28.2.09

APRENDER A CONTAR #70

O rapaz que não tira os olhos do chão

Não tira os olhos do chão. Como se seguisse um trilho do qual não se pode distrair, nem por um segundo.
Faz percursos sem sentido. Segue numa direcção. Pára. Muda o sentido. Regressa. Segue noutra direcção.
Nunca olha para cima. Conhece Lisboa pelo chão, sabe de cor os passeios dos calceteiros, com os seus desenhos de pedras pretas e pedras brancas, sabe de cor as ruas cruzadas por linhas de eléctricos abandonadas às ervas.
Incansável, faz com os seus passos o (secreto) mapa da sua solidão.

Nuno Artur Silva (1962), in As Passagens do tempo, Cotovia, Setembro 2000, p. 23.

#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10 / #11 / #12 / #13 / #14 / #15 / #16 / #17 / #18 / #19 / #20 / #21 / #22 / #23 / #24 / #25 / #26 / #27 / #28 / #29 / #30 / #31 / #32 / #33 / #34 / #35 / #36 / #37 / #38 / #39 / #40 / #41 / #42 / #43 / #44 / #45 / #46 / #47 / #48 / #49 / #50 / #51 / #52 / #53 / #54 / #55 / #56 / #57 / #58 / #59 / #60 / #61 / #62 / #63 / #64 / #65 / #66 / #67 / #68 / #69

DIA 59



A noite desceu à altura de um grito. Contra a morte, a luz esmorecida das vidas sem espanto. Também vos digo, antes isso que as paredes dos teatros decrépitos onde outrora foram representadas tragédias ainda hoje mais vivas do que o público que por ali passa distraído e indiferente, com as mãos nos bolsos e os olhos colados ao chão.

27.2.09

DIA 58

O sacro desloca-se, a coluna pende para a esquerda e isso provoca dor. Pender para a esquerda provoca a dor.

26.2.09

DIA 57

Foi-me diagnosticado um problema de ausência de vontade. Quem o fez nem imagina a vontade que é preciso ter para não ter vontade.

25.2.09

DIA 56

Os gigantes eram filhos dos seres celestes com as raparigas da Terra. Arrependido de nos ter criado, Deus voltou-se para Noé, homem justo e honesto, e ordenou-lhe que construísse uma arca de boa madeira resinosa, com betume por dentro e por fora, de cento e cinquenta metros de comprimento, vinte e cinco metros de largura e quinze metros de altura. Foi quanto bastou para que a humanidade pudesse continuar a crescer. Porém, ainda que Noé fosse justo, os genes corruptos de Adão permaneciam nas células do pai de Sem, Cam e Jafet. Depois do arrependimento, o segundo erro de Deus foi não ter acabado com Noé e a sua descendência. Antes tivesse deixado na arca apenas as aves, os quadrúpedes e os outros animais. Talvez Deus tenha pensado nessa possibilidade. Talvez tenha pensado, como eu agora, que era preciso alguém para abrir a porta da arca após o dilúvio. Mas se foi o Senhor quem fechou a porta, não poderia ter sido também ele a abri-la quando a arca poisou nas montanhas de Ararat? Na primeira criação do mundo Deus foi imprevidente. Na segunda terá sido preguiçoso. Que se poderia esperar de uma humanidade assim nascida? Que nem soubesse por onde começar em solarengas manhãs de quase primavera.

24.2.09

APRENDER A CONTAR #69

17.

A vida. A vida é muito útil: serve para fingir que sabemos muita coisa, para fingir que gostamos dos outros, para fingir que somos alguém não o sendo e para querer ter muito poder. Eu, umas vezes, ponho a vida a tiracolo, para que as suas franjas arrojem o chão, outras, coloco-a à cabeça, e logo ela parece querer voar alçando-se ao céu. Certo dia pus a vida numa capoeira que tenho lá no quintal, mas ela, assim que se viu presa, começou a uivar no seu poleiro, pedindo-me para que a libertasse, e eu libertei-a mesmo, só que ela, desorientada, ao atravessar uma rua, foi logo atropelada. Ainda pensei arranjar outra vida, mas depois vi que não valia a pena...

7 de Junho de 1998

Oliveira Mateus (1952), in Movimento de Ninguém, Editorial Minerva, p. 29, Fevereiro de 1999.

