Ontem, por razões meramente acidentais, voltou à baila o assunto da importância. Não gosto da palavra, preferindo sempre
ironizá-la utilizando frequentemente o neologismo o’neilliano da
importanticidade. O motivo da conversa foi
esta velha querela. Vamos por pontos:
a) poeta amigo 1 manda livro a poeta amigo 2;
b) poeta amigo 2 manifesta inquietações perante o livro de poeta amigo 1;
c) poeta amigo 1 explica-se;
d) poeta amigo 2 replica;
e) discurso azeda entre poetas amigos;
f) poeta amigo 1 diz:
a literatura, de resto, que se foda. a minha vida está para além disso e gosto dela.
g) poeta amigo 2 responde:
Se a criação literária (como outra qualquer actividade pública criativa) não é para levar a sério, então para quê consumir recursos naturais em papel, gastar saliva e neurónios ou queimar as pestanas no exercício crítico que, implicitamente, o acto de publicação acarreta, e, redobradamente, o envio do livro a alguém?!... Ora, é com esta resposta final que eu concordo. O resto não me interessa, não me diz respeito, passa-me ao lado. Desaguisados entre poetas amigos são peditórios para os quais já contribuí o suficiente. Acontece que ontem, como dizia, o tema voltou à baila. Alguém que eu não sabia quem era (fiquei a saber depois de, já metido no meu bólide, o Rui Almeida me ter esclarecido) chamou a
esta citação, julgo que não me engano, um encobrimento (ou terá sido cobertura?) das respostas do poeta amigo 2. Esclareço o porquê de ter citado o que citei: sublinho em pleno, concordo em absoluto, com a questão levantada na citação em causa. Um escritor manifestar em privado (num
e-mail que foi tornado público) que quer que “a literatura se foda” está longe, do meu ponto de vista, de significar o mesmo que Baudelaire quis afirmar quando escreveu
Perda de Auréola, ou Eliot quando, num dos
Quatro Quartetos, escreve que
«The poetry does not matter», ou ainda Fernando Assis Pacheco, num verso que me é muito querido:
«não tenho nada contra a poesia / mas é mais útil a limpeza a seco». A dessacralização do literário, a defesa de uma poesia que esteja para lá de uma concepção utilitarista do mundo, o elogio do “inútil” e da chamada “ausência de qualidades”, não se podem confundir com manifestações de desprezo para com a literatura. É precisamente porque a não desprezam, que os escritores, os poetas, os críticos, os leitores, os editores, os livreiros, os transportadores, os arquivistas, os bibliotecários, os paginadores, os tipógrafos, os revisores, os agentes, etc, etc, etc, a justificam com a sua existência. A literatura é um bem comum, em nenhuma circunstância aquilo que nós entendemos que a literatura possa ou deva ser em termos de
estilo deve sobrepor-se à consciência desse bem. Ora, é precisamente porque não quero que a literatura se foda e porque respeito profundamente cada uma das árvores abatidas, transformadas em pasta de papel que servirá para, entre outras coisas, produzir livros, é precisamente e tão-só por essa razão que eu julgo ser muito mais importante lembrar
isto, só isto e nada mais que isto a quem, de vez em quando, parece esquecer-se que anda com os pés sobre a Terra.