que não digo um quilo de sorvete de morango, mas quase um quilo, lhe provocara.
Alexandre O’Neill (1924-1986), Uma Coisa em Forma de Assim, Presença, p. 190, 1985.
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26.10.08
APRENDER A CONTAR #32
Um amigo, diplomata brasileiro, foi colocado na Embaixada do Brasil na Holanda. Chegou à noite e, logo na manhã seguinte, telefonou para a Embaixada para combinar com o Embaixador a sua apresentação. Atendeu o porteiro, um português imigrado que assegurava a guarda daquela casa.
O diplomata perguntou:
― O Senhor Embaixador está?
― O Senhor Embaixador não está.
E, como ele sabia como se compunha o quadro da Embaixada foi perguntando, um por um, pelos vários titulares. Não estava nenhum. Admirado perguntou:
― Então, de manhã não trabalham?
Resposta do porteiro:
― Não. De manhã não vêm. A tarde é que não trabalham.
António Alçada Baptista (1927), A Pesca à Linha – Algumas Memórias, Presença, p. 148, Janeiro de 1998.
25.10.08
23.10.08
APRENDER A CONTAR #31
BASTARDO DO IMPERADOR
Era uma vez uma grande boa vontade que se pôs a correr mundo e que no gastar dos sapatos daqueles dias se fez tão pequenina que cabia em qualquer bolso. O crescimento definitivo foi numa quarta-feira de Primavera, dia em que a meteram na parte de dentro de umas calças e a embarcaram para o México. No México só há polícias sinaleiros baixinhos e adolescentes de olhos encarnados, sempre a bocejar, e a dizer de hora a hora a palavra: cabana, de forma que a boa vontade não sabia o que havia de fazer.
Para ir ganhando tempo, resolveu montar uma indústria chapeleira, com a qual inundou o mercado. Como é natural, as cabeças andavam todas contentes, de trás para diante e de diante para trás, o que as fazia produzir um som comprido, em forma de enseada, que os músicos iam recolhendo para as suas óperas. Dado o bom êxito inicial, a boa vontade não só se deixou cumprimentar, num estrado vindo da América, como estabeleceu ligações com Pápárikáss, homem muito odiado e sempre pelos casinos ―: aderiu à guerra que estalou naquele tempo, lançando de repente os célebres chapéus marca PERA, para abrigar generais. Estes, porém, dissolveram a empresa, sob a alegação seguinte: não está a acompanhar.
Solteiros de profissão e naturais de Sevilha, os criados revoltaram-se, mexendo muito uns nos outros e recusando-se a andar. O distúrbio custou duzentas mortes, um casino, a esposa de Pápárikáss (pendurada de uma janela a arder), onze bois do abastecimento, e a Sagrada Relíquia, que o inimigo apanhou comendo-a logo ali com um apetite enorme.
Então, como hoje, as ruas estavam cheias de desonestos, e uma canção acanalhada, francesa, La Petite Enorme, correu todos os bares, pondo em perigo fastios e governação. O sinal de acabar aqueles insucessos foi um ovo estrelado milagreiro, que não só deitava petróleo e carvão, quando ofendido, como sabia processos divinatórios de encontrar os ladrões naqueles sítios certos em que eles é raro estarem. Isso acabou de vez com a ameaça de distúrbio civil, coisa sempre de temer quando as guerras grandes acabam e os generais voltam para casa.
Comemorando a vitória, mandou o governo um grande Parque onde as crianças se arejavam imenso e cuspiam à vontade à vista de todos os peixes. Ao sábado, tocava a música, e apareciam mãos por todos os lados, o que originou um desporto bastante original: o sape-gato-codorniz-galinha. Era assim: uma enorme correnteza de mãos, formando meta. Com o sinal da partida iam todas por ali fora às trabuzanadas umas nas outras e a que chegava primeiro era separada do respectivo pulso, e enviada para França. Nunca mais se sabia dela e os prémios eram distribuídos por todos os assistentes que, em sinal de regozijo, comiam bacalhaus e prometiam novos formatos de mãos, para as competições seguintes.