#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10 / #11 / #12 / #13 / #14 / #15 / #16 / #17 / #18 / #19 / #20 / #21 / #22 / #23 / #24 / #25 / #26 / #27 / #28 / #29 / #30 / #31 / #32 / #33 / #34 / #35 / #36 / #37 / #38 / #39 / #40 / #41 / #42 / #43 / #44 / #45 / #46 / #47 / #48 / #49 / #50 / #51 / #52 / #53 / #54 / #55 / #56 / #57 / #58 / #59 / #60 / #61 / #62 / #63 / #64 / #65 / #66 / #67 / #68

DIA 55

Adão morreu quando tinha novecentos e trinta anos de idade. Morreu de tédio, a contar os dias.

NINGUÉM LEVA A MAL

*
15-02-06: O jornal “24 Horas” foi alvo de buscas por parte das autoridades judiciais, esta quarta-feira. 26-03-07: Salazar vence concurso "Os Grandes Portugueses". 21-05-07: Um professor de Inglês, que trabalhava há quase 20 anos na Direcção Regional de Educação do Norte (DREN), foi suspenso de funções por ter feito um comentário que a directora regional, Margarida Moreira, apelida de insulto à licenciatura de José Sócrates. 21-06-07: O primeiro-ministro apresentou uma queixa-crime contra o blogger António Balbino Caldeira por causa de vários escritos sobre a sua licenciatura em Engenharia Civil na Universidade Independente (UnI). 28-06-o7: A directora do Centro de Saúde de Vieira do Minho, Maria Celeste Cardoso, foi exonerada pelo ministro da Saúde por não ter retirado do centro um cartaz que apresentava declarações de Correia de Campos "em termos jocosos". 28-10-08: O líder parlamentar do PSD, Paulo Rangel, exigiu hoje ao primeiro-ministro, o esclarecimento do telefonema que fez ao director do Diário Económico após a publicação da notícia sobre a alteração à Lei de Financiamento dos Partidos. Para o líder do PSD o acto de José Sócrates é "uma tentativa de intimidação". 19-02-09: Ministério Público proíbe sátira ao Magalhães no Carnaval de Torres Vedras. 23-02-09: A PSP de Braga apreendeu hoje numa feira de livros de saldo alguns exemplares de um livro sobre pintura. A polícia considerou que o quadro do pintor Gustave Courbet, reproduzido nas capas dos exemplares, era pornográfico, adiantou uma fonte da empresa livreira.

23.2.09

DIA 54

A vida toda em cima do joelho... depois deste ter batido numa das arestas da secretária. De resto, a secretária há muito que andava a assediar os joelhos do patrão.

APRENDER A CONTAR #68

O PROFESSOR SALAZAR (que Deus o tenha em descanso) gostava de passear, à tardinha, pelos jardins do Palácio. Recordava as estações da linha do Tua e cantava o hino da Mocidade: «Lá vamos, cantando e rindo...»
O Professor Salazar também gostava de galinhas; por ordem dele, a governanta cuidava de um galinheiro, nas traseiras do jardim. Visitava-as quase todos os dias. Preferia a cabidela e o fricassé.
Depois do passeio, sentava-se à janela, com uma manta cobrindo as pernas. Via a D. Maria rebolar as ancas, enquanto punha a mesa para o jantar.
Perguntava quantos ovos tinham posto, nesse dia. Pensava como o povo devia estar feliz, cheio de sacristas, como ele, contentes, à janela, com mantas cobrindo as pernas.
As galinhas aplaudiam.

José Alberto Oliveira (1952) , in Bestiário, Assírio & Alvim, p. 77, Março de 2004.

#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10 / #11 / #12 / #13 / #14 / #15 / #16 / #17 / #18 / #19 / #20 / #21 / #22 / #23 / #24 / #25 / #26 / #27 / #28 / #29 / #30 / #31 / #32 / #33 / #34 / #35 / #36 / #37 / #38 / #39 / #40 / #41 / #42 / #43 / #44 / #45 / #46 / #47 / #48 / #49 / #50 / #51 / #52 / #53 / #54 / #55 / #56 / #57 / #58 / #59 / #60 / #61 / #62 / #63 / #64 / #65 / #66 / #67

LABIRINTO #36

Sem título, técnica mista s/ papel, 30x21cm, 2009

Maria João

#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10 / #11 / #12 / #13 / #14 / #15 / #16 / #17 / #18 / #19 / #20 / #21 / #22 / #23 / #24 / #25 / #26 / #27 / #28 / #29 / #30 / #31 / #32 / #33 / #34 / #35

22.2.09

CHINA DOLL

à Daniela

Eu ia na passadeira com um propósito mas

a gravata de um homem atirou-me para o coração
do abismo. Uma insuspeitada gravata de seda
com pintas discretas, o catalizador

da vertigem. Aquilo que o vento levanta
na avenida era uma espécie
de música, um barulho de sinos remoto

e descompassado, viam-se algumas flores
a entrar na boca do esgoto comos e fosse ali
a casa delas. E sem deixar eco qualquer coisa ruía

nas fachadas, o próprio oxigénio era nesse instante
como uma língua estrangeira. Eu sentia na garganta os tambores
do sangue e os prédios enfadonhos pulsavam
na taquicardia, caíam em desamparo

para a cova do meu peito. Do outro lado da rua
um sinal de trânsito foi a minha âncora.



Foto respigada aqui.

Rui Pires Cabral nasceu a 1 de Outubro de 1967 em Macedo de Cavaleiros. Licenciado em História e Arqueologia, publicou em 1985 um livro intitulado Qualquer Coisa Estranha. Dez anos depois, começa a afirmar-se como poeta. Publica Geografia das Estações e A Super-Realidade. Seguem-se alguns dos mais bem recebidos livros da poesia portuguesa contemporânea: Música antológica & onze cidades, de onde copiámos o poema aqui reproduzido, Praças e Quintais, Longe da Aldeia, Capitais da Solidão. Está representado em várias antologias e colaborou com revistas tais como a Telhados de Vidro, a Relâmpago ou a Periférica. É autor de variadíssimas traduções.

DIA 53

Para a franksy!

Têm-me acontecido coisas muito fixes ultimamente. O termo é mesmo este, fixes. Fiquei a saber, por exemplo, que é preferível falar com cozinheiros a falar com artistas. Os artistas ficam muito chateados se lhes dizemos que não gostamos da sua arte, tendem a personalizar o gosto, arrogam-se no direito de nos diminuírem o discernimento e a sabedoria por não gostarmos do que fazem. Se dizemos a um artista que não gostamos de uma obra que ele produziu, isso só pode dever-se à nossa ignorância, a uma inveja mesquinha – argumento recorrente quando faltam os argumentos -, a uma qualquer antipatia pela pessoa do artista (na cabeça do artista a sua pessoa subsume-se na obra). Ora, nenhum cozinheiro se subsume no bacalhau que nos traz à mesa. Se lhe dizemos que não gostamos, ele pode ficar triste, intrigado, mas não nos acusa de nada. Limita-se a sugerir-nos outro prato. Têm-me acontecido coisas mesmo fixes ultimamente.

21.2.09

DIA 52


Ando revoltado, sinto-me cansado de tudo e de todos, o mundo desmorona-se à minha frente, estou frustrado, é tudo tão triste, medonho, horrível, se pudesse suicidava-me, tal é o desespero com que enfrento os meus dias aziagos, tão cheios de nada e vazios de tudo, julgo mesmo nunca me ter sentido tão deprimido, logo eu que abomino os deprimidos da vida, a fraqueza, a descompensação, a falta de energia e o amorfismo das carpideiras, estou mesmo, mesmo, mesmo do pior, tão mesmo do pior que nem mesmo as pernas de uma bailarina me fariam sentir um poucochinho mais sorriso, um poucochinho mais ficar, mais baile, mais dança. Mas eis senão quando este rosto tudo altera. Este é o rosto que me falta. Amo-te, Liedson. Amo-te mesmo, do fundo do coração.

LABIRINTO #35

Sem título, técnica mista s/ papel, 30x21cm, 2009


Maria João


#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10 / #11 / #12 / #13 / #14 / #15 / #16 / #17 / #18 / #19 / #20 / #21 / #22 / #23 / #24 / #25 / #26 / #27 / #28 / #29 / #30 / #31 / #32 / #33 / #34

20.2.09

LE CARNAVAL LITTÉRAIRE

Aos beijinhos nas badanas
seguem muito abraçados
com cara de bananas
e feitios desgraçados

Se alguém lhes volta a face
ao beijinho manhoso
ficam verdes alface
de um ódio rançoso

Como os piores professores
marcam para sempre
quem lhes causou as dores
de uma dúvida pertinente

E nem vale a pena
pensar muito mais no assunto
que a mesa faz-se pequena
para tanto presunto

SEBASTIAN PAPATOUS
trad. por HMBF

HOMENS NUS

Jean Flandrin Hippolyte ( 1809-1864) , Jovem nu sentado à beira-mar, 98x115cm, Museu do Louvre, 1836

Maria João

A COTOVIA

Parei vindo de Espanha,
no Alto de Leomil,
onde os ventos da raia se entrechocam,
e com os mesmos gestos de sempre
atestei o depósito de gasolina;
a chave, o tampão, a mangueira,
a seiva das florestas mortas
vendida pela British Petroleum
gorgolejava em números;
e ao pé dos camiões TIR,
junto da IP5,
no que sobrou de um campo,
ouvi a cotovia.
Sozinha entre pardais,
não cantava: era um grito de outono,
e gritava e corria,
e os pardais esvoaçavam.
Os gestos repetidos do trabalho
negavam-me esse resto de outro tempo,
e a cotovia foi-se,
e a estrada conduziu-me para longe.




Nuno Dempster nasceu em 1944 na Ilha de São Miguel, Açores. Em 2002 publicou alguns poemas na colectânea Quatro Poetas da Net. Estreou-se em livro recentemente, com um tão surpreendente quanto invulgar livro onde reúne quase 300 páginas da sua poesia inédita em livro. Dispersão – Poesia Reunida foi publicado pelas Edições Sempre-em-Pé em Novembro de 2008. É autor, entre outros, do weblog A Esquerda da Vírgula.

BAILARICO

Ontem, por razões meramente acidentais, voltou à baila o assunto da importância. Não gosto da palavra, preferindo sempre ironizá-la utilizando frequentemente o neologismo o’neilliano da importanticidade. O motivo da conversa foi esta velha querela. Vamos por pontos: a) poeta amigo 1 manda livro a poeta amigo 2; b) poeta amigo 2 manifesta inquietações perante o livro de poeta amigo 1; c) poeta amigo 1 explica-se; d) poeta amigo 2 replica; e) discurso azeda entre poetas amigos; f) poeta amigo 1 diz: a literatura, de resto, que se foda. a minha vida está para além disso e gosto dela. g) poeta amigo 2 responde: Se a criação literária (como outra qualquer actividade pública criativa) não é para levar a sério, então para quê consumir recursos naturais em papel, gastar saliva e neurónios ou queimar as pestanas no exercício crítico que, implicitamente, o acto de publicação acarreta, e, redobradamente, o envio do livro a alguém?!... Ora, é com esta resposta final que eu concordo. O resto não me interessa, não me diz respeito, passa-me ao lado. Desaguisados entre poetas amigos são peditórios para os quais já contribuí o suficiente. Acontece que ontem, como dizia, o tema voltou à baila. Alguém que eu não sabia quem era (fiquei a saber depois de, já metido no meu bólide, o Rui Almeida me ter esclarecido) chamou a esta citação, julgo que não me engano, um encobrimento (ou terá sido cobertura?) das respostas do poeta amigo 2. Esclareço o porquê de ter citado o que citei: sublinho em pleno, concordo em absoluto, com a questão levantada na citação em causa. Um escritor manifestar em privado (num e-mail que foi tornado público) que quer que “a literatura se foda” está longe, do meu ponto de vista, de significar o mesmo que Baudelaire quis afirmar quando escreveu Perda de Auréola, ou Eliot quando, num dos Quatro Quartetos, escreve que «The poetry does not matter», ou ainda Fernando Assis Pacheco, num verso que me é muito querido: «não tenho nada contra a poesia / mas é mais útil a limpeza a seco». A dessacralização do literário, a defesa de uma poesia que esteja para lá de uma concepção utilitarista do mundo, o elogio do “inútil” e da chamada “ausência de qualidades”, não se podem confundir com manifestações de desprezo para com a literatura. É precisamente porque a não desprezam, que os escritores, os poetas, os críticos, os leitores, os editores, os livreiros, os transportadores, os arquivistas, os bibliotecários, os paginadores, os tipógrafos, os revisores, os agentes, etc, etc, etc, a justificam com a sua existência. A literatura é um bem comum, em nenhuma circunstância aquilo que nós entendemos que a literatura possa ou deva ser em termos de estilo deve sobrepor-se à consciência desse bem. Ora, é precisamente porque não quero que a literatura se foda e porque respeito profundamente cada uma das árvores abatidas, transformadas em pasta de papel que servirá para, entre outras coisas, produzir livros, é precisamente e tão-só por essa razão que eu julgo ser muito mais importante lembrar isto, só isto e nada mais que isto a quem, de vez em quando, parece esquecer-se que anda com os pés sobre a Terra.

DIA 51

Ao acordar de um dia estranho, parece que ainda estamos a dormir. Cansados nos deitamos, cansados acordamos.

19.2.09

DIA 50

Acordei com as mãos a desfazerem-se sobre os lençóis como se fossem de cera. Duas tochas de cera deitadas sobre o derrame.

18.2.09

DIA 49

Nota 1: o padre acha que a homossexualidade não é normal. Eu estou convencido de que o padre é um anormal. Nota 2: o TIC está a ouvir Charles Smith e o tio de Sócrates. Gostava de saber se Charles Smith tem sobrinhos. Isso faria toda a diferença na notícia. Imaginemos que Smith é tio de A. Então a notícia deveria ser: TIC está a ouvir os tios de A e Sócrates.

CONTRA O CASAMENTO

Assisti ontem com muita atenção a um debate sobre a possibilidade das pessoas com o mesmo sexo contraírem matrimónio. Fiquei decepcionado. Não havia ali ninguém que fosse de todo contra o casamento. Seria essa a minha posição. A seriedade do assunto obriga-me a reconhecer que não me é indiferente a discriminação exercida sobre os homossexuais nesta e noutras matérias, mas não contem comigo para defender uma instituição que considero anacrónica e perniciosa. O casamento enquanto contrato ou delegação da personalidade, como julgo ter ouvido ontem, devia ser abolido de uma vez por todas. Reduz o amor entre duas pessoas a uma coisa passível de ser regimentada e instrumentalizada pelo Estado, num processo de intromissão na vida privada que não me merece outra coisa senão repúdio. Mais: impele as pessoas para um ideal que as escraviza, as limita, obrigando-as à hipocrisia das relações paralelas e à infelicidade do divórcio. Sem casamento teríamos uma sociedade muito mais livre, aberta, autêntica e feliz. Se o que está em causa é o reconhecimento de uma relação com implicações nos direitos sucessórios, pode-se sempre repensar o valor prático e pragmático do testamento. Se o problema é a adopção, acabe-se de uma vez por todas com a proibição da adopção às uniões de facto entre pessoas do mesmo sexo. Se o problema é a ausência de um património comum, com repercussões, por exemplo, na responsabilidade perante dividas contraídas, então torne-se claro que as dívidas contraídas são sempre responsabilidade de quem as contrai e de mais ninguém. Provavelmente evitar-se-iam alguns endividamentos inúteis. Não pensem que estou a ser irónico, falo-vos do palanque da minha mais carrancuda seriedade. O casamento só acarreta despesas e problemas, arrasta as pessoas para uma prisão social e para a monotonia, rouba aos indivíduos a possibilidade de uma vida feliz e livre (a única, meus amigos, que vale a pena viver, por ser a única, meus amigos, que temos ao nosso dispor). No debate de ontem, achei muita piada aos argumentos jurídicos apresentados por ambas as partes. Mas a verdade é esta: sinto um asco profundo pela ênfase colocada na lei em matérias de amor. Ouvi um padre falar de limitações legais do amor como se estivesse a falar do comércio de galinhas no Mercado de Santana. Dizia ele que a poligamia e o amor incestuoso são proibidos e que ninguém questiona tal proibição. Questiono eu. Por que hão-de ser proibidas essas formas de amor? Não são tão moralmente aceitáveis como quaisquer outras? Desde que não exista violação da vontade, desde que não exista imposição, coacção, violência, por que não hão-de poder dois irmãos ou um pai e uma filha amarem-se? E quem pode provar os benefícios da monogamia? Afinal em que sociedade vivemos? Numa sociedade poligâmica clandestina. Esta é que é a realidade. Não consta que em tempos de crise o comércio das putas e dos gigolôs, dos amantes e das facadinhas, tenha diminuído. Também ouvi um indivíduo cujo nome não recordo levantar um curioso argumento no contexto da sexualidade enquanto afirmação da personalidade. Perguntava ele, depois de ter dado os parabéns a Miguel Vale de Almeida pela coragem – o termo não é meu - que este revela ao assumir a sua homossexualidade (estes parabéns são assaz reveladores da medievalidade que grassa nestas mentes), perguntava ele, dizia eu, se o casamento é assim tão importante para a afirmação da personalidade dos homossexuais, então como podemos garantir a afirmação da personalidade dos bissexuais. Isto tem uma resposta: poligamia. Sou da opinião que, a manter-se o circo do casamento, que se faça dele uma festa olímpica. Permita-se que as pessoas casem ao mesmo tempo não com uma pessoa de sexo diferente, mas com quantas ela quiser, tenham o sexo que tiverem. Por mim até podem não ter sexo algum, serem anjinhos caídos, almas perdidas, arcanjos, querubins.
Adenda: um post interessante, ao qual chego através de um beloblog. Imaginem a possibilidade de um «casamento homossexual incestuoso poligâmico».

17.2.09

APRENDER A CONTAR #67

ARPEJOS

1
Acordei com coceira no hímen. No bidê com espelhinho examinei o local. Não surpreendi indícios de moléstia. Meus olhos leigos na certa não percebem que um rouge a mais tem significado a mais. Passei pomada branca até que a pele (rugosa e murcha) ficasse brilhante. Com essa murcharam igualmente meus projetos de ir de bicicleta à ponta do Arpoador. O selim poderia reavivar a irritação. Em vez decidi me dedicar à leitura.

2
Ontem na recepção virei inadvertidamente a cabeça contra o beijo de saudação de Antônia. Senti na nuca o bafo seco do susto. Não havia como desfazer o engano. Sorrimos o resto da noite. Falo o tempo todo em mim. Não deixo Antônia abrir sua boca de lagarta beijando para sempre o ar. Na saída nos beijamos de acordo, dos dois lados. Aguardo crise aguda de remorsos.

3
A crise parece controlada. Passo o dia a recordar o gesto involuntário. Represento a cena ao espelho. Viro o rosto à minha própria imagem sequiosa. Depois me volto, procuro nos olhos dela signos de decepção. Mas Antônia continuaria inexorável. Saio depois de tantos ensaios. O movimento das rodas me desanuvia os tendões duros. Os navios me iluminam. Pedalo de maneira insensata.

Ana Cristina Cesar (1952-1983) , in Um Beijo que Tivesse um Blue – Antologia Poética, Quasi Edições, p. 52, Novembro 2005.

#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10 / #11 / #12 / #13 / #14 / #15 / #16 / #17 / #18 / #19 / #20 / #21 / #22 / #23 / #24 / #25 / #26 / #27 / #28 / #29 / #30 / #31 / #32 / #33 / #34 / #35 / #36 / #37 / #38 / #39 / #40 / #41 / #42 / #43 / #44 / #45 / #46 / #47 / #48 / #49 / #50 / #51 / #52 / #53 / #54 / #55 / #56 / #57 / #58 / #59 / #60 / #61 / #62 / #63 / #64 / #65 / #66

DIA 48

Ontem ouvi algo muito importante: o casamento não é um contrato, é uma delegação da personalidade. (Ninguém te cobra nada, ninguém quer que faças o que quer que seja, ninguém espera nada de ti que não dês já. Nem sequer esperamos que tenhas ouvidos, ó Deus inseguro e stressado da beneficência. Por isso mesmo não delegaremos a nossa personalidade, por constatarmos ser preferível viver em silêncio com os factos, sós, cada vez mais sós, nos caminhos da mais radical das solidões.)

16.2.09

LABIRINTO #34



Sem título, técnica mista s/ papel, 30x21cm, 2009

Maria João
#1 / #2 / #3 / #4 / #5 / #6 / #7 / #8 / #9 / #10 / #11 / #12 / #13 / #14 / #15 / #16 / #17 / #18 / #19 / #20 / #21 / #22 / #23 / #24 / #25 / #26 / #27 / #28 / #29 / #30 / #31 / #32 / #33