Assim começa a história da boa vontade que embarcou para os brasis e lá montou indústria.
Mário Cesariny (1923-2006), Manual de Prestidigitação, Assírio & Alvim, pp. 151-152, Janeiro de 1981.
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22.10.08
O MAIS IMPORTANTE NÃO É O MELHOR #1
APRENDER A CONTAR #30
A minha primeira caçada aos gambuzinos aconteceu pelos tempos em que eu andava ainda na escola. Convidaram-me e explicaram-me. Até me ofereceram o saco conveniente e necessário.
Excitado, preparei-me em casa. Treinei devidamente, emboscado atrás da porta, a tentar caçar experimentalmente o meu pai, que subia a escada. Pareceu-me que não gostou. Os pais, não é...?
Na noite da caçada, lá fomos. Eu entusiasmado, com a lanterna e o saco apropriado. E também a moca que estava atrás da porta, que à noite há ladrões, foi a justificação que me veio à cabeça no momento. Todos concordaram.
Mas não me venham dizer que não há gambuzinos. Apanhei três. Um deles parece-me que se chamava António André e ficou coxo. Ainda está, creio. Uma fractura excelente. Mesmo
pela rótula.
Tudo me leva a crer que a caça aos gambuzinos é realmente importante. Temos que apanhá-los. Temos mesmo. Seja lá como for.
Mário-Henrique Leiria (1923-1980), Novos Contos do Gin seguidos de algumas Fábulas do Próximo Futuro, Editorial Estampa, p. 79, 2.ª Edição, 1978.
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21.10.08
APRENDER A CONTAR #29
De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração.»
Carlos de Oliveira (1921-1981), Trabalho Poético, Círculo de Leitores, p. 206, Abril de 2001.
20.10.08
APRENDER A CONTAR #28
Os meus amigos dizem-me que sou muito sugestionável. Acho que têm razão. Como argumento, acrescentam um pequeno episódio que me aconteceu na quinta-feira passada.
Nessa manhã, estava eu a ler uma história de terror, e, ainda que estivéssemos em pleno dia, fui sugestionado. A sugestão infundiu-me a ideia de que na cozinha havia um feroz assassino; e este feroz assassino, esgrimindo um enorme punhal, aguardava que eu entrasse na cozinha para se atirar a mim e cravar-me a faca nas costas. De modo que, apesar de eu estar sentado em frente à porta da cozinha e ninguém poder ter entrado nela sem que eu visse e de, excepto aquela porta, a cozinha não ter outro acesso; não obstante todos estes factos, eu, apesar de tudo, estava inteiramente convencido de que o assassino aguardava atrás da porta fechada.
Encontrava-me de tal maneira sugestionado que não me atrevia a entrar na cozinha. Isto preocupava-me pois aproximava-se a hora do almoço e seria imprescindível que eu entrasse na cozinha.
Tocou então a campainha.
— Entre! — gritei sem me levantar — Não está trancada.
Entrou o porteiro com duas ou três cartas.
— Tenho a perna dormente. — disse — Podia ir à cozinha e trazer-me um copo de água?
O porteiro disse «Claro», abriu a porta da cozinha e entrou. Ouvi um grito de dor e o ruído de um corpo que, ao cair, arrastava atrás de si pratos e garrafas. Então saltei da minha cadeira e fui à cozinha. O porteiro, com metade do corpo sobre a mesa e um enorme punhal cravado nas costas, jazia morto. Agora, já tranquilizado, pude comprovar que, realmente, não havia nenhum assassino na cozinha.
Tratava-se, como é óbvio, de um caso de mera sugestão.
Fernando Sorrentino (1942), Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça, trad. António Ladeira/Hélder Semmedo, OVNI, p. 37, Outubro de 2006.
19.10.08
LE CLÉZIO TRADUZIDO POR HERBERTO HELDER
Interrogamo-nos acerca da poesia? Desejaríamos saber o que pretende ela, aquilo que pretende de nós. É que muitas vezes não nos diz nada. Palavras, fragmentos de frases, balanceadas, hesitantes, versáteis, palavras que não conseguimos reter.
Refrões de cançonetas, talvez? Mas então onde está a música? Talvez músicas silenciosas, tacadas no fundo da água, a cem braças de profundidade.
Os outros poemas, todos os poemas célebres, organizados, compostos, exércitos em armas que marcham a passo certo. Não estamos lá quando passam. Viramos a cara, vamos procurar noutro lado. Em geral, quando passavam, esses grandes poemas, havia um extremo vazio, um intenso vazio (o medo, o cansaço), e era a ele que preferíamos.
Ou ainda outros poemas, que falavam de coisas graves, insultavam, blasfemavam. Faziam um grande barulho de trovão, e nós, pequenos homens fracos que não gostávamos de tempestades, metíamos a cabeça entre os ombros, à espera de que aquilo passasse. Os gritos e os insultos, não, isso não era para nós.
Cada vez mais poemas, sempre, nos livros. Fileiras de linhas, frases cortadas, em suspenso, nas páginas brancas... Mas olhávamos esse branco das páginas e, de longe, as cristas dos maciços verticais; árduas colinas de que não queríamos aproximar-nos, estavam bem onde estavam, de longe, ao longe.
Diziam coisas, esses poemas, e ao mesmo tempo não diziam nada. Palavras voltejantes, não iam a parte nenhuma, sem força, sem duração, sem memória, lidas vagamente, abandonadas depois. Criavam o seu próprio rumor, dispensando ouvidos, zumbir de abelhas invisíveis. Líamos aqui uma palavra, ali outra, e tínhamos dificuldade em ligá-las, pois eram palavras sem raízes, não viviam, pareciam conchas vazias; podia fazer-se com elas um colar.
Agora, depois de Iniji, já nos não interrogamos. Há uma certeza. Viu-se qualquer coisa, seguiu-se essa coisa, como se a gente estivesse a fazê-la, como se tivesse encontrado ouvidos para escutar a música do fundo da água.
O MAIS IMPORTANTE NÃO É O MELHOR
Se a pergunta não fosse «qual o melhor» mas sim «qual o mais importante», as suas respostas seriam as mesmas ou seriam diferentes? Em quê, no segundo caso?
Esta distinção entre melhor e mais importante é capciosa, porque legitima uma hierarquização objectiva do gosto. O mais importante deixa de ser aquele que é melhor. Pressupõe-se que o melhor apenas o seja subjectivamente, para Frederico Lourenço ou para outro leitor qualquer, partindo do princípio, algo pretensioso, de que o mais importante resulte já de uma objectivação histórica, não contaminada pelo gosto individual, assente em pressupostos académicos, críticos, imunes à tal subjectividade dos juízos de gosto. Ora, isto não faz sentido algum. Os livros mais importantes só podem ser os melhores e os melhores só podem ser os mais importantes, pois os mais importantes são sempre os melhores para um alguém que existe, que é concreto, não para um alguém abstracto. De que me vale dizer que este ou aquele livro é o mais importante do século XX se ele não for o melhor para alguém? Quem determina a importância de um livro? Os leitores, os catedráticos, os próprios livros? Frederico Lourenço, imbuído de espírito académico, responde à questão sem sequer a questionar: «Aqui não tenho qualquer dúvida na resposta. O mais importante livro de ficção portuguesa do século XX é O Livro do Desassossego de Bernardo Soares; e o mais importante livro de poesia, a Mensagem de Fernando Pessoa (o único livro de poesia que Pessoa publicou em vida)». Gostava de saber por que não são estes mais importantes livros os melhores? Sendo Pessoa, como afirma Lourenço, o autor mais importante (e que de longe mais admira) da literatura portuguesa do século XX, o que justifica que os seus livros sejam relegados para segundo plano em prol de obras alheias? Por que não são estes livros admiráveis, fundamentais e importantes os melhores? Que obscuras e subliminares razões justificam que o mais importante não seja o melhor